O conto que segue está inédito.
Imperador de papel
Como a descoberta tardia de uma vocação. Ou a descoberta tardia de uma
vocação. Talvez o encontro, finalmente, de um si mesmo em potência, latente,
que, latejante, vem a furo. Um ser tem escolha de si, do modo como será?
Ninguém nasce pronto, forma acabada, mas por isso tem poder de escolha? Nos
lugares de sombras, onde o sol jamais, e a umidade, como saber o que existe, se
espelho algum desce ao fundo?
Minha culpa, entretanto. Não um pecado, pois já cataloguei minhas
descrenças; tampouco um crime, que um crime exige uma ação qualquer. Ou sua
omissão. Apenas o exercício da função para a qual me chamaram. Isso pode ser a
colisão quase milagrosa de dois corpos na imensidão do universo, mas não há
culpa.
Tínhamos decidido, costume antigo, jantar juntos depois da estréia. Na
calçada, em frente ao teatro e enquanto as luzes se apagavam, ficamos atônitos
com o que vimos.
A escolha do elenco e a distribuição dos papéis foi o início do jogo.
Início fácil, quase natural, pelas qualidades conhecidas de atrizes e atores.
Ninguém reclamou da parte que lhe coube. Isto é, quase ninguém. Como é
representar um imperador?, questionava Pedro, enquanto os demais, muito
enroupados de panos grossos e coloridos, já brincavam de ser o que não eram,
todos rindo barulhentos mercê do entusiasmo com que já se imaginavam no palco.
Pedro era o único a parecer descontente, me olhando de testa enrugada, por
isso resolvi gastar mais tempo com ele.
‒ Ninguém, como você, Pedro, tem essa voz soberana e essa sua cabeça
imperial.
Ele me olhava desconfiado enquanto eu explicava as razões de minha
escolha. Por fim, conformou-se Pedro com seu papel e prometeu aceitar meu
conselho para que estudasse bem a vida íntima, os gestos e o pensamento de um
imperador.
Bem sei que na primeira leitura de mesa poderia ter mudado o rumo do que
aconteceria, mas tenho a meu favor o fato de que em todos os segundos da vida
estamos mudando o rumo do futuro desconhecido. Como saber o que então seria se
não fosse o que é? Eis por que não me sinto culpado.
O elenco todo foi brilhante na leitura e nas discussões. Alguma correção,
umas poucas sugestões, isso sempre acontece. Pedro, contudo, tinha alguma coisa
na voz, um trêmulo e uma espécie de suavidade que, para mim, não eram seus,
muito menos de um imperador.
Na despedida, fui saindo ao lado de Pedro, disfarçado dentro de mim, como
alguém que apenas está saindo. Perguntei a ele se já começara a estudar a
personagem: E daí, já começou a estudar a personagem? O modo entusiasmado de sua
resposta me espantou um pouco, por isso não quis continuar o assunto. Me contou
que encontrou vários textos na biblioteca, alguns com descrições muito vivas e
coloridas. Como se estivesse vendo, ele repetiu com rosto iluminado de
satisfação. Como se estivesse vendo.
Na esquina, cada um de nós foi enfrentar sozinho o frio da noite no rumo
de casa. E a cidade ouvia nossos passos na calçada com certa reverência
sonolenta e silenciosa. Estava em mim alterar o futuro? Conheço o jogo e me fio
em suas regras. Tempo havia de sobra para as correções e os desvios necessários.
Menos de um quarteirão à frente, já enredava os pensamentos em alguns fiapos de
sonhos movediços, e o principal deles era o sonho com a noite de estréia. Um
sonho de gozo e sofrimento com que dou cor à ansiedade.
Nas semanas seguintes andei distraído com gestos a refazer, entonações a
modificar, ritmos a corrigir. O grupo era muito competente e cada um, com sua
experiência, contribuía para o conjunto. Nunca dirigi com mão de ferro, mas
retocava tudo que me parecesse incoerente e despropositado. Desse tempo, me
ficou a vaga impressão de que Pedro continuava falseando a voz, muito diferente
daquilo que esperávamos dele.
Poucos dias antes do ensaio geral ninguém mais tinha problemas com as
deixas ou com o texto. Ninguém tropeçava mais em palavras e as marcações, no
palco, já não nos preocupavam nem um pouco. Os ensaios tornavam-se o afinamento
da peça (o brilho final) e eu mais usufruía o que estava feito do que
trabalhava.
Ocupado com os outros, não pode haver outra explicação. Já conhecia o
trabalho de Pedro, um ator jovem que me agradava, por ser muito estudioso e
executar suas tarefas com extrema seriedade e um tanto de severidade. Muitas
vezes chegava a ser extrema mesmo, sua seriedade. Quando, cansados após um
ensaio, nos reuníamos em volta de uma mesa de bar, Pedro mantinha-se muito
tempo calado, ouvindo os outros, rindo poucas vezes e bebendo quase nada.
Jamais soube que ele consumisse droga alguma, em nosso meio uma prática comum.
Era sempre o primeiro a decorar seu texto, a sugerir intenções, a ajudar os
colegas. Ocupado com os outros, só podia ser isso, não prestei atenção no que
acontecia com Pedro.
Ainda não era uma preocupação. Contava com meu
poder de persuasão para convencer Pedro a mudar de voz. Eu tinha acabado de
entrar no teatro quando o vulto dele apareceu no quadrilátero da porta. Andava
devagar, e seus gestos, mesmo os mínimos, tinham adquirido uma solenidade
majestática que me impressionaram. Estendeu-me a mão para o cumprimento e
inclinou muito de leve a cabeça. Resolvi, naquele momento, ter uma conversa
mais demorada com ele.
Não havia ninguém na platéia e ocupamos duas poltronas bem perto do
palco. Fiz um longo preâmbulo antes de dizer a ele que um imperador, como eu
queria, tinha de ter uma voz um tanto rude e dirigir-se aos outros com certa
rispidez. Falei dos gestos também: largos, bruscos, acompanhados de um olhar
severo.
Pedro me ouviu com um ar um tanto absorto, como se não fosse ele nosso
assunto. Quando parei de falar, ele sorriu e disse que eu estava equivocado.
Isso que você quer, Teobaldo, isso não é um imperador. O que você está me
propondo é só um estereótipo. Me contou que desde o dia em que assumiu o papel,
vinha estudando pra burro tudo que encontrasse sobre a vida de Dom Pedro II. E
ele não foi um imperador?
Discutimos algum tempo sobre certas necessidades da linguagem teatral,
que nem sempre pode abrir mão de algum estereótipo, porque gestos e imagens não
deixam de ser uma significação para o espectador. É preciso levar em conta um
conhecimento prévio da platéia pra que se estabeleça a comunicação. Ele fingia
me ouvir. Eu sei que ele apenas fingia me ouvir. Notei a imobilidade do arco de
suas sobrancelhas como moldura de uns olhos aguados, aqueles olhos de
contemplar estrelas.
Por fim, ele prometeu muito esforço para enquadrar sua interpretação em
meu pedido. E andou, realmente tentando. Até mesmo no ensaio geral percebi que
ele tinha evoluído, e o que estava fazendo já era satisfatório.
Em noite de estréia sempre peço que atores e atrizes cheguem ao teatro
uma hora antes, para o último laboratório e a meia hora de concentração.
Quando Pedro chegou, senti uma dor aguda que me pareceu no baço, uma dor
que me repuxou o lado esquerdo do baixo ventre. Ele entrou no saguão olhando
para o infinito e com um sorriso esboçado com tanto tédio que todos começamos a
cochichar. Deu a mão a todos da companhia e pareceu muito admirado pelo fato de
ninguém ter-se curvado em sinal de respeito.
Deitados na coxia, pedi que todos fechassem os olhos e mentalizassem as
personagens que representariam. Era um exercício comum, com que a gente de
teatro está perfeitamente acostumada. Durante o exercício, reparei que Pedro estava
muito pálido e executava uns gestos que não eram dele, como repuxar um dos
braços, mover a cabeça para um lado e outro. Cheguei caminhando com pés de
silêncio até perto dele. Sua respiração era arquejante e suas pálpebras
tremiam. No fim do exercício eu estava convencido de que Pedro estava sofrendo
muito, atacado, talvez, de alguma doença.
Antes do relaxamento, chamei Pedro a um canto e lhe perguntei se se sentia
bem. Com a dignidade e a calma de quem transcendeu sua condição terrena, Pedro
me respondeu que não, não estava bem, que recebera à tarde a notícia de que sua
filha Leopoldina tinha morrido na Áustria.
Tentei entender aquilo tudo como uma brincadeira e meia hora depois
estávamos com o pano de boca aberto recebendo os primeiros aplausos. Consegui
manter-me discreto e não comentei com os outros a impressão que me dominava.
Nosso desempenho foi um sucesso, apesar do estranho imperador que Pedro
representou. Na verdade, sua figura etérea agradou muito ao público.
No fim do espetáculo, corremos todos para os respectivos camarins, pois
tínhamos de nos desfazer daquelas roupas para o jantar de comemoração.
Vestido como estava, e com um semblante carregado de tristeza, Pedro
despediu-se de nós, dizendo que precisava dormir cedo, pois na manhã seguinte
embarcava para Viena.
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