sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto abaixo é do livro À sombra do cipreste, vencedor do Jabuti 2000 (livro do ano ficção) e reeditado (6ª edição) pela Global em 2012.

                                                            O banquete

“Atraído pela melodia, Gregor

foi-se arrastando para a frente, e en-

compridou a cabeça para

dentro da sala.”

A Metamorfose, Franz Kafka




“A Sra. Hennebeau, muito pálida, cheia de ódio contra

aquela gentalha que estragava um dos seus prazeres,

mantinha-se atrás, lançando olhares oblíquos e enojados,

enquanto Lucie e Jeane, apesar de trêmulas, espiavam

por uma fresta, não querendo perder nada do espetáculo.”

Germinal, Émile Zola



Ocupados, todos, com os prazeres da boa mesa e com o alegre exercício da conversação, ninguém, exceto Bia, percebe aquele vulto impreciso a deslizar lenta e silenciosamente para a sombra que o armário projeta no corredor. Ela assiste a toda a manobra, pasma, e seus olhos anoitecidos, adejando ao redor da mesa, movediços, sem se fixar em nenhum dos comensais, tentam dissimular o espanto.  Sensação de frio nas mãos e na testa, cobertas por fina camada de suor. A conversa dos convidados vai-se tornando um rumor distante, indecifrável. Apenas um rumor. Bia deixa momentaneamente de mastigar - os lábios finos e roxos mortos de tão parados.

       Cheio de mesuras e protocolos, ao chegar, este desembargador Aristides Aleixo, exageradamente formal para quem está na iminência de se tornar compadre, e agora, depois de algumas taças de vinho, descontrai-se e começa a contar suas anedotas, trovejante como nos tempos de tribunal do júri. Tenta reter o olhar de Bia, com insistência mas sem sucesso, porque ela está distraída; não interrompe, entretanto, sua história, só porque a dona da casa parece preocupada com outros problemas. A anfitriã, do fundo de sua exasperação, recolhe, entre pratos, travessas e terrinas, sobre a mesa, alguma coisa como  padre e confessionário, sem lhe alcançar o enredo. Bem conhece, no entanto, esse tipo de gracejo iconoclasta, que os de sua idade consideravam privilégio de sua geração: quase todos, na juventude, livres-pensadores. Acha que não fica bem, todavia, a um homem com sua posição, contar, à mesa, anedotas picantes, como se estivessem no salão de uma taverna. Sobretudo pelas personagens sagradas que envolvem e que não se devem desrespeitar. Herança ibérica, pensa, este vezo escarninho. Mesmo assim, procura demonstrar interesse (modo de agradar ao pai do futuro genro) sem conseguir: além da porta, imerso nas sombras do corredor, o idiota, imóvel, ameaça a noite com seu sorriso flácido, meio torto e úmido.

Quando, por fim,  todos começam a rir, Bia olha para trás, esconde a seriedade no bojo das mãos, disfarça,  pois já sabe que não poderá imitar os demais e teme parecer ridícula. Na verdade, não sabe o que foi feito do padre nem do confessionário. Enxuga discretamente, no guardanapo, o suor do rosto que lhe ficou nas mãos. Talvez não haja motivo para sustos: encoberto pela sombra, o fardo de sua vida pode muito bem passar despercebido.

  Retoma suas funções de anfitriã, dirigindo os principais movimentos que acontecem à mesa e providenciando para que nada falte aos convidados. A maré das conversas ora flui ora reflui, caótica, formando vários grupos pequenos, por vezes, para depois integrar a todos novamente em um único e grande grupo. Não chega a estar feliz, mas já se sente bem mais confortável. A idéia de que provavelmente o estorvo não seja notado pelos outros a tranqüiliza. Graças a Deus, suspira, tudo não passara de um susto de uns poucos minutos. A conversação retorna ao caminho plano e largo das amenidades, depois da grosseria do desembargador. Ela se deixa embalar por risos discretos e tinir de talheres, símbolos da felicidade que mais preza: companhia dos amigos e mesa farta. Feliz? Não, nem tanto, mas satisfeita com o ágape, em cuja preparação empregara todo o requinte exigido por sua condição social.

O sorriso, entretanto, lhe cai dos lábios, gelado e duro, ao ver os olhos aflitos com que a filha tenta preveni-la do perigo. Bia descobre, alarmada, que ele, o cansaço da vida inteira, a despeito de todas as recomendações e ameaças,  já está escapando da sombra, a um passo da sala de jantar. Aperta ainda mais os lábios finos, enruga a testa, arqueia as sobrancelhas em gestos que não pode fazer com as mãos (mesmo com o risco de parecer grotesca a quem não saiba por que tudo aquilo) para ver se o afugenta para o quarto. A boca semi-aberta, os olhos miúdos estranhamente cintilantes e fixos, ele parece fingir que não entende as ameaças e se mantém no mesmo lugar, plantado. Então Bia se lembra, quase enternecida, de que talvez tenham esquecido o jantar do coitado. Tanto movimento, tantas providências, que o esquecimento não seria impossível. 

Ajeita o coque, não por imaginá-lo desarranjado, mas porque precisa ir à cozinha. Levanta-se dizendo, à guisa de desculpa, algumas palavras enroladas, que ninguém entende, contorna a mesa em passo medido e certo, sempre sorrindo para a filha, em quem se fixa, acalme-se, a mamãe sabe o que faz, e desaparece.

- Um pedaço bem grande de bolo -  ordena Bia e, ao espanto da copeira, responde com leve arquear de sobrancelhas e um meio-sorriso  que ela pretende conivente e sedutor.

De volta a seu lugar, suspira aliviada, ajeita o coque, serve-se daquela cassolette de escargots que tanto ama e para a qual, ainda há pouco, não pudera nem olhar, inapetente, e prepara-se para assistir ao epílogo da ridícula tragicomédia a que fora submetida.

Não demora para que apareça na sombra do corredor a copeira em seu uniforme azul-marinho e branco, que lhe é exigido apenas em ocasiões especiais. Traz nas mãos um prato de sobremesa, onde, com toda certeza, há um imenso pedaço de bolo, que Bia não pode ver, mas que adivinha. Está certa de que Arnaldo não o recusará: devorador notório de qualquer tipo de doce. Sem despegar os olhos da sala de jantar, como se estivesse sentindo asco, ele empurra o prato com o antebraço. A Bia parece apenas incoerência de seu comportamento estúpido,  pois não pode imaginar o idiota  atraído pelo brilho dos talheres de prata e pelas peças de porcelana, pela gala dos convidados, belas e saudáveis pessoas, com suas vestes coloridas, pela iluminação abundante a descer em jorros de três lustres onde centenas de pequenas lâmpadas imitam velas com pingentes de brilhantes. Nunca vira, o coitado, espetáculo tão belo, nem entende o significado de tudo aquilo, mas não é com um pedaço de bolo que vão fazê-lo desistir de o contemplar. A copeira insiste passando o bolo perto de seus olhos, a pouca distância de seu nariz, aponta, diz alguma coisa que Bia não consegue ouvir, finalmente, com medo do ronco ameaçador de Arnaldo, seu olhar procura o da patroa na cabeceira da mesa. Ergue os ombros, abre os braços, fiz o que pude!

Os patos à Califórnia são recebidos com aplausos gerais, provocados principalmente pelo modo suntuoso como são apresentados: duas empregadas de uniforme azul-marinho entram na sala de jantar segurando as duas pontas de uma travessa de prata com noventa centímetros de comprimento; entre arranjos de pêssegos, cachos de uvas, cerejas, ameixas e (idéia de Bia) copos-de-leite trançados com rosas príncipe negro, aparecem dois patos dourados, fumegantes ainda, com as   coxas roliças apontadas para o céu.

Apesar da expectativa quanto ao efeito causado pela entrada do prato de resistência, Bia aproveita o tumulto para afastar-se rapidamente pela porta que leva à cozinha. Quer só ver se ele vai desobedecer-lhe. Reaparece no corredor, os lábios finos colados e roxos, a testa enrugada, fiapos de cabelo soltos pendidos para os ombros. Segura com firmeza o braço de Arnaldo, que não demonstra a menor surpresa com a rispidez de seu gesto. Aproxima o rosto de seu ouvido e cochicha-lhe, vem, mas ele nem se volta, absorto na contemplação de um espetáculo que desconhece e com que está deslumbrado. Vem, ela repete um pouco mais enfaticamente, puxando seu braço, para o quarto, já. O idiota faz um ar de aborrecimento, alguma coisa o incomoda, mas não se move, pesado, cravado no chão. Bia sente asco de si mesma ao pensar que em seu corpo, belo e sadio, dentro dele, foi gerado um ser tão ignóbil como aquele. Crava-lhe silenciosamente as unhas no braço: o quarto agora mesmo ou uma semana sem comida, seu porco. Arnaldo solta um grunhido de dor, abafado, mas não encara a mãe.

Aos poucos ela o arrasta pelo corredor, sem nada mais dizer, pois emprega na empresa toda a força de que dispõe.

Quando volta à mesa, restabelecida a ordem cá e lá, ajeita o coque, recolhe os fios soltos de cabelo e responde serenamente que apenas um súbito mal-estar, resíduo de uma gripe mal curada.

                                                     

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