sexta-feira, 27 de setembro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir encontra-se na coletânea de contos A dona da casa, ainda inédita.

Além do limite

Os primeiros passos dados logo depois do limite foram ainda passos hesitantes. Havia muita emoção a ser gasta, por tudo que ouvira e tudo em que acreditara desde criança a respeito daquele sítio. O leito da estrada, de um barro úmido e humoso até então, tornou-se leve e seco, com uma cobertura de areia fina que mal era sentida pelos pés.

Algumas centenas de metros à frente, a vegetação que emoldurava a estrada começava a perder o verde, as árvores transformavam-se em arbustos, a maioria sem folhas e de galhos retorcidos. Apesar do céu cada vez mais escuro, o velho pôde notar que, para a direita e para a esquerda da estrada, havia apenas um terreno plano até onde se podia ver, um terreno sem vegetação alguma, coberto pela mesma areia fina da estrada.
Por um impulso que nem ele mesmo se explicou, o velho olhou para trás, buscando com olhos opacos sua vila. Mas ela já sumira e a única coisa que ainda pôde enxergar foram suas próprias recordações abanando, dependuradas nos galhos mais altos de algumas árvores, cujas copas negras apareciam a distância.
Seus braços finos e rijos sofriam o efeito do frio, que ia aumentando à medida que penetrava nas zonas mais sombreadas do caminho. Para trás, cada vez mais, ia ficando sua vila, com todas as marcas que ele havia deixado nela, e, consigo, carregava todas as marcas que ela havia gravado nele.
As primeiras palavras que aprendera tinham sido à noite, ao pé da fogueira, ouvindo histórias exemplares contadas pelas pessoas mais velhas. Foi assim que aprendeu a respeitar as tradições que, desde tempos imemoriais, vinham sendo transmitidas naquele mesmo lugar, à noite, ao pé da fogueira.
A vila onde nascera era um conglomerado de casas no entroncamento de duas estradas. Ainda menino, teve de aprender que um dos braços da cruz formada pelas estradas era proibido além do limite. Quem segue aquele rumo, diziam os mais velhos, jamais volta. Cedendo à natural curiosidade infantil, muitas vezes viera até o cipreste, de onde podia contemplar o limite, além do qual era proibido passar.
Sua curiosidade diminuía com o passar dos anos, até que, em certa manhã de sol, já adolescente, lembrou-se de um dos hábitos da infância e, sem que ninguém o notasse, visitou novamente o cipreste. Seu desejo de ultrapassar o limite era tão grande, e o sentimento de mistério que envolvia seu marco era tal que lhe subiu um gosto amargo até a boca, contraíram-se os músculos, contorcidos, e um suor frio brotou de sua testa. Junto com o calafrio, começou a sentir muita tontura, o mundo girando, adernando, e ele pensou que seria arrastado pela estrada para além do limite. Foi abraçado ao esguio tronco do cipreste que não caiu.
Naquela mesma noite, resolveu consultar o ancião. O que existe além do limite?, ele perguntou assim que se assentaram ao pé da fogueira. O ancião extraviou seu olhar, que ora brilhava com os reflexos do fogo ora apagava-se numa escuridão total. E foi com esse olhar tenebroso que ele mirou o adolescente para responder que, meu filho, ninguém pode saber o que existe além do limite, pois ninguém jamais voltou de lá.
Muitas vezes, nos anos que se seguiram, assistiu à passagem de viajantes que tomavam o braço errado da cruz, aquele onde estava cravado o marco do limite. Os habitantes da vila acorriam para a estrada ansiosos, tentando evitar a desgraça. Homens e mulheres ficavam em volta do cipreste chorando e gritando. Volte!, era o grito que mais se ouvia. Volte! As mulheres, principalmente, choravam desesperadas ao ver que alguém não lhes dava ouvidos e continuava no rumo do desconhecido.
Sua barba cresceu, negra e basta à medida que ia assumindo funções na vida da vila. Granjeou o respeito dos conterrâneos pela inteligência e o espírito de justiça até ocupar o lugar de ancião. Foi assim que os anos correram sem deixar outra marca além de sua barba que branqueava irremediavelmente e de certa fraqueza dos membros, insidiosa e irreversível, mas que se estabelecia quase sem ser notada.
Num dos serões em que cumpria o rito da transmissão, certa noite, teve de ser acordado pelo grupo de jovens que o cercavam e a quem muito divertia o cochilo do ancião.
Desde algum tempo sentia-se sozinho, sem muito apego por seus semelhantes, mas, a partir da noite em que fora pego cochilando perto da fogueira, começou a sentir-se também inútil. Passava os dias andando com passos lentos pelos arredores da vila, meditando, examinando seu próprio passado, que lhe parecia cada vez mais distante.
Andando pelos arredores da vila, um dia deu com o tronco do cipreste, em cujo tronco há muito tempo se abraçara para não ser arrastado pela curiosidade de conhecer a estrada além do limite. A curiosidade, com os anos, diminuíra, mesmo assim o velho desceu o pequeno talude que o separava da estrada e partiu, com passo ainda titubeante, na direção do marco.
Os primeiros passos dados logo depois do limite foram ainda passos hesitantes. Havia muita emoção a ser gasta, por tudo que ouvira e tudo em que acreditara desde criança a respeito daquele sítio. O leito da estrada, de um barro úmido e humoso até então, tornou-se leve e seco, com uma cobertura de areia fina como se feita de fumaça que mal era sentida pelos pés.

2 comentários:

  1. Menalton,

    gostei demais do conto. Essa ideia de ciclo da vida (acentuada ainda pela repetição do primeiro parágrafo no final), de rendição e de desapego à própria vida quando o personagem decide percorrer a estrada, tudo, ficou sensacional. Que bom seria se o final de cada um de nós fosse assim, uma estrada onde a vida se torna cada vez mais fria, seca e sem luz.
    Que imagem tem esse conto!
    Obrigado. Abraço.

    Renê.

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  2. Sou eu quem agradece palavras tão gentis, René.

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