segunda-feira, 22 de abril de 2013

CARTA CAPITAL| AINDA ME LEMBRO



Morávamos em Santiago, noroeste do Rio Grande do Sul, e eu era muito pequeno, menor do que agora posso imaginar. Além de meus dois pés plantados no piso, pouca coisa de mim existia. Ah, sim, existia a imaginação. Até hoje tenho propensão para acreditar em quase tudo que me dizem e naquele tempo minhas certezas não iam além do que me diziam.

Meu pai era um ser diferente de mim, de uma outra espécie. Ele era um homem, alguma coisa bem próxima de um tronco de árvore, uma pequena montanha. Aquele ser, em geral, passava-me o sentimento de segurança. Em seus braços, eu me lembro, sentia-me inatingível. Quase sempre.

Quando meu pai chegava em casa com um jornal ou revista na mão (em tempos de guerra as pessoas querem saber, coisa que meu pai sempre quis, mesmo em tempos de paz) era cercado por mim e por meus irmãos mais velhos, curiosos de ver as fotos que nos chegavam da Europa em guerra. Casas em ruínas, pontes destroçadas, corpos mutilados, aviões despejando bombas, imagens de explosões, aquelas terríveis imagens de cones invertidos, tudo isso era o que excitava nossa imaginação, e é claro, alimentava nosso medo.

Lembro-me vagamente de meus irmãos dizerem que os aviões, de uma hora para outra, podiam começar a despejar bombas sobre nós. Então eu começava a imaginar nossa casa em ruína, nossos corpos mutilados.

Eu não queria morrer bombardeado, meu Deus, como eu não queria. Eu dizia isso baixinho, repetia com a boca gelada de medo, dormia repetindo esse desejo.

Quando passava um avião pelo céu, quase sempre um teco-teco do aeroclube local, eu tapava os ouvidos enquanto corria desesperado à procura de um abrigo. Nunca mais vou esquecer o terror que sentia. Meus abrigos principais eram a mesa da sala ou a cama de meus pais. A mesa tinha uma toalha grande e a cama era coberta por uma colcha azul. Nos dois casos eu conseguia esconder-me onde ninguém me visse e ali esperar que o avião fosse procurar outras vítimas.

Durante quase toda minha vida fui testemunha de algumas guerras. Foram poucos, bem poucos os períodos de paz. Já ia quase me acostumando. A guerra tornava-se uma coisa banal, corriqueira, e invariavelmente tão distante que assumia a neutralidade dos números, dos dados estatísticos. Sente-se mais a morte de um indivíduo cuja história conheçamos do que de centenas e milhares que os noticiários nos mostram como meras quantidades.

Ia quase me acostumando. De repente, vejo uma foto de crianças mutiladas, mortas, entre escombros do que provavelmente terá sido sua casa, seu abrigo: o lar. Então refluiu-me à memória tudo que vivi em um passado distante: na minha infância.

Quer então dizer que não adianta o tempo passar, que o homem não aprende nada com a experiência e continua o mesmo monstro de sempre?

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