O conto abaixo é antigo, mas inédito.
Mãos ao alto
Num dos primeiros bancos, Márcio ouvia perplexo, extático, as palavras
que rolavam do púlpito, tonitruantes e imperiosas: Quem de vós, sabendo que a
casa do vizinho está para incendiar, não corre para avisá-lo? Quem de vós,
sabendo que um desastre se aproxima, não procura salvar seu semelhante? Ai de
vós, raça de filisteus, cujas ações jamais correspondem às intenções. Vosso
vizinho está para arder no fogo eterno e não tendes um minuto para salvá-lo?
Pois no dia do juízo tereis de dar conta de todos aqueles que deixastes perecer
sem aviso, sem o conhecimento da palavra.
À noite, ainda impressionado com o que ouvira pela manhã, Márcio demorou
muito para mergulhar num sono agitado, cheio de sonhos angustiosos. Viu-se no
alto de uma colina, sozinho, imerso num facho de brilho intenso, tão intenso
que ele não podia abrir os olhos. Do alto, descendo pelos raios de luz, uma voz
de trovão o acusava de inércia e o condenava à morte numa fogueira.
Segunda de manhã, Márcio acordou suado e com um propósito gravado em seu
coração. Tomou seu desjejum, beijou a esposa e os filhos, pegou sua bíblia e
saiu. Não, jamais perderia uma oportunidade, por ínfima que fosse. Morrer numa
fogueira?, ele pensava, e já sentiu o cheiro de carne assada.
Arrumou as ferramentas no porta-malas da Brasília, sentou-se ao volante
e, antes de dar a partida, ergueu as duas mãos espalmadas para o alto e
implorou: Senhor, tende piedade de um pobre pecador. Reconheço meus antigos
pecados, e os novos também, mas prometo divulgar vosso santo nome em todas as
oportunidades que se apresentarem.
Mais aliviado e com menos medo do castigo, bateu a mão na chave e deu a
partida. Era frágil ainda seu conforto espiritual porque não passava da
tentativa de negociar com Deus um passado real, acontecido, e cheio de pecados,
dando-lhe em troca um futuro de piedade, mas apenas virtual, que não passava de
uma promessa. Caso Deus quisesse não confiar muito em suas intenções, estava no
seu direito, mas isso, em lugar de desanimá-lo, como seria natural, enchia-o
ainda mais da vontade de livrar-se do fogo eterno, avisando quanta gente
pudesse dos perigos que corriam.
Tinha entrado no bairro onde pintava uma bela mansão e faltavam apenas
três quarteirões para chegar a seu destino. Diminuindo a marcha por causa de um
cruzamento, o que vê Márcio na calçada do lado direito? Um portão inteiramente
aberto, dois carros na garagem e uma porta escancarada.
Márcio não titubeou. Brecou sua Brasília e desceu apressado. A empregada
vinha carregando um balde e uma vassoura e recebeu ordem para levantar as mãos
e voltar.Ela sentiu-se assaltada, evidentemente, jogou os trens no chão e
voltou de mãos para o alto. Ao pisar no vestíbulo, encontrou um casal
assustado, em movimento de quem se despedia. Mãos ao alto, e todos na sala,
gritou Márcio, todos na sala. Hoje vocês vão ser salvos. Na sala, já disse, e
foi para cima do casal, que ainda não havia entendido o que acontecia. No
caminho encontrou a filha do casal, cuja minissaia o perturbou, mesmo assim
gritou para que ela seguisse na mesma direção. E mãos ao alto! O menino só apareceu,
ainda estremunhado e com um pouco de susto nos olhos inchados por causa do
barulho inusual, quando os outros já ocupavam seus lugares na sala.
Formado o círculo dos ouvintes assaltados, Márcio empunhou a bíblia com
desenvoltura, e começou a ler por um capítulo dos mais curtos do livro de
Gênesis. O canto esquerdo de sua boca, em que se repuxavam os lábios, era a
involuntária demonstração da felicidade de quem começa a saldar uma dívida
capaz de tirar o sono. Ao passar para o livro do Êxodo, molhou a ponta do dedo
na língua e folheou aleatoriamente as folhas de papel seda até encontrar um
capítulo compativelmente curto. Fez uma pausa quase dramática, olhou seu
público assombrado e recomeçou a leitura.
O filho mais novo, que não tinha ainda lavado o rosto nem escovado os
dentes, cochichou no ouvido da mãe que estava com fome. Márcio suspendeu
imediatamente a leitura e improvisou um pequeno discurso a respeito da fome e
sede de justiça. A filha de minissaia, encantada com a capacidade de
improvisação do assaltante esteve a pique de aplaudi-lo.
Só a empregada não conseguia desfazer a cara de choro. Márcio, comovido,
perguntou o que se passava com ela. A empregada declarou baixinho que mais um
minuto e deixaria o tapete molhado. Por isso, recebeu permissão para
ausentar-se, mas não por muito tempo.
As leituras já invadiam o livro dos Salmos, escritos por um rei poeta,
quando finalmente a empregada voltou. Era um tempo exagerado.
Márcio levantou-se e apontando-lhe a bíblia, vociferou: Criatura maligna,
em nome do Senhor dos exércitos, prosterna-te. A empregada, que não entendia a
ordem recebida, sentou-se calmamente no mesmo lugar que já ocupara. Os outros
todos se entreolharam curiosos a respeito do verbo prosternar-se, mas
descobriram pelos mútuos olhares que não, ninguém sabia o que era aquilo. O
menino, não tinha passado ainda do nível vocabular de sobrevivência. A filha
tinha um vocabulário mais extenso, mas ocupado principalmente com palavras referentes
a assuntos de moda, também não sabia. O pai e a mãe, que se ocupavam de
negócios ficaram abismados: como é que em sua sala, em plena luz do dia, podia
aquele senhor proferir tal palavra?!
Márcio percebeu rapidamente que havia encontrado uma barreira
intransponível ao dar sua ordem, então convidou a todos para que se
genuflexionassem como ele. E mostrou como era. Foi prontamente atendido, pois
não havia ali quem não carregasse o peso de algum pecado.
Quando a polícia entrou na sala, depois de ter invadido a casa, estavam
todos ajoelhados e com as mãos ao alto, implorando perdão.
Os cinco policiais recém-chegados, gostaram da idéia e genuflexionaram
também. Terminada a sessão, Márcio levantou-se, abençoou a todos e foi cuidar
de seu trabalho.
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