Acordou com a explosão na boca e tentou ficar na cama por causa do frio.
As vistas viam as estrelas do esforço e mais nada antes de se acostumarem à
escuridão do quarto, onde penetrava apenas uma claridade baça através das
fasquias da veneziana. Tentou conter a tosse no fundo da garganta, engolida,
até quase o sufocamento. Era uma espécie de mão descarnada e com dedos de aço
que se apertava em torno de sua cabeça.
Esbugalhando os olhos, que tentavam saltar das órbitas, e com o sangue
inchando-lhe as veias do pescoço, Eliseu desistiu do silêncio e soltou
novamente a tosse, que parecia nascer-lhe nos pulmões e subir queimando o
esôfago até a boca. Então sentiu que algo como um carnegão se desprendia de seu
interior e procurava a saída mais próxima. Levantou-se num pulo só e correu
para a janela, cujas venezianas estouraram dois tiros secos contra a parede do
lado de fora quando as abriu.
A noite fria e úmida bateu-lhe no rosto febril e suas sombras engoliram a
massa de catarro e sangue que Eliseu expulsou com ímpeto e raiva.
O alívio veio envolto por uma tontura boa, como um descanso e um copo de
água fresca à beira de um desmaio. Inspirar, naquele momento, o ar escuro até
inflar os pulmões foi o que reteve Eliseu apoiado no peitoril da janela. A
crise tinha passado e agora era imperioso desfrutar o prazer de estar
respirando. Era como se estivesse atingindo um sentimento bom, quase uma
felicidade: o bem-estar.
A noite estava distante, além do jardim, por trás do muro, no alto de
alguns postes que mal se podiam ver da janela do sobrado. A noite era um
silêncio raramente interrompido por um latido, um grito, uma buzina, tudo
esmaecido pela distância. No céu, umas poucas estrelas brilhavam e sumiam e brilhavam
outra vez entre nuvens que se agitavam esgarçadas.
Uma claridade, então, moveu-se da direita para a esquerda, lenta, e
Eliseu ouviu sua respiração ofegante e cava, como se o ar estivesse por demais
denso. Era uma claridade branca e de pouco brilho, mancha pálida no rosto da
noite. À distância de um braço e envolta em luz, formou-se um busto feminino,
cabelos loiros como raios de sol, mas com buracos escuros em lugar dos olhos.
Na vizinhança, agitados, os cães uivavam e ganiam sem parar. As mãos de Eliseu
grudaram-se no parapeito da janela e seus braços perderam qualquer movimento.
Os pêlos do corpo se eriçaram em formigamento. A forma feminina inclinou a cabeça
e em voz cava, uma voz que parecia a vibração de um corpo, afirmou, Há quanto
tempo, meu amado. Um hálito pestilento envolveu a cabeça de Eliseu, quase a
ponto de o sufocar.
Com o mesmo vagar de sua aparição, a claridade continuou seu caminho
aéreo até desaparecer. Calaram-se os cães, e um silêncio majestoso, como se a
noite estivesse parada, seguiu-se a seu desaparecimento. Nuvens e estrelas, a
brisa noturna, nada se movia debaixo da abóbada celeste. Eliseu suava
aterrorizado, mas não conseguia forças para afastar-se da janela.
Sol alto, ao descer para o andar inferior e encontrar a irmã e o cunhado,
Eliseu não soube explicar a que horas exatamente conseguira dormir. Lembrava-se
apenas de que tremera de frio por muito tempo, encolhido na cama, até surgirem
os primeiros clarões da aurora para apagar de seus olhos aquela figura envolta
em luz.
O cunhado enrugou a testa, com ar de incredulidade, mesmo tendo ouvido o
relato da aparição e da frase que Eliseu tentou reproduzir no fundo da garganta:
Há quanto tempo, meu amado. Ninguém está livre de uma alucinação, cunhadinho.
Ninguém.
Eliseu voltou-se para a irmã, que lhe preparava a mesa do café. Mas ela
concordava com o marido. Então toda experiência que foge ao lugar comum, ao
ramerrão do dia-a-dia, só pode ser alucinação?, perguntava um Eliseu exasperado
ao casal que, involuntariamente, demonstrava enorme indiferença pelos detalhes
de seu relato.
O dia estava claro, brilhante, como um desmentido ao terror da meia-noite
por que tinha passado o rapaz. Mesmo assim, Eliseu enfrentou o fulgor do dia e
foi examinar o jardim debaixo da janela de seu quarto. Rente à parede, um
canteiro de sempre-vivas parecia intacto. Nem marcas de pés, na terra fofa, nem
galhos quebrados das plantas. Ele se agachava procurando algum vestígio com que
comprovar sua experiência. Levantava-se, dava dois passos e agachava-se novamente,
sacudindo inconformado a cabeça.
O cunhado apareceu à porta e não conteve a gargalhada. Teu fantasma, ele
gritou, era um gigante? Eliseu encarou-o com raiva. Ia responder com uma
agressão qualquer, mas preferiu calar-se. Olhou para cima, para a janela como
um olho fechado em sua altura e rente à qual tinha passado a terrível figura
luminosa, desceu novamente o olhar até o canteiro de sempre-vivas, e desistiu daquela
pesquisa estúpida.
Entre os cunhados, era antiga uma relação de ambigüidade, que misturava
admiração e deboche. O respeito, que em geral Eliseu nutria pelo marido de sua irmã,
oscilava, pendulando, até momentos de profundo desprezo. Mas o sono, conciliado
quando os primeiros clarões da aurora entravam pela veneziana, tinha conseguido
apagar muito da impressão causada pela visão da meia-noite.
A tosse interrompeu o caminho de Eliseu, quando ele se dirigia à porta
onde o cunhado estava ainda com o sorriso aberto. É possível, latejou em sua
mente assim que passou a tontura, que eu esteja vítima de alucinações? O
cunhado se afastou para que ele entrasse na cozinha, e lhe perguntou se se
sentia bem. Eliseu, como resposta, apenas ergueu os ombros, o que não
significava nada, por isso podia significar qualquer coisa.
Vítima de alucinações? Impossível, se vira a figura de tão perto,
sentira-lhe no rosto o hálito pestilento, se ouvira com tanta nitidez o uivo
dos cães da vizinhança. Resolveu, entretanto, não comentar mais com a irmã e o
cunhado o que se passara durante a noite anterior.
Logo depois do almoço o cunhado saiu para o trabalho e a irmã ocupou-se
com as miudezas de manutenção do velho sobrado. Eliseu caminhou até a sala, com
seus móveis arruinados, mas não chegou a sentar-se. Vítima, ele? Deu uma volta,
espiou pelo postigo a rua deserta, botou e tirou as mãos nos bolsos, sem saber
por quê. De alucinação? Então bocejou com os olhos fechados e descobriu que
estava com sono.
Enquanto escalava os degraus da escada, que rangiam sob seus pés, Eliseu
ainda se perguntava se era possível uma perturbação mental tamanha que o
fizesse imaginar tudo que julgava ter visto e ouvido. E aquele cheiro de
pólvora queimada, que o sufocara, poderia ter sido apenas o resultado de uma
imaginação doentia? No patamar do andar superior, que apenas uma tênue claridade
iluminava, depois de atravessar o vidro fosco e sujo de uma pequena clarabóia,
o suor tornava suas mãos pegajosas, e, da testa fria, desciam-lhe bagas de suor
até o rosto esquálido.
Preciso descansar, Eliseu pensou abrindo a porta do quarto, porque à
noite quero estar bem desperto. E, vestido como estava, jogou-se na cama ainda
desfeita, mergulhando na morrinha morna de seu próprio suor.
As pancadas estrondearam sobrado acima, intensificadas pela ressonância
da caixa de madeira da escada. Eliseu abriu as pálpebras no escuro, atento.
Depois de pequena pausa, repetiram-se as pancadas. Só quando ouviu seu nome
gritado pela voz da irmã foi que se localizou. A janta na mesa!, ele ouviu o
convite. Então se lembrou de que deitara com muito sono, sem tempo para tirar a
roupa com que estava vestido.
Com a mudança brusca de posição, Eliseu sentiu uma trepidação incômoda no
peito, o movimento de alguma coisa que se desprendia e que, em pouco tempo, se
transformou numa pressão de dentro para fora, como se todo ele estivesse a
ponto de explodir. A tosse chegou-lhe à boca numa explosão já conhecida e ele
correu à janela. Desengonçadas, as venezianas espocaram na parede do lado de
fora. A noite havia chegado sem o menor
rumor, como se nada tivesse mudado. Não teve como evitar a lembrança da visão
que tivera na noite anterior, e, mesmo com os cabelos eriçados de medo, ele
continuou reclinado sobre o parapeito da janela. Uma aragem fria penetrou no
quarto, resfriando o suor que porejava por baixo da camisa de Eliseu, que,
ainda tonto do esforço, vestiu uma blusa de lã e sem fome nenhuma desceu para o
andar inferior.
Foi recebido com espanto, por causa de seu rosto inchado e o desalinho
geral da roupa e do cabelo, por causa de seus olhos parados e lacrimejantes.
Durante todo o jantar, Eliseu manteve aquele mesmo olhar alheado,
desatento, como se alguma idéia fixa o estivesse perturbando. Para trazê-lo de
volta à mesa da cozinha, era preciso que fosse interpelado várias vezes e com
alguma veemência. Quando a irmã e o cunhado o convidaram para assistir com eles
à novela, Eliseu respondeu que não, que não estava com vontade e mentiu que
sentia um pouco de dor de cabeça.
No quarto, Eliseu ficou olhando o despertador, tenso, concentrado, à
espera de que chegasse a meia-noite. Era preciso pôr-se à prova para saber se
começava a ser dominado por qualquer tipo de demência.
O movimento dos ponteiros era imperceptível e o cansaço subiu das pernas
de Eliseu até invadir todo seu corpo. Tirou os sapatos e recostou-se na cama, convencido
de que apenas descansava uns instantes enquanto esperava as horas passarem. Mas
não resistiu ao cansaço causado pela tensão em que passara boa parte do dia:
acabou adormecendo.
Acordou bem mais tarde com a sensação de que o peito estava prestes a
explodir. Acordou assustado, com a tosse arrombando seus lábios, e correu à
janela. No escuro em que se encontrava, não pôde ver as horas, mas intuiu, pelo
silêncio da cidade, que se aproximava da meia-noite.
E então tudo se repetiu. A claridade silenciosa em cujo centro flutuava
uma figura feminina com dois buracos negros no rosto. Na vizinhança, os cães
voltaram a uivar e ganir, apavorados. À distância de um braço, Eliseu percebeu
movendo-se uma cavidade em forma de boca e, bem nítidas, as palavras que se
articulavam no peito da visão: Minha paciência vai chegando ao fim. E depois de
inclinar levemente a cabeça, a figura continuou seu caminho silencioso e aéreo.
Esvaecida, a claridade, acalmaram-se os cães por trás dos muros da vizinhança e
a noite voltou a ser apenas uma abóbada cravejada de estrelas, algumas luzes
tremeluzindo no alto dos postes, e as sombras de árvores e telhados quase
indistintos.
A paz, em que parecia mergulhada a noite, contudo, não correspondia à
mente de Eliseu, tumultuada pelo desarranjo dos pensamentos.
Algum tempo mais tarde, descobriu-se com menos medo do que na noite
anterior, apesar da indiscutível irritação da figura que o visitara. Fechou as
duas folhas da veneziana, que bateram no caixilho com barulho morno, trocou de
roupa e se enfiou por baixo do edredom.
Quem estava louco, confundindo visão com imaginação?
Não foi um sono tranqüilo, o sono de Eliseu naquela segunda noite de
visita da estranha criatura, estranha e desconhecida (apesar de sua cara de
velha companheira). Algumas vezes tossiu até acordar, para então enxugar no
lençol o suor do rosto e do peito. A nuca encharcada causava incômodo e ele
sentia no corpo todo a ardência da febre. Um sono todo entrecortado de sustos e
desconforto. Na memória de suas narinas, o hálito mefítico continuava
incomodando, mesmo durante o sono.
De manhã, à mesa do café, a irmã e o cunhado estranharam seu olhar vazio
e a voz estrangulada com que os cumprimentou antes de sentar-se.
─ Andou vendo fantasma outra vez?
Nem bem fez a pergunta, o cunhado arrependeu-se porque Eliseu virou para
seu lado um rosto que já não habitava entre eles, um rosto opaco, de pele
amarelada sem brilho.
─ Você – e era uma voz que lhe subia dos intestinos antes de ressoar nos
pulmões apodrecidos ─ você brinca com o que não conhece.
Calaram-se os três, ouvindo-se até o fim do desjejum apenas o ruído de
lábios a sorver o café quente. E em silêncio o velho sobrado passou o dia, que
em tudo pareceu um dia normal, em que se cumpriam todas as rotinas. Os monossílabos
obrigatórios do almoço e do jantar não podiam ser contabilizados como
conversação. Não era terror, o que o casal sentia para evitar qualquer palavra
à mesa. Não chegava a tanto. Mas não podiam escapar de certa sensação de
assombro e respeito na presença de um ser humano a tal ponto destruído.
Foi com dificuldade e sentindo-se muito cansado que Eliseu, logo após o
jantar, subiu as escadas rangentes para fechar-se em seu quarto. Ao ouvirem o barulho da porta sendo fechada,
lá em cima, a irmã e o cunhado discutiram o assunto e chegaram à conclusão de
que o estado de Eliseu demonstrava alguma gravidade, e que era necessário
procurar um médico, medida que protelaram para a manhã seguinte.
Estavam ainda no primeiro sono, os dois, quando foram acordados por vozes
que pareciam humanas que altercavam no andar de cima. Misturando-se ao som de
palavras incompreensíveis, ouviram alguém chorando e rindo ao mesmo tempo. Vai,
vai, parecia alguém dizer. Então fez-se alguns instantes de total silêncio no
escuro do velho sobrado. Na cama, de ouvidos muito abertos, o casal aguardava.
Os pêlos eriçados, por baixo dos cobertores, não eram apenas de frio.
Súbito ouviram o baque de algo que cai e um grito rouco decrescendo
rapidamente. Depois, outra vez o silêncio, mas um silêncio como que arfante,
como se o sobrado respirasse com dificuldade. Acenderam as luzes e, com as mãos
unidas pelo suor, escalaram os degraus de madeira desgastados pelo uso e pelo
tempo. Além de seus passos hesitantes, conseguiam ouvir as batidas fortes de
seus corações.
O marido foi quem, tremendo de espanto, escancarou a porta do quarto. A
luz estava acesa e a lâmpada, dependurada do teto, ainda balançava, mas Eliseu
não estava mais na cama. Os dois tiveram a mesma e estranha intuição e correram
juntos até a janela, inteiramente aberta. As plantas, cá embaixo, no jardim,
guardavam o silêncio das estrelas, que se mantinham acordadas na imensidão do
céu.
Belíssimo conto.
ResponderExcluirDiria eu: braffiniano.
Brigadão, Matheus.
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