Morávamos em Santiago, noroeste do Rio Grande do Sul, e eu
era muito pequeno, menor do que agora posso imaginar. Além de meus dois pés
plantados no piso, pouca coisa de mim existia. Ah, sim, existia a imaginação.
Até hoje tenho propensão para acreditar em quase tudo que me dizem e naquele
tempo minhas certezas não iam além do que me diziam.
Meu pai era um ser diferente de mim, de uma outra espécie.
Ele era um homem, alguma coisa bem próxima de um tronco de árvore, uma pequena
montanha. Aquele ser, em geral, passava-me o sentimento de segurança. Em seus
braços, eu me lembro, sentia-me inatingível. Quase sempre.
Quando meu pai chegava em casa com um jornal ou revista na mão (em tempos de guerra as pessoas querem saber, coisa que meu pai sempre quis, mesmo em tempos de paz) era cercado por mim e por meus irmãos mais velhos, curiosos de ver as fotos que nos chegavam da Europa em guerra. Casas em ruínas, pontes destroçadas, corpos mutilados, aviões despejando bombas, imagens de explosões, aquelas terríveis imagens de cones invertidos, tudo isso era o que excitava nossa imaginação, e é claro, alimentava nosso medo.
Lembro-me vagamente de meus irmãos dizerem que os aviões, de
uma hora para outra, podiam começar a despejar bombas sobre nós. Então eu
começava a imaginar nossa casa em ruína, nossos corpos mutilados.
Eu não queria morrer bombardeado, meu Deus, como eu não
queria. Eu dizia isso baixinho, repetia com a boca gelada de medo, dormia
repetindo esse desejo.
Quando passava um avião pelo céu, quase sempre um teco-teco
do aeroclube local, eu tapava os ouvidos enquanto corria desesperado à procura
de um abrigo. Nunca mais vou esquecer o terror que sentia. Meus abrigos
principais eram a mesa da sala ou a cama de meus pais. A mesa tinha uma toalha
grande e a cama era coberta por uma colcha azul. Nos dois casos eu conseguia
esconder-me onde ninguém me visse e ali esperar que o avião fosse procurar
outras vítimas.
Durante quase toda minha vida fui testemunha de algumas
guerras. Foram poucos, bem poucos os períodos de paz. Já ia quase me
acostumando. A guerra tornava-se uma coisa banal, corriqueira, e
invariavelmente tão distante que assumia a neutralidade dos números, dos dados
estatísticos. Sente-se mais a morte de um indivíduo cuja história conheçamos do
que de centenas e milhares que os noticiários nos mostram como meras
quantidades.
Ia quase me acostumando. De repente, vejo uma foto de
crianças mutiladas, mortas, entre escombros do que provavelmente terá sido sua
casa, seu abrigo: o lar. Então refluiu-me à memória tudo que vivi em um passado
distante: na minha infância.
Quer então dizer que não adianta o tempo passar, que o homem
não aprende nada com a experiência e continua o mesmo monstro de sempre?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças