
(conto inédito)
Mas e eu, ela pensava em língua estrangeira na escuridão interrompida apenas pela vela de luz precária. Em seus olhos o ódio pela última pessoa do mundo a mais de quarenta quilômetros. Suas mãos tremiam feridas enquanto o velho molhava a barba com lágrimas antigas. Nem morrer em paz se pode neste inferno, ele dissera ao ser derramado no chão batido da choça. Nem morrer e as lágrimas desciam mornas para a barba crespa. Mas e eu, gritava seu pensamento adolescente, e seu rosto jovem duro se estriava de lágrimas anoitecidas.
O banquinho de três pernas foi posto de pé, e Gustavo
sentou-se alisando a corda de embira que ainda abraçava seu pescoço. Gustavo,
inteiramente envelhecido, desistente, sem direito algum, nem ao menos o de morrer.
A coleira, de tão rústica, machucava os olhos e a tristeza da filha. Mas e eu,
seu pensamento continuava insistindo, cada vez mais baixo.
Faltavam ainda algumas horas para o dia, e os catres ficaram
esfriando, mudos e com cheiro forte de corpos doloridos de trabalho.
Mal se viam, dançando sombras nas paredes de varas e
frestas, mal se olhavam rancorosos. Hilda, que tinha interrompido a fuga em voo
de Gustavo, a busca do além, precisava ainda carregar seus catorze anos nas
costas e sentia impossível fazê-lo sozinha onde habitavam cobras e pedras, e
animais ferozes ficavam dia e noite à espreita. Gustavo, completando sua
desistência, só não tinha contado com o barulho do banquinho, seu baque, ao ser
empurrado pelos dois pés dependurados. Seus caminhos divergentes: o que restava
de uma família, agora inteiramente bifurcada.
As lágrimas secaram, tanto as velhas quanto as jovens, ambas
salgadas do mesmo sal que vieram descobrir na América desconhecida: o paraíso
prometido.
Além dos banquinhos rústicos, tão-somente dois, erguidos
sobre três pernas magras, a mesa de tábua lavrada com o machado e o fogão de
pedras, onde as latas com água fervente e a comida, em suas horas. No canto
oposto à entrada, o pilão e a talha de barro; ele para apiloar, principalmente
o arroz colhido na várzea, ela para saciar as sedes noturnas e outros
embaraços. Por cima de suas cabeças, barrotes abarrotados de tentações, as que
eles provocaram no velho por causa da altura.
Nas varas internas, a parede
separando, uma abertura para o quarto, o lugar de amontoar o corpo pesado de
cansaço, e de chorar a terra um dia abandonada com toda a família em busca do
sonho adulto. Mas e ela, com que poderia sonhar nos seus nove anos de idade
além de bonecas loiras de olhos azuis? Apenas um biombo de varas separando pai
e filha, na hora da saudade e do sono.
No primeiro destino, a colônia, todos falando a mesma
língua, ainda sobravam os três, porque o casal de irmãos tinham-se extraviado
pelo mundo, a irmã mais velha num trem europeu, fumacento, com rumo que sua
idade não podia compreender, e o irmão, seguindo com o navio para as alturas,
distâncias, os lugares que nem a imaginação conseguia configurar. E a mãe, com
doença da viagem no navio, em menos de um ano deixou-a sozinha com o pai.
Aqui não fico mais, ele dizia, molhando de baba e lágrimas o
rosto frio e inorgânico da mulher deitada com os dedos cruzados dentro do
caixão. Nunca mais Hilda se lembraria da mãe que não fosse daquela cor de
entrar no céu, envolta pelo cheiro forte de flores murchas. A fumaça das velas.
Quatro velas pobres ajudando o mortuório. Tarde da noite e alguns patrícios,
companheiros de viagem, quase todos, falando baixinho para não perturbar o sono
de ninguém. E o pai, num canto, dizendo que aqui não fico mais, numa língua que
todos entendiam. Sem a esposa, agora ele queria de volta seus bosques limpos,
sua neve e os rebanhos de ovelha. Mas como, se o paraíso era tão exigente, e
não havia com que pagar a passagem de volta? Resumiu aqui, para significar
somente a colônia onde estavam, que em poucos dias abandonaram para esquecer
todos aqueles dias infelizes.
Com o trabalho de operário, na cidade, o paraíso encolhia-se
em excesso quase infernal, traduzido finalmente em comida três vezes ao dia,
casinha em bairro pobre e aluguel rico, e pouco, muito pouco mais. Não foi isso
que vim buscar, dizia o pai, e ficava triste. Nos curtos serões da cidade,
Gustavo cantava com lágrimas nos olhos e contava como tinha sido sua infância
de pastor. Maçãs, ele dizia, como não existem iguais no mundo. E a filha,
aprendendo com os colegas de escola a língua difícil deles, entendia as
recordações do pai, conhecia cada sílaba de sua voz meio estragada, e punha-se
a suspirar como se fossem também suas aquelas recordações.
Quando surgiu a oportunidade de ver o paraíso de perto, sua
porta aberta, Gustavo hesitou. Voltava para casa, desfalcado da família, mas
voltava a ver seus campos, onde pasciam rotundas ovelhas lanudas, sentia
novamente o sabor das nédias maçãs, e sentava-se ao pé do borralho enquanto a
neve descia silenciosa de brumas insondáveis? Percorria as trilhas conhecidas
de bosques limpos ou aceitava a gleba no sertão, ajudando este governo a povoar
regiões desabitadas?
Hilda mexia-se na cozinha, providências de dona de casa, sem
contudo tirar o olho do pai, que nada dizia, porque já diziam seus olhos fixos
num ponto qualquer da parede. Não consultou a filha, na hora da decisão, porque
uma criança, se sonha, sonha com bonecas loiras de olhos azuis. E sua Hilda,
mulher para o serviço de casa, era criança para ter opinião.
Até que um dia, o sol ainda bocejando, apareceu a carroça
que os levaria até a gleba que lhes tocava. Dois cavalos fortes, de grandes
patas e pernas possantes, sacudiam as caudas, parados na frente de uma casa
pobre de bairro afastado. Machado, enxada, facão, foice, martelo, serrote e
outras ferramentas fornecidas pelo serviço de imigração. Tudo num feixe padrão,
promessa de desenvolvimento regional. Mantimentos para um mês, em caixas de
tábuas claras e finas. Gustavo tremia muito ao conferir a carga com que se
encaminhava para seu futuro.
Ao partirem, Hilda olhou várias vezes para trás lastimando
tudo que deixava naquela casa, como sua cama, o fogão, sua primeira menstruação
e as vizinhas, com quem já conseguia conversar. Fungava sentida como quem parte
para o desconhecido, pois ela partia para o desconhecido. A carroça ia
abarrotada, mesmo assim só levava o essencial.
A primeira cabana, os medos noturnos − vozes de um povo de
animais demoníacos − ventos e chuvas
como jamais imaginara ver, o castigo do sol, tudo isso (o pavor de enfrentar
uma natureza rebelde) eram coisas do passado. Como dois homens, puseram-se a
trabalhar, mal chegados ao morro que agora era deles. Sem vizinhos com quem
discutir limites ou repartir o bolo de inhame. Sem conhecidos para quem se
queixar de uma dor de dente.
Gustavo ia deixando de cantar, o corpo moído do trabalho, as
lembranças entorpecidas. Chegava da roça arrastando as pernas, claudicando, e
muitas vezes sem comer jogava-se no catre à espera de que o sono o matasse um
pouco, pelo menos por algumas horas. Hilda, atenta ao único ser humano com quem
convivia inverno e verão, pensou que o pai já se esquecera das histórias de sua
infância: bosque limpo, rebanho de ovelhas, nédias maçãs e a neve dos meses de
inverno. Ele nunca mais falava sobre aquilo, não lhe contava mais como fora sua
vida. Ele parece que aos poucos desaprendia de falar. Em qualquer língua.
Apesar de não ter sido consultada sobre enterrar-se nas
brenhas daquele sertão, ela conformava-se com sua sorte, pois seu horizonte
estreitava-se em torno da família que lhe restara. Não era amor que a prendia
àquele homem taciturno, mas a certeza de que sua sobrevivência dependia dele.
Por isso acompanhou com preocupação as mudanças de humor do velho e afinou
vistas e ouvidos para evitar que lhe fugisse.
Com o baque do banquinho derrubado com as pontas dos pés
dependurados, Hilda saltou da cama mesmo antes de abrir os olhos. Empoleirada
na mesa, feroz, sua mão esquerda encontrou rápido a corda esticada que seus
olhos não podiam ver. Com dois, três golpes de faca a corda rompeu-se, e o
corpo do pai se derramou no chão batido da cozinha.
O velho pôs-se a tossir por causa do pescoço machucado,
enquanto a filha o punha sentado no outro banquinho de três pernas magras. Nem
morrer em paz se pode neste inferno, ele queixou-se na única língua que ainda
lembrava. E o pensamento da menina gritava, mas e eu, na mesma língua do pai.
Quando os primeiros raios do sol atravessaram as frestas da
parede, encontraram Gustavo muito quieto recordando-se dos bosques limpos da sua
infância, da melhor maçã do mundo. Em sua frente viu desfilar um rebanho de
ovelhas lanudas antes que as montanhas se cobrissem de neve.
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