sexta-feira, 16 de agosto de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto abaixo está no livro inédito O peso da gravata.
Vestido de dor
Seus dedos nervosos de unhas arroxeadas sufocam minhas mãos cobertas de suor, e no pavor de seus olhos posso ver a morte que, mal escondida nas pupilas, já me olha vizinhando. No quarto, só nós duas, por sua exigência, e o silêncio duro e seco da agonia: aquela respiração difícil. Revestida de laca branca, a porta nos dá certa intimidade e isola-nos do corredor, por onde passam lépidas enfermeiras de passo lépido, que cumprimentam com sua brancura nossos parentes de olhares mortos, amontoados numa saleta ao lado, onde esperam apreensivos e mudos um desfecho, qualquer que seja.  


Preciso esfregar os olhos para espantar a ardência do sono, mas minha irmã não larga minhas mãos. Já faz algum tempo que ela parece reunir forças para me dizer por que me pediu que viesse urgente. 

Passei a noite toda viajando, pois era o apelo de uma moribunda, e a um pedido assim, apesar de tudo, não se pode recusar socorro. Viajei com os olhos fechados, trancada para os tempos que correm. Eu queria estar sozinha comigo, porque, depois de muitos anos, envolvia-me novamente com minha irmã mais velha, e o passado me chegou dolorido como se eu voltasse a ser criança.

Apagaram-se as luzes, brilhando, sobre a mesa, apenas as três velinhas. A sala estava apinhada de gente pequena como eu, divertindo-se com línguas-de-sogra, balões coloridos e chapéus de aniversário. Eu me sentia muito alegre porque era o centro de todas as atenções. Por isso batia palmas sem parar, com minhas mãos ainda gordas e sem malícia. De pé no alto de uma cadeira, eu me equilibrava com o auxílio de minha mãe e sabia que estavam cantando para mim. E meu coração fazia uma festa pequena, uma festa do meu tamanho. Então me senti uma borboleta leve leve, de asas amarelas muito luminosas. Quando todos pararam e gritaram pique-pique, minha mãe, que tomava conta de meu equilíbrio, me disse que apagasse as velinhas. Cheguei a me inclinar para elas, mas, de repente, o fogo transformou-se em fumaça escura, a primeira fumaça de minha vida. Minha irmã, mais perto do bolo que eu, saiu pulando e rindo depois de derrubar no piso as velas que reacendiam teimosas. Fiquei triste e comecei a chorar, mas achei que era assim mesmo: direitos de irmã mais velha. Então parei. E isso foi o que vi: minha mãe estava com um sorriso nos olhos e nos lábios, mas olhou-me adivinhando o futuro. E o que viu foi que a deixou séria desconcertada. Nosso abraço, meu e dela, ainda não poderia ser uma profecia, pois com aquelas pernas inseguras e roliças quem pode saber o que é estar no mundo? Minha alegria voltou pelo cheiro bom de minha mãe, de seu colo, onde me vi com o rosto enfiado.

O ônibus parou para que os passageiros esticassem as pernas e tomassem um lanche rápido. Enxuguei os olhos com a mão esquerda, enquanto usava a direita para me firmar nos balaústres, e desci também. O restaurante era uma ilha luminosa tatuada no escuro rosto da noite.

Ela fecha os olhos e sua respiração se regulariza num ritmo bem humano. Apesar do cansaço e do sono, espero resignadamente pelo que devo ainda ouvir. E, enquanto não tenho de enfrentar seus olhos de pedra, aproveito para contemplar seu rosto marcado por má velhice. Ela sempre foi magra, mas agora a pele parece não cobrir mais do que ossos. Descubro sem me espantar que em rosto magro o nariz é mais saliente. Quanto ao seu, causou-me sempre a impressão de que era uma arma que ela apontava para nós com ameaças sem disfarce. Seu nariz pontiagudo. Agora suas aletas fremem levemente com a entrada e a saída do ar. Seu nariz pontiagudo já não me infunde medo e posso contemplar sem pressa este rosto onde se demoram os traços da agonia.

Assim que recebi a ligação de uma sobrinha desconhecida, corri à rodoviária. Sua voz era estranha e não me deixava alternativa. Era um apelo que não parecia mais deste mundo e encarei a viagem como um imperativo categórico. A senhora precisa salvar uma alma, era o que ouvia pelo telefone. No início da noite deixava minha cidade sem saber o que encontraria pela frente.

De novo no ônibus, mantive por algum tempo a cortina aberta. Sombras de árvores e de morros desfilavam sem variação. No céu alternavam-se nuvens escuras com manchas mais claras em que cintilavam parcas estrelas. Cansada da paisagem monótona, fechei a cortina e os olhos, voltando à infância sem controle nenhum da minha vontade, com os pensamentos soltos no pasto.

Quando chegamos a casa, fui cercada pela curiosidade sorridente de todo povo que veio saber então como é que foi. Orgulhosa em meu uniforme novo, respondia contente às perguntas que me faziam sobre meu primeiro dia de aula. Minha irmã observava de longe a cena e eu não entendia por quê.

Foi depois do almoço, o rosto marcado pelos muitos beijos recebidos, que voltei ao quarto para guardar o material. Aguardava-me um choque jamais esquecido. Sobre minha cama, a cartilha com que sonhara nos últimos anos e que eu tinha acabado de usar na escola, tinha algumas páginas rasgadas e outras inteiramente rabiscadas. Minha irmã passou correndo e rindo pela frente da porta. Antes que eu pudesse entender o que acontecia, ela já estava lá na cozinha me acusando de ter feito aquilo.

Doeram-me as repreensões injustas de minha mãe, que não quis acreditar na minha defesa. Eu vinha aos poucos entendendo o mundo, e tal era a frequência com que era tratada como irmã mais nova, que mesmo os castigos imerecidos pareciam-me parte de minha condição de caçula. Herdeira de irmã mais velha, as roupas que já não lhe serviam chegavam-me com manchas e rasgos inexplicáveis. O sonho que então me perseguia durante quase todas as horas do dia era comigo alta e magra, com um nariz pontiagudo apontando para as pessoas e ordenando tudo que me viesse à cabeça. Eu queria ser aquela irmã com todos os seus privilégios.

Ela reabre os olhos e começa a mover os lábios secos, de onde o sangue já parece ter fugido. No silêncio branco do quarto, ouço as sílabas que vou juntando abismada. O inferno, não. Não o inferno, não. Descubro, então, em seu rosto, as marcas do terror de quem já vislumbra o inferno.

Não sei o que fazer ou dizer, porque o modo como se agarra em minhas mãos, puxando-as, e o jeito como me bebe com os olhos sem brilho, por um momento penso que minha irmã quer arrastar-me consigo para o outro lado.

Meu vizinho de banco começou a roncar com uma sonoridade descabida, o que me trouxe para a superfície dessa viagem. Sua irmã está muito mal, disse aquela sobrinha desconhecida. Muito mal, mas não quer descolar a alma do corpo sem vê-la uma última vez.

Fazia muitos anos que não tinha mais notícias dela. A separação deu-se pouco depois de meu casamento. Durante o namoro não tive maiores problemas. Mantive em segredo o que estava acontecendo, e ninguém da família me atrapalhou. Mas um dia resolvemos juntar nossos destinos e não tive escolha senão botar aliança de noivado, como exigiam as famílias. Tanto as boas quanto as más, e não sei como classificar a minha.

A partir do momento em que meu noivo recebeu permissão para me encontrar em casa, meu sossego acabou. Tenho a impressão de que minha irmã mais velha, então muito solteira, agradou-se daquele homem jovem que toda semana aparecia lá em casa. Vinha sempre interromper nosso namoro com pequenas ofertas, com olhares langorosos e frases ambíguas. Chegou a tentar uma intriga entre nós dois, dizendo a ele que eu me encontrava em segredo com um rapaz de nossa rua. Não foi fácil convencer meu noivo, mas ele confessou-me depois de casados, que percebia as manobras de minha irmã.

O que finalmente nos separou para sempre aconteceu numa noite de Natal. Eu estava casada há pouco mais de um mês, e meu vestido de noiva estava ainda guardado em um baú de nossa mãe. 

Meu marido e eu chegamos cedo para a festa, a tempo de ajudarmos nos últimos preparativos. Chegaram alguns tios e primos, como era costume, e eu não acreditava em nada que pudesse atrapalhar a alegria de meu primeiro Natal de casada.

Quando já estávamos todos reunidos na sala, a mesa posta, os homens um pouco mais alegres por causa das bebidas, só então vimos minha irmã descendo as escadas como alguém que desce das nuvens para visitar os mortais. Ficamos todos deslumbrados com a realeza de seus gestos, a beleza de seu penteado e a elegância de seu vestido. Cá embaixo, contudo, ao abraçá-la, foi que o branco fulgurante de seu vestido me fez mal. O modelo era bem diferente, nada que lembrasse meu vestido de cauda longa, mas eu conhecia aquele tecido, eu conhecia cada figura, cada entrançado dos fios, conhecia até o cheiro daquele pano, e meu coração não se aquietou mais. Corri ao baú de nossa mãe, e não encontrei meu vestido. Ela se havia apoderado dele. Aleguei uma dor terrível de cabeça para irmos embora. E nunca mais nos encontramos.

Ontem, logo depois do almoço, recebi a ligação de uma sobrinha desconhecida que me fez um apelo que não me deixava escolha. A senhora tem de salvar uma alma, tia. Agora tenho os olhos ardendo de sono e o corpo moído de cansaço. Resolvo por fim dizer alguma coisa e tento acalmá-la com a promessa de que não vou deixá-la perder-se nos caminhos do inferno.

Minha irmã abre o quanto pode os olhos e me contempla algum tempo. Desfaz-se por instante a expressão de terror de seu rosto. Ela volta a mover os lábios e a ouço pedir:

─ Me perdoa.

Seus dedos magros afrouxam e os olhos perdem inteiramente o brilho. Não tenho tempo de lhe dar meu perdão. 



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