
Curso de Letras do Centro Universitário Mauá
AS CICATRIZES DO CONSERVADORISMO EM
O CASARÃO DA RUA DO ROSÁRIO, DE MENALTON BRAFF
Natali Fabiana da Costa e SILVA *
BRAFF, M. O casarão da Rua do Rosário. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2012.
Menalton Braff surpreende seu leitor mais uma vez com seu
último romance O casarão da Rua do Rosário (2012). Sob a perspectiva do menino
Palmiro, os acontecimentos da ditadura militar, que contemplaram greves de
operários, revoltas populares, lutas clandestinas e desaparecimento de civis,
são captados pelo olhar sensível do narrador. Através de memórias da infância e
juventude, ele compartilha as experiências de um período cujas dimensões
políticas não podia ainda compreender, mas era capaz de sentir por meio da
atmosfera de tensão e temor que ameaçava sua vida familiar. A situação acabou
por culminar no desaparecimento de seu pai e consequente mudança para o austero
casarão à Rua do Rosário, onde habitavam quatro tias solteiras, beatas, e um
tio com problemas mentais.
Autor de uma escrita cuja linguagem cruza os limites da
poesia, um dos méritos do romance em questão é o cuidado na elaboração do
narrador. Em primeira pessoa, Palmiro, já adulto, relata suas impressões do
passado buscando resgatar a ótica da criança que vivera conflitos familiares
advindos da grave tensão política. Vale ressaltar que o narrador não se atém
somente às memórias de menino, mas acompanha o seu amadurecimento, buscando uma
mundividência que percorra cada fase de Palmiro, da infância à vida adulta, já
como consagrado médico psiquiatra. O passado é, a todo instante, entrecortado
pelo presente, numa espécie de jogo em “zigue-zague”, em que a enunciação
invade o enunciado e a luz do presente esclarece as sombras do passado,
ressignificando-o. Nesse jogo, o narrador não se oculta atrás da criança, mas,
afirmando-se enquanto persona autônoma, cede vida e voz ao menino Palmiro, tal
qual “no século XX, o apresentador de marionetas surge no palco
com os seus bonecos: mais poderoso do que eles, deixa de esconder-se e torna-se ele
próprio o centro do espetáculo” (TADIÉ, 1992, p.12).
O jogo memorialístico no qual fragmentos de lembranças se
mesclam às impressões do presente – procedimento que constitui marca da
escrita braffiana, assim como a linguagem poética – corrobora para o tratamento do
tema no romance que, para além das cicatrizes dos nossos anos de chumbo, aborda também
a rotina e o pensamento dos habitantes do casarão da Rua do Rosário: os membros da
família Gouveia de
Guimarães. O casarão é habitado pelas tias de Palmiro.
Benvinda, a mais velha, rege a vida dos que ali habitam. Sob a égide dos bons costumes e da
moral cristã, é de maneira austera que essa irmã zela pelo nome da família comandando
com mão de ferro as regras de conduta da casa.
Debaixo de tal regime, o lema da família Gouveia de
Guimarães é defender a ordem, acreditando que “Cada brasileiro que ama este país
tem o dever de denunciar todos os representantes da baderna, os inimigos do
cristianismo” (BRAFF, 2012, p.236). Em desalinho, dois irmãos padecem as consequências
por desafiarem o sistema da casa. O primeiro é Ataulfo que, pela sua deficiência
mental, é alijado do convívio social, vivendo em uma edícula nos fundos da casa, longe das
irmãs. Além dele, há Isaura, caçula, mãe de Palmiro e esposa de Bernardo, um
militante político desaparecido. A ela cabe suportar, juntamente com os filhos,
constantes humilhações das irmãs e também do bem sucedido e idolatrado Romão, irmão
que mora em outra parte da cidade.
O desprezado núcleo familiar – Isaura e seus três filhos
Palmiro, Irene e Dolores –, habitantes do casarão devido à difícil situação econômica
a que foram submetidos pela prisão do pai, protagoniza a oposição ao regime da
época, a um Brasil que deveria se silenciar em nome dos bons costumes e do progresso em
detrimento da liberdade de expressão e dos direitos humanos. A ditadura não é tema novo
na obra de Braff.
Em Na teia do sol (2004), a angústia mental do narrador de
codinome Tito, escondido em cativeiro durante a época da repressão militar no Brasil, é
um exemplo da preocupação do autor com esse período. Deitado em sua cama, já seguro em
seu esconderijo, Tito relembra as cenas de tortura pelas quais passou imiscuindo
sua voz à do torturador. Distante de afirmar que Na teia do sol e O casarão da Rua do
Rosário sejam
romances autobiográficos, é inevitável cotejar o tema
recorrente na obra do autor à sua própria vida, pois, em 1964, Braff foi obrigado a abandonar
a Universidade e sua família no Rio Grande do Sul e entrar para a
clandestinidade, somente reaparecendo anos mais tarde, em São Paulo, local onde
iniciou sua carreira profissional e literária.
As experiências vividas não apenas por Braff, mas por
milhares de brasileiros no período da ditadura militar, foram transfiguradas
pela sensibilidade do autor, plasmando nas malhas literárias a atmosfera de
tensão e dor que transformou o país em território do medo por aproximadamente
duas décadas. O menino Palmiro, testemunha da repressão e perseguição política narra
sua visão sobre os acontecimentos em cinco capítulos, cada qual sublinhando sua
relação com um dos Gouveia de Guimarães. A perspectiva da criança, do
adolescente e, por fim, do adulto Palmiro estende-se para além dos anos da
ditadura, alcança a abertura política e segue até o impeachment de nosso
ex-presidente evidenciando as profundas cicatrizes do conservadorismo brutal de
nossa sociedade.
* Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp, onde pesquisa as obras do autor Menalton Braff desde o Mestrado. UNESP/Araraquara. Rod. Araraquara-Jaú Km1, São Paulo. e-mail: natali_costa@hotmail.com
BRAFF, M. Na teia do sol. São Paulo: Planeta do Brasil,
2004.
Referências:
______. O casarão da Rua do Rosário. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2012.
TADIÉ, J-Y. Quem fala aqui? In: ______. O romance no século
XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, Lda, 1992, p.12.
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