O conto abaixo é do livro À sombra do cipreste, vencedor do Jabuti 2000 (livro do ano ficção) e reeditado (6ª edição) pela Global em 2012.
“Atraído pela
melodia, Gregor
foi-se
arrastando para a frente, e en-
compridou a
cabeça para
dentro da
sala.”
A Metamorfose, Franz Kafka
“A Sra. Hennebeau, muito pálida, cheia de ódio contra
aquela gentalha que estragava um dos seus prazeres,
mantinha-se atrás, lançando olhares oblíquos e enojados,
enquanto Lucie e Jeane, apesar de trêmulas, espiavam
por uma fresta, não querendo perder nada do espetáculo.”
Germinal, Émile Zola
Ocupados, todos, com os
prazeres da boa mesa e com o alegre exercício da conversação, ninguém, exceto
Bia, percebe aquele vulto impreciso a deslizar lenta e silenciosamente para a
sombra que o armário projeta no corredor. Ela assiste a toda a manobra, pasma,
e seus olhos anoitecidos, adejando ao redor da mesa, movediços, sem se fixar em
nenhum dos comensais, tentam dissimular o espanto. Sensação de frio nas mãos e na testa, cobertas
por fina camada de suor. A conversa dos convidados vai-se tornando um rumor
distante, indecifrável. Apenas um rumor. Bia deixa momentaneamente de mastigar
- os lábios finos e roxos mortos de tão parados.
Cheio de mesuras e protocolos, ao chegar, este desembargador
Aristides Aleixo, exageradamente formal para quem está na iminência de se
tornar compadre, e agora, depois de algumas taças de vinho, descontrai-se e
começa a contar suas anedotas, trovejante como nos tempos de tribunal do júri.
Tenta reter o olhar de Bia, com insistência mas sem sucesso, porque ela está
distraída; não interrompe, entretanto, sua história, só porque a dona da casa parece
preocupada com outros problemas. A anfitriã, do fundo de sua exasperação,
recolhe, entre pratos, travessas e terrinas, sobre a mesa, alguma coisa
como padre e confessionário, sem lhe
alcançar o enredo. Bem conhece, no entanto, esse tipo de gracejo iconoclasta,
que os de sua idade consideravam privilégio de sua geração: quase todos, na
juventude, livres-pensadores. Acha que não fica bem, todavia, a um homem com
sua posição, contar, à mesa, anedotas picantes, como se estivessem no salão de
uma taverna. Sobretudo pelas personagens sagradas que envolvem e que não se
devem desrespeitar. Herança ibérica, pensa, este vezo escarninho. Mesmo assim,
procura demonstrar interesse (modo de agradar ao pai do futuro genro) sem
conseguir: além da porta, imerso nas sombras do corredor, o idiota, imóvel,
ameaça a noite com seu sorriso flácido, meio torto e úmido.
Quando, por fim, todos começam a rir, Bia olha para trás,
esconde a seriedade no bojo das mãos, disfarça,
pois já sabe que não poderá imitar os demais e teme parecer ridícula. Na
verdade, não sabe o que foi feito do padre nem do confessionário. Enxuga
discretamente, no guardanapo, o suor do rosto que lhe ficou nas mãos. Talvez
não haja motivo para sustos: encoberto pela sombra, o fardo de sua vida pode
muito bem passar despercebido.
Retoma suas funções de anfitriã, dirigindo os
principais movimentos que acontecem à mesa e providenciando para que nada falte
aos convidados. A maré das conversas ora flui ora reflui, caótica, formando
vários grupos pequenos, por vezes, para depois integrar a todos novamente em um
único e grande grupo. Não chega a estar feliz, mas já se sente bem mais
confortável. A idéia de que provavelmente o estorvo não seja notado pelos outros
a tranqüiliza. Graças a Deus, suspira, tudo não passara de um susto de uns
poucos minutos. A conversação retorna ao caminho plano e largo das amenidades,
depois da grosseria do desembargador. Ela se deixa embalar por risos discretos
e tinir de talheres, símbolos da felicidade que mais preza: companhia dos
amigos e mesa farta. Feliz? Não, nem tanto, mas satisfeita com o ágape, em cuja
preparação empregara todo o requinte exigido por sua condição social.
O sorriso, entretanto,
lhe cai dos lábios, gelado e duro, ao ver os olhos aflitos com que a filha
tenta preveni-la do perigo. Bia descobre, alarmada, que ele, o cansaço da vida
inteira, a despeito de todas as recomendações e ameaças, já está escapando da sombra, a um passo da
sala de jantar. Aperta ainda mais os lábios finos, enruga a testa, arqueia as sobrancelhas
em gestos que não pode fazer com as mãos (mesmo com o risco de parecer grotesca
a quem não saiba por que tudo aquilo) para ver se o afugenta para o quarto. A
boca semi-aberta, os olhos miúdos estranhamente cintilantes e fixos, ele parece
fingir que não entende as ameaças e se mantém no mesmo lugar, plantado. Então
Bia se lembra, quase enternecida, de que talvez tenham esquecido o jantar do
coitado. Tanto movimento, tantas providências, que o esquecimento não seria
impossível.
Ajeita o coque, não por
imaginá-lo desarranjado, mas porque precisa ir à cozinha. Levanta-se dizendo, à
guisa de desculpa, algumas palavras enroladas, que ninguém entende, contorna a
mesa em passo medido e certo, sempre sorrindo para a filha, em quem se fixa,
acalme-se, a mamãe sabe o que faz, e desaparece.
- Um pedaço bem grande de
bolo - ordena Bia e, ao espanto da copeira,
responde com leve arquear de sobrancelhas e um meio-sorriso que ela pretende conivente e sedutor.
De volta a seu lugar,
suspira aliviada, ajeita o coque, serve-se daquela cassolette de escargots que
tanto ama e para a qual, ainda há pouco, não pudera nem olhar, inapetente, e
prepara-se para assistir ao epílogo da ridícula tragicomédia a que fora
submetida.
Não demora para que
apareça na sombra do corredor a copeira em seu uniforme azul-marinho e branco,
que lhe é exigido apenas em ocasiões especiais. Traz nas mãos um prato de
sobremesa, onde, com toda certeza, há um imenso pedaço de bolo, que Bia não
pode ver, mas que adivinha. Está certa de que Arnaldo não o recusará: devorador
notório de qualquer tipo de doce. Sem despegar os olhos da sala de jantar, como
se estivesse sentindo asco, ele empurra o prato com o antebraço. A Bia parece
apenas incoerência de seu comportamento estúpido, pois não pode imaginar o idiota atraído pelo brilho dos talheres de prata e
pelas peças de porcelana, pela gala dos convidados, belas e saudáveis pessoas,
com suas vestes coloridas, pela iluminação abundante a descer em jorros de três
lustres onde centenas de pequenas lâmpadas imitam velas com pingentes de
brilhantes. Nunca vira, o coitado, espetáculo tão belo, nem entende o
significado de tudo aquilo, mas não é com um pedaço de bolo que vão fazê-lo
desistir de o contemplar. A copeira insiste passando o bolo perto de seus
olhos, a pouca distância de seu nariz, aponta, diz alguma coisa que Bia não
consegue ouvir, finalmente, com medo do ronco ameaçador de Arnaldo, seu olhar
procura o da patroa na cabeceira da mesa. Ergue os ombros, abre os braços, fiz
o que pude!
Os patos à Califórnia são
recebidos com aplausos gerais, provocados principalmente pelo modo suntuoso
como são apresentados: duas empregadas de uniforme azul-marinho entram na sala
de jantar segurando as duas pontas de uma travessa de prata com noventa
centímetros de comprimento; entre arranjos de pêssegos, cachos de uvas,
cerejas, ameixas e (idéia de Bia) copos-de-leite trançados com rosas príncipe
negro, aparecem dois patos dourados, fumegantes ainda, com as coxas roliças apontadas para o céu.
Apesar da expectativa quanto
ao efeito causado pela entrada do prato de resistência, Bia aproveita o tumulto
para afastar-se rapidamente pela porta que leva à cozinha. Quer só ver se ele
vai desobedecer-lhe. Reaparece no corredor, os lábios finos colados e roxos, a
testa enrugada, fiapos de cabelo soltos pendidos para os ombros. Segura com
firmeza o braço de Arnaldo, que não demonstra a menor surpresa com a rispidez
de seu gesto. Aproxima o rosto de seu ouvido e cochicha-lhe, vem, mas ele nem
se volta, absorto na contemplação de um espetáculo que desconhece e com que
está deslumbrado. Vem, ela repete um pouco mais enfaticamente, puxando seu
braço, para o quarto, já. O idiota faz um ar de aborrecimento, alguma coisa o
incomoda, mas não se move, pesado, cravado no chão. Bia sente asco de si mesma
ao pensar que em seu corpo, belo e sadio, dentro dele, foi gerado um ser tão ignóbil
como aquele. Crava-lhe silenciosamente as unhas no braço: o quarto agora mesmo
ou uma semana sem comida, seu porco. Arnaldo solta um grunhido de dor, abafado,
mas não encara a mãe.
Aos poucos ela o arrasta
pelo corredor, sem nada mais dizer, pois emprega na empresa toda a força de que
dispõe.
Quando volta à mesa,
restabelecida a ordem cá e lá, ajeita o coque, recolhe os fios soltos de cabelo
e responde serenamente que apenas um súbito mal-estar, resíduo de uma gripe mal
curada.
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