O fragmento abaixo é do romance juvenil No fundo do quintal publicado pela Editora FTD em 2010.
Então eu paro, teso pensante,
parado olhando. Olho pra trás e pra frente. Nossa trilha não progrediu grande
coisa, mas agora o mato é mais ralo e menos grosso, acho que vamos abrir mais
rápido. Nas árvores, estas troncudas aí, não mexo, elas ficam como estão. O que
preciso derrubar são estas varetas de canela fina e arrancar o mato rasteiro
pra deixar uma trilha de terra. A Fernanda me diz que estou brilhando, o rosto
e o peito suados. O sol não dá folga e aqui o ar não se mexe de tão velho que é
o lugar. A Fernanda está sequinha porque não faz força. Às vezes eu brigo com a
Fernanda, principalmente quando não entende o que eu quero e me parece que não
entende porque não quer. Minha irmã. Muito minha irmã. Não preciso de
companheira melhor do que ela. Pois minha irmã vem me ajudando bastante. Os
arbustos que derrubo e a relva que arranco com a enxada é ela quem recolhe e
leva pra um monte lá perto do muro da direita, depois daqueles cacos de telha.
Assim a trilha já vai ficando limpa.
Hoje foi nosso primeiro dia de aula
e fiquei conhecendo um pouco os colegas, e quatro professores. A Beatriz
freqüenta a mesma escola, mas a gente só se encontrou no recreio. Nós três
ficamos juntos, o tempo todo. A Fernanda fica rindo de mim porque eu não sei o
que dizer, assim, de coisa séria. Mas acho que nem preciso. Depois dos deveres
foi que viemos para o fundo do quintal.
Minha irmã me pergunta: O que é que
você viu? E eu não respondo logo, ainda calculando, escolhendo, vendo o que se
pode fazer. Ou o que se deve fazer. Só então explico à minha irmã que uma
trilha em linha reta, como eu tinha pensado no início, é um caminho que
qualquer idiota pode descobrir. E nossa cabana não pode ficar exposta a
qualquer olho de infiel, por isso estou pensando num plano diferente, com passagens
secretas de uma trilha à sua continuação, mas em ziguezagues, como num
labirinto. Tenho de explicar a ela o que é labirinto, eu, que não tenho muita
paciência pra explicações. Prometo a ela que depois eu empresto o livro da
lenda do Teseu e do Minotauro. Acho que a Fernanda vai gostar.
Bem, já escolhi uma passagem entre
duas árvores, dois passos à esquerda sem derrubar o mato. Fica um túnel por
onde vamos ter de passar de quatro. A Fernanda arranha o joelho e ameaça
chorar. Que aventureira é você, eu pergunto, que chora por causa de um
arranhãozinho sem-vergonha como este? Minha tática de apelar aos brios dela dá
certo e ela continua avançando pelo túnel. Se tivesse cabelo mais comprido,
minha irmã, acabava engarranchada no teto de nosso túnel: cipós, baraços com
espinhos e galhos.
Ela desemboca do túnel, de quatro,
mas com um ar tão triunfante, que o orgulho dela parece que fica escorrendo de
sua boca. Esta sim, esta é a minha irmã.
Começo a derrubar o mato e com
muita dificuldade a Fernanda vai jogando o que derrubo pra fora da trilha.
Agora ela não tem mais como carregar tudo até o muro da direita. Passar de
quatro pelo túnel com as mãos cheias de mato, é claro, isso é impossível. Mas
ela se vira bem, vai enfiando tudo que corto, arranco, derrubo, nas laterais da
trilha. Volto a sentir muito calor, apesar de estarmos protegidos pela sombra
rala de uma árvore. E é como eu pensava: no mato mais ralo o progresso é mais
rápido.
Acho que está na hora de arrombar o
mato por baixo e criar outro túnel, mas agora para a direita. Assim. A Fernanda
dá risada das minhas ideias e diz que eu
devia ter nascido índio, pois me dou muito bem no meio do mato.
Ouvimos um barulho de graveto
quebrando e paramos com o silêncio abrindo muito nossos olhos. Foi ali,
pertinho, é a minha impressão. A Fernanda me olha com o medo travando seu
olhar. Mas o que será que foi isso? Finalmente tento encorajar minha irmã e
garanto que foi um gato. Que outro bicho poderia andar por aqui, num terreno
todo murado, nos fundos de uma casa? Meus pelos começam a desarrepiar, respiro
muito melhor agora, por isso acho que podemos continuar arrombando o mato pra
terminar o túnel. Já falta bem pouco.
O lugar aqui está ótimo, bem
protegido pelo mato mais fechado e não muito longe do muro dos fundos.
− Agora, eu digo pra Fernanda,
enquanto eu abro uma clareira aqui, você vai buscar a picareta, certo? Deixei
lá perto daquela poltrona esburacada. Sabe onde é, não é?
E ela, minha irmã, soldado valente,
se atira pelo túnel e desaparece. O barulho dela se arrastando vai atrás dela e
some também.
Fico sozinho construindo nossa
cabana com a imaginação. Claro que antes de começar fiz mil perguntas a meu
pai, pedi explicações e sugestões, sem que ele percebesse o plano que dentro da
minha cabeça já começava a nascer. Quatro esteios enterrados, cercando quatro
metros quadrados: duas vezes dois. Aprendi isso no ano passado. Um aqui, outro
ali, e os outros dois lá adiante. O terreno aqui é plano e vai ser fácil criar
um piso de terra bem socada.
Aí vem ela com a picareta na mão e
um brilho vitorioso no rosto. A Fernanda. Por mim eu até que parava por aqui,
braços, pernas, o corpo todo pagando pela falta de costume, mas no posto de
comandante não posso demonstrar cansaço.
A parede da frente vai ficar aqui,
então dou a primeira picaretada e abro um buraco na terra. Minha irmã dá um pulo
com um grito saudando o início de nossa cabana. A alegria dela me dá força que
se distribui pelo corpo todo. Continuo alargando e afundando o buraco onde
vamos fixar o primeiro esteio. Enquanto isso, a Fernanda vai terminando de
limpar o espaço escolhido.
− Sabe, Eugênio, eu vi um gato em
cima do muro, lá no fundo. Quando me viu, ele se jogou desesperado e
desapareceu.
A picareta bate numa pedra, lá no
fundo. A Fernanda não ouve o barulho porque não para de falar sobre o gato, com
toda certeza o barulho que a gente tinha ouvido, não é mesmo? Abro um pouco
mais o buraco e encontro no fundo mais uma vez esta pedra.
− Fernanda, vem até aqui. Você não
acha que o barulho da pedra é meio estranho?
Minha irmã se concentra com a
cabeça me atrapalhando e peço que ela se afaste um pouco. Ela se agacha para
ficar mais perto do barulho. Bato com a ponta mais fina da picareta na pedra: o
mesmo barulho.
− Parece que tem uma coisa oca aí
em baixo, Eugênio. Um barulho redondo.
Tiro mais um pouco de terra com a
mão, espiamos os dois, e, no fundo não distinguimos nada além de uma pedra que
parece muito grande.
Nossa mãe grita o nome da Fernanda
depois o meu, preocupada com o sumiço da gente. É hora de interromper os
trabalhos.
− Nem um pio, combinado?
− Combinado.
Selamos o acordo com o estouro das
mãos abertas encontrando-se no ar.
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