sexta-feira, 24 de maio de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

 O conto seguinte foi tirado do livro A coleira no pescoço, coletânea de contos publicada pela Bertrand Brasil, em 2006.
 Em Branco e Preto

A penumbra do quarto esconde as mãos trêmulas e enrugadas com que Homero arruma desde cedo as gavetas da cômoda, e que se recolhem cheias de recordações e de cansaços, para repousarem sobre as coxas. Até quase com frio, elas, tão brancas, quando a cidade transpira. Na fachada do hotel, janelas mouriscas de pestanas fechadas tentam proteger o sono leve de seus quartos. Apenas uma, no terceiro andar, escancara-se impudica sobre a rua. É por ela que Homero já veio espiar duas vezes a entrada do hotel. Um olhar  meio aparvalhado de quem teme e quer ao mesmo tempo. Duas vezes ele voltou a sentar-se na frente da cômoda para retomar o trabalho. Há cinco anos ele vem fazendo isso sozinho. Não pode dizer que esteja cansado, nem diz, mas não gosta de manter sozinho suas coisas em funcionamento, como se uma vida sendo feita.
Os olhos apalpam o tecido, sua cor, e é quase imperceptível o sorriso com que identifica: esta camisa de cambraia amarela e uma gravata listrada. Em que baile e com quem? Quase mais nada resta do baile. Além da camisa. Mesmo o rosto de Isaura. Mesmo ele já começa a sofrer ausências bem prolongadas. Do sorriso de sua mulher pouco resta além da palavra sorriso. Sua imagem aprisionada em umas fotografias cada vez mais estranhas e imóveis. Como frases de uma página já morta.  
Levanta-se, irresoluto, dois sulcos de insegurança no rosto. Como se uma alegria, ele pensa emocionado ao distender os membros, alongando. Uma alegria inteiramente física, o prazer do corpo?  Ainda não se admite a entrega da alma: um leve sentimento de culpa. Aquilo uma traição? Aproxima-se novamente da janela e, reclinado sobre o parapeito, mergulha a cabeça branca e os ombros estreitos na luz. Olha a cidade escondida por baixo dos telhados e sente um pouco de calor. Olha com insistência para o calor da cidade porque não entende como tanta gente consegue esconder-se do sol que desde cedo se despeja em carne viva sobre o casario. 
Passeia pelo quarto, espécie de jaula escolhida ao acaso depois que Isaura tornou-se uma lembrança. E todas as vezes em que passa pela frente da janela olha o calor do lado de fora. Retorna a seu lugar na frente da cômoda, em cujas gavetas  vai guardando suas  recordações, e recomeça com paciência o trabalho. Nunca foi tão urgente arrumar suas gavetas. Botar ordem nas coisas da vida. Mas não tem pressa. Depois de cinco anos, aquela tontura com gosto de vertigem: um olhar de mulher. Não acreditava que as pernas lhe voltassem a tremer. E tremeram. Seus dedos percorrem as pregas e nervuras de uma cueca e seus olhos passeiam pela sombra do quarto, pelas paredes impessoais e nuas. Há quantos anos! Ela ainda pouco mais que uma adolescente. Tira as peças de uma gaveta e as dobra com cuidado, colocando-as em outra, onde pareçam mais harmonicamente ajustadas. Ou as joga sobre a cama para que ali fiquem à espera, na muda espera de quem, por mais que tente, não encontra seu lugar.
Olha-se no espelho tentando descobrir o que pode ter restado de Isaura em seus próprios olhos. Mas não a encontra.  Coça a cabeça  no esforço de trazer de volta a fisionomia da mulher. Em vão. É como lhe costuma acontecer quando tenta buscar na lembrança os traços dos pais: são fisionomias que se superpõem movediças umas sobre as outras, mas todas congeladas pela resina do tempo.
O reflexo do sol é o brilho de uma pequena janela no porta-retratos sobre a cômoda.  Um brilho que não permite a Homero reconhecer Isaura na fotografia. Um brilho que incomoda. Espicha o braço e muda o ângulo do retrato, fazendo o brilho desaparecer. Ao fundo, a casa com a tinta ainda fresca, latas e cavaletes ao lado, pequenas mudas de tuia e areca recém-plantadas na parte fronteira, e o rosto vitoriosamente jovem de Isaura. Seus cabelos longos e loiros em que o sol pintava trigais. Em primeiro plano, de pé como uma deusa, quase eterna. Tenta recuperar aquele momento, instante de vida e movimento, seus ruídos, suas esperanças. Enruga a testa, no esforço, coça novamente a cabeça. Só encontra a rigidez de um sorriso preso no papel acetinado. As tuias tornaram-se árvores altas e esguias, a casa envelheceu. Hoje um edifício de dez andares ocupa aquele pedaço da paisagem.
Às vezes se lembra da voz de Isaura, a inflexão melodiosa de algumas frases, como aquela exclamação que repetia com freqüência “Ah, então é isso!”, em que se demorava na pronúncia do “i”, e era seu modo de viver: a cada momento uma descoberta. Mas não se lembra das circunstâncias em que a ouvia. Nem se lembra quando quer lembrar-se, porque é ato involuntário, sabe Deus resultado de que associações.
Batidas leves na porta do quarto interrompem as divagações de Homero. Ele torna a mirar-se no espelho, de relance, apenas, porque desconfiado, e o que vê é um rosto de adolescente assustado. Fecha afobadamente as gavetas da cômoda e nem toma cuidado para que desapareçam todas as roupas que estivera guardando. Ao levantar-se, descobre na fotografia, em primeiro plano, uma deusa de cabelos curtos e castanhos. Quase eterna.
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