O manobrista de um estacionamento onde costumo deixar o
carro foi com a minha cara e agora não me vê sem que me venha contar uma
história. Não posso declinar seu nome por causa do envolvimento moral da
história de hoje. Mas, creiam-me, é um jovem do qual não tenho razões para
suspeitar. Alguns mais antigos, e outros mais pernósticos, diriam que se trata
de um jovem de moral ilibada. Apenas por necessidade narrativa, digamos que seu
nome seja Valdecir.
O Valdecir, segundo me consta, nunca leu Machado de Assis.
Pelo menos, quando lhe perguntei se tinha alguma notícia do Brás Cubas, enrugou
a testa, coçou a cabeça e me respondeu perguntando se era alguma coisa de
beber. Fiquei um pouco espantado porque o Valdecir também não tem idade para se
lembrar daqueles tempos em que a gente usava cabelo comprido, calça
boca-de-sino (de tergal) e nos domingos à tarde, na garagem de algum amigo cuja
casa tivesse garagem, se embebedava de esperança no futuro e de cuba-libre.
Meu amigo me contou que há uns meses deu uma nota de cinco
para o cobrador (trocador, para quem mora no Rio) e recebeu quarenta e não sei
quantos reais de troco. Ao me relatar esse fato, ele sorriu com malícia e
acrescentou que o troco era mais, bem mais do que ele ganhava em um dia inteiro
e cansativo de trabalho. Mas devolvi, arrematou o Valdecir, glorioso. A gente
não deve se sujar por pouca coisa, não é doutor? Ele me chama de doutor. Aliás,
grau de que o Brasil, na visão geral das pessoas mais simples, está cheio.
O caso não seria muito complicado se a história parasse aí.
Mas não parou. Mudando inteiramente o semblante (uma ruga na testa, os lábios
secos e sem cor, um olhar aparvalhado) ele me contou, agora em voz ciciada, que
é como se chama a voz de segredo, que na semana passada encontrou em um banco
de um shopping uma bolsa preta com cinco mil reais. Nunca vira tamanho montão
de dinheiro num lugar só. Ninguém por perto, ninguém olhando, e a bolsa foi
parar, enrolada em uma blusa, na casa do Valdecir.
Desde então ele não dorme mais, sem saber o que fazer. E
isso porque se trata, no caso, de muita coisa com que se sujar. O sentido do
que ele quis desabafar comigo é mera questão de cálculo. Não se trata ainda de
uma questão moral. Sua relutância é por não saber se agora vale a pena, se o
montante de dinheiro é suficiente para compensar a dor na consciência.
Ouvi tudo e me calei. Agora minha vez de relutar. O que
dizer ao Valdecir, que não lhe fizesse mal? Ficar com o dinheiro ou devolvê-lo,
qualquer uma das atitudes deixaria meu amigo em conflito para sempre. Pobre
Valdecir, quão pouco posso fazer por você, que não teve a oportunidade de
formar valores sólidos em sua consciência e tem que se debater com questões
apenas de cálculos. Pobre Valdecir. Você teve a má sorte de encontrar a bolsa,
que agora já é cicatriz de que não poderá se livrar e, marcado, nunca vai saber
se agiu corretamente.
Não disse nada a meu amigo. Não o consolei com alguma
reflexão cínica sobre os políticos brasileiros, que isso jamais teria coragem
de fazer, mas também não lhe disse o que era necessário dizer. Por isso essa
crônica que me serve de desabafo e com que torno todos vocês cúmplices do
Valdecir.
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