O enterro de Osmar Belmonte
Com passo escuro e lento, pesado como a tristeza, por estar debaixo de um
sol de verão para cumprir o ritual da despedida, o cortejo movimenta-se já
perto do cemitério. Sua a idéia de um cortejo a pé: três quarteirões apenas,
pois desde sempre moraram naquela casa à beira do cemitério. O que não contava
era com o sol do meio da rua e perto do meio-dia, porque nas calçadas, de ambos
os lados, havia árvores que protegiam os transeuntes da aspereza do sol. Mas
eles não eram transeuntes e cortejo não se faz na calçada.
Letícia olha para um lado e outro, olha para trás, impaciente, olha sem
parar. Seu olhar apojado de ansiedade corre na frente, vai até a porta do
cemitério e volta rastejante, queimando-se nos paralelepípedos escaldantes.
No bar, à direita, alguns fregueses amontoam-se e espremem-se na porta,
querendo ver. O cortejo pelo meio da rua, cada um sobre seus próprios pés, o
cortejo é um fato inusitado, que vale a pena ser visto. E lá dentro, entre os
fregueses, corre a pergunta, Mas quem é ele?, e apenas o dono, por trás do
balcão, responde com sua voz gorda e estragada que é um vizinho ali de baixo,
um velho doente.
Os plátanos de mãos espalmadas acenam de leve à passagem da brisa, numa
despedida sem nenhuma emoção. Dois ou três cachorros já invadiram a rua
farejando o cortejo atrás de alguma coisa que lhes fosse de proveito. Agora
estão sumidos, ficaram para trás, ocupados como sempre com sua reles
sobrevivência de cães de rua.
Bem que Letícia tinha visto os cachorros, mas de sua posição à frente do
cortejo, e com a solenidade de seu vestido preto, onde o sol emitia multidão de
reflexos, enfim, na qualidade de viúva legítima de Osmar Belmonte, ela não
podia fazer gesto nenhum para enxotá-los. Por sorte é que se foram espontaneamente.
Viúva legítima, sim, porque apesar de chamar-se Letícia Gonzaga e Silva, era
casada em cartório e igreja com o falecido, cujo pseudônimo, Osmar Belmonte, só
se usava na televisão.
Mas quem é ele? E o dono do bar, com sua voz gorda de pigarros e cheia de
falhas enfumaçadas, explica que se trata de um vizinho. Ali de baixo. Até
costumava tomar umas que outras, aqui mesmo neste balcão. Eu aqui e ele aí, com
a mão trêmula, talvez de velhice. E era assim sua homenagem. Eu aqui e ele aí.
Osmar Belmonte.
Letícia olha para um lado e outro, e seu olhar já brilha de ansiedade,
mesmo sem receber os reflexos que o sol arranca de seu vestido preto. Ela olha
para trás e fecha ainda mais a cara, quase sempre muito fechada. Finalmente
descobre os fregueses do bar amontoados à porta e os cobre com um olhar cheio
de desaforos. Osmar Belmonte, sim senhor. Cambada de ignorantes, ela pensa, a
esta hora devem estar perguntando, Quem é ele, que ali vai?
Um automóvel freme de tão atrasado, seguindo o cortejo. É uma fome
particular, o tempo escasso para o almoço. Por fim, sem qualquer respeito, e
muito irritado, vale-se do clangor de sua corneta para forçar o cortejo a
encolher-se perto do meio-fio. De passagem, o motorista desfecha um olhar irado
na direção do esquife e resmunga alguma coisa a respeito do tempo, da morte que
atrapalha a vida, e o muito que ainda tem de fazer neste mesmo dia.
Cretino!, Letícia tão-somente pensa, muito preocupada com as
conveniências. Então, de maneira disfarçada, examina os acompanhantes à espera
de algum sinal de solidariedade, mas nada descobre todos muito concentrados
na dor.
Ao passarem pela frente da
lavanderia de porta aberta deixando inteiramente à mostra um espaço pequeno e
sombrio, a passadeira aparece com o ferro de engomar na mão esquerda enquanto a
mão direita arruma fiapos de cabelo no alto da cabeça. Ela faz um sinal da cruz
pela metade, mas muito respeitoso, pois ultimamente, com o pai na cama, vem
pensando constantemente na morte, na dele, mas também na sua. Ela só se volta
para o interior quando passam os últimos acompanhantes do cortejo. Solta um
suspiro ruidoso e volta ao serviço pensando, Quem será?
Letícia não se conforma com a pequena quantidade de amigos que vieram
acompanhar a despedida de Osmar. Consegue abranger a todos com um único olhar.
Ela esmaga na mão o lenço branco, que vem carregando, com o qual a cada minuto
seca a testa. Não era essa a função do lenço, mas ela mantém-se com alguma
esperança de ainda poder usá-lo perante as câmeras. Por isso olha tanto para os
dois lados, para trás e para a frente. Será a ingratidão ou o esquecimento? Ah,
não, mas a memória de Osmar jamais murchará. Pelo menos enquanto ela existir. Um
pensamento denso cobriu-lhe o rosto, um pensamento tão físico, este, que lhe
desceu pelo corpo e foi parar em seus pés inchados. A memória de Osmar será a
presença dele em cada centímetro de minha pele.
Uma brisa vem correndo e move as folhas espalmadas dos plátanos. Uma
brisa ligeira, que mal chega para um suspiro. Ainda ontem podia ver os
letreiros com o nome de Osmar Belmonte. Ainda ontem.
Fechado em si mesmo, venezianas como óculos escuros, o palacete assistiu
sem comentários à passagem do cortejo. A antiga residência do senador Teodoro
de Sá. Quantas vezes o provecto senhor descia as escadas e vinha até o portão
para uma prosinha com o Osmar Belmonte. Ah, eram amigos. Ambos pessoas
importantes. Conversavam sobre política e economia, comentavam o mundo e seus
percalços, acabavam sempre falando sobre o último programa em que Osmar havia
aparecido. O senador não perdia desempenho nenhum de Osmar. Há vários anos o
palacete não espiava mais pelas janelas. Quando a memória começa a escorrer
esvaindo-se, a terra fatalmente a engole.
Poucos passos adiante, lentos passos de marcha lenta, Letícia vislumbra,
pela porta da loja de luminárias, o perfil altaneiro de Adriana dos Reis. Seu
alto penteado e uma argola pendurada na orelha só pode ser ela. O esquife,
carregado por amigos do falecido, continua avançando, e a viúva não se dá conta
de que, ali, parada, vai ficar para trás. Nada disso interessa. Ela está
degustando o rancor de encontrar em situação tão banal uma das poucas vizinhas
que sempre se disse a maior amiga do casal. A impressão que fica é a de que
Adriana discute uma questão de preço com o vendedor. Os dois têm papéis nas
mãos, papéis que um brande contra o outro, numa luta em que ambos deverão
perecer exauridos. Sem olhar para a rua, pelo menos esta aí não vai perguntar,
Quem é ele, que vai ali?
Agora Letícia já pode ver com nitidez as pontas verde-escuras dos
ciprestes e a cruz de alguns túmulos mais altos. Seu coração seca encolhido sem
muita esperança. Movimento nenhum à frente do portão no alto do qual, em arco,
se lê Lasciate ogni speranza, escrito
com letras de ferro. Ninguém à espera.
Na última esquina, antes do portão, a banca de revista anuncia o novo
ministro do planejamento ao lado de um empate de 0 x 0. Assim a vida,
indiferente àqueles que já cumpriram o ciclo.
Osmar Belmonte teve seu tempo, no auge da carreira. Essas pessoas aí na
calçada, que nem chegam a parar, curiosas, não perguntariam, Quem é ele, que
ali vai? Em seu último espetáculo, Osmar não se dá o trabalho de mostrar a
cara.
Quando já não espera mais nada, o féretro embocando pelo portão do
cemitério, eis que surgem, lá de dentro, repórteres com caderninhos na mão
acompanhados de operadores de câmeras. Rapidamente arrastam Letícia para fora
do cortejo e, sob o bombardeio de perguntas e iluminada por refletores que
ajudam o sol, a viúva finalmente leva o lenço aos olhos, de onde as lágrimas
vertem caudalosas.
Ah, sim, agora Letícia tem certeza de que Osmar Belmonte, com quem viveu
sua vida de legítima esposa, Osmar Belmonte está definitivamente morto. Não é
mais um homem, tampouco um artista. Agora ele é a notícia que se espalha pela
cidade, que penetra nos lares, para espanto geral. Então quer dizer que o Osmar
Belmonte? Letícia não pode mais duvidar de sua própria dor e do passamento de
seu marido.
Depois de tanta pergunta respondida, quando Letícia, finalmente, chega à
beira da cova, sua fisionomia desmancha-se com tantas estrias pretas de rímel
que lhe preenchem as rugas. Então desaba sobre ombros amigos sem oportunidade
de se despedir o caixão já desapareceu engolido pela terra.
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