O conto seguinte foi tirado do livro A coleira no pescoço, coletânea de contos publicada pela Bertrand Brasil, em 2006.
Em Branco e Preto
A penumbra do quarto esconde as mãos trêmulas e enrugadas
com que Homero arruma desde cedo as gavetas da cômoda, e que se recolhem cheias
de recordações e de cansaços, para repousarem sobre as coxas. Até quase com
frio, elas, tão brancas, quando a cidade transpira. Na fachada do hotel,
janelas mouriscas de pestanas fechadas tentam proteger o sono leve de seus
quartos. Apenas uma, no terceiro andar, escancara-se impudica sobre a rua. É
por ela que Homero já veio espiar duas vezes a entrada do hotel. Um olhar meio aparvalhado de quem teme e quer ao mesmo
tempo. Duas vezes ele voltou a sentar-se na frente da cômoda para retomar o
trabalho. Há cinco anos ele vem fazendo isso sozinho. Não pode dizer que esteja
cansado, nem diz, mas não gosta de manter sozinho suas coisas em funcionamento,
como se uma vida sendo feita.
Os olhos apalpam o tecido, sua cor, e é quase
imperceptível o sorriso com que identifica: esta camisa de cambraia amarela e
uma gravata listrada. Em que baile e com quem? Quase mais nada resta do baile.
Além da camisa. Mesmo o rosto de Isaura. Mesmo ele já começa a sofrer ausências
bem prolongadas. Do sorriso de sua mulher pouco resta além da palavra sorriso.
Sua imagem aprisionada em umas fotografias cada vez mais estranhas e imóveis.
Como frases de uma página já morta.
Levanta-se, irresoluto, dois sulcos de insegurança no
rosto. Como se uma alegria, ele pensa emocionado ao distender os membros,
alongando. Uma alegria inteiramente física, o prazer do corpo? Ainda não se admite a entrega da alma: um
leve sentimento de culpa. Aquilo uma traição? Aproxima-se novamente da janela
e, reclinado sobre o parapeito, mergulha a cabeça branca e os ombros estreitos
na luz. Olha a cidade escondida por baixo dos telhados e sente um pouco de
calor. Olha com insistência para o calor da cidade porque não entende como
tanta gente consegue esconder-se do sol que desde cedo se despeja em carne viva
sobre o casario.
Passeia pelo quarto,
espécie de jaula escolhida ao acaso depois que Isaura tornou-se uma lembrança.
E todas as vezes em que passa pela frente da janela olha o calor do lado de
fora. Retorna a seu lugar na frente da cômoda, em cujas gavetas vai guardando suas recordações, e recomeça com paciência o
trabalho. Nunca foi tão urgente arrumar suas gavetas. Botar ordem nas coisas da
vida. Mas não tem pressa. Depois de cinco anos, aquela tontura com gosto de
vertigem: um olhar de mulher. Não acreditava que as pernas lhe voltassem a
tremer. E tremeram. Seus dedos percorrem as pregas e nervuras de uma cueca e
seus olhos passeiam pela sombra do quarto, pelas paredes impessoais e nuas. Há
quantos anos! Ela ainda pouco mais que uma adolescente. Tira as peças de uma
gaveta e as dobra com cuidado, colocando-as em outra, onde pareçam mais harmonicamente
ajustadas. Ou as joga sobre a cama para que ali fiquem à espera, na muda espera
de quem, por mais que tente, não encontra seu lugar.
Olha-se no espelho tentando descobrir o que pode ter
restado de Isaura em seus próprios olhos. Mas não a encontra. Coça a cabeça
no esforço de trazer de volta a fisionomia da mulher. Em vão. É como lhe
costuma acontecer quando tenta buscar na lembrança os traços dos pais: são fisionomias
que se superpõem movediças umas sobre as outras, mas todas congeladas pela
resina do tempo.
O reflexo do sol é o brilho de uma pequena janela no
porta-retratos sobre a cômoda. Um brilho
que não permite a Homero reconhecer Isaura na fotografia. Um brilho que
incomoda. Espicha o braço e muda o ângulo do retrato, fazendo o brilho
desaparecer. Ao fundo, a casa com a tinta ainda fresca, latas e cavaletes ao
lado, pequenas mudas de tuia e areca recém-plantadas na parte fronteira, e o
rosto vitoriosamente jovem de Isaura. Seus cabelos longos e loiros em que o sol
pintava trigais. Em primeiro plano, de pé como uma deusa, quase eterna. Tenta
recuperar aquele momento, instante de vida e movimento, seus ruídos, suas
esperanças. Enruga a testa, no esforço, coça novamente a cabeça. Só encontra a
rigidez de um sorriso preso no papel acetinado. As tuias tornaram-se árvores
altas e esguias, a casa envelheceu. Hoje um edifício de dez andares ocupa
aquele pedaço da paisagem.
Às vezes se lembra da voz de Isaura, a inflexão
melodiosa de algumas frases, como aquela exclamação que repetia com freqüência
“Ah, então é isso!”, em que se demorava na pronúncia do “i”, e era seu modo de
viver: a cada momento uma descoberta. Mas não se lembra das circunstâncias em
que a ouvia. Nem se lembra quando quer lembrar-se, porque é ato involuntário,
sabe Deus resultado de que associações.
Batidas leves na porta do quarto interrompem as
divagações de Homero. Ele torna a mirar-se no espelho, de relance, apenas,
porque desconfiado, e o que vê é um rosto de adolescente assustado. Fecha
afobadamente as gavetas da cômoda e nem toma cuidado para que desapareçam todas
as roupas que estivera guardando. Ao levantar-se, descobre na fotografia, em
primeiro plano, uma deusa de cabelos curtos e castanhos. Quase eterna.
*
Um conto, como deve ser um conto! Tamanho certo, bem focado!
ResponderExcluirObrigado, Ritinha.
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