sexta-feira, 18 de outubro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Paraíso prometido
(conto inédito)

Mas e eu, ela pensava em língua estrangeira na escuridão interrompida apenas pela vela de luz precária. Em seus olhos o ódio pela última pessoa do mundo a mais de quarenta quilômetros. Suas mãos tremiam feridas enquanto o velho molhava a barba com lágrimas antigas. Nem morrer em paz se pode neste inferno, ele dissera ao ser derramado no chão batido da choça. Nem morrer e as lágrimas desciam mornas para a barba crespa. Mas e eu, gritava seu pensamento adolescente, e seu rosto jovem duro se estriava de lágrimas anoitecidas.

O banquinho de três pernas foi posto de pé, e Gustavo sentou-se alisando a corda de embira que ainda abraçava seu pescoço. Gustavo, inteiramente envelhecido, desistente, sem direito algum, nem ao menos o de morrer. A coleira, de tão rústica, machucava os olhos e a tristeza da filha. Mas e eu, seu pensamento continuava insistindo, cada vez mais baixo.

Faltavam ainda algumas horas para o dia, e os catres ficaram esfriando, mudos e com cheiro forte de corpos doloridos de trabalho.

Mal se viam, dançando sombras nas paredes de varas e frestas, mal se olhavam rancorosos. Hilda, que tinha interrompido a fuga em voo de Gustavo, a busca do além, precisava ainda carregar seus catorze anos nas costas e sentia impossível fazê-lo sozinha onde habitavam cobras e pedras, e animais ferozes ficavam dia e noite à espreita. Gustavo, completando sua desistência, só não tinha contado com o barulho do banquinho, seu baque, ao ser empurrado pelos dois pés dependurados. Seus caminhos divergentes: o que restava de uma família, agora inteiramente bifurcada. 
As lágrimas secaram, tanto as velhas quanto as jovens, ambas salgadas do mesmo sal que vieram descobrir na América desconhecida: o paraíso prometido.

Além dos banquinhos rústicos, tão-somente dois, erguidos sobre três pernas magras, a mesa de tábua lavrada com o machado e o fogão de pedras, onde as latas com água fervente e a comida, em suas horas. No canto oposto à entrada, o pilão e a talha de barro; ele para apiloar, principalmente o arroz colhido na várzea, ela para saciar as sedes noturnas e outros embaraços. Por cima de suas cabeças, barrotes abarrotados de tentações, as que eles provocaram no velho por causa da altura. 

Nas varas internas, a parede separando, uma abertura para o quarto, o lugar de amontoar o corpo pesado de cansaço, e de chorar a terra um dia abandonada com toda a família em busca do sonho adulto. Mas e ela, com que poderia sonhar nos seus nove anos de idade além de bonecas loiras de olhos azuis? Apenas um biombo de varas separando pai e filha, na hora da saudade e do sono.

No primeiro destino, a colônia, todos falando a mesma língua, ainda sobravam os três, porque o casal de irmãos tinham-se extraviado pelo mundo, a irmã mais velha num trem europeu, fumacento, com rumo que sua idade não podia compreender, e o irmão, seguindo com o navio para as alturas, distâncias, os lugares que nem a imaginação conseguia configurar. E a mãe, com doença da viagem no navio, em menos de um ano deixou-a sozinha com o pai.
Aqui não fico mais, ele dizia, molhando de baba e lágrimas o rosto frio e inorgânico da mulher deitada com os dedos cruzados dentro do caixão. Nunca mais Hilda se lembraria da mãe que não fosse daquela cor de entrar no céu, envolta pelo cheiro forte de flores murchas. A fumaça das velas. Quatro velas pobres ajudando o mortuório. Tarde da noite e alguns patrícios, companheiros de viagem, quase todos, falando baixinho para não perturbar o sono de ninguém. E o pai, num canto, dizendo que aqui não fico mais, numa língua que todos entendiam. Sem a esposa, agora ele queria de volta seus bosques limpos, sua neve e os rebanhos de ovelha. Mas como, se o paraíso era tão exigente, e não havia com que pagar a passagem de volta? Resumiu aqui, para significar somente a colônia onde estavam, que em poucos dias abandonaram para esquecer todos aqueles dias infelizes.
Com o trabalho de operário, na cidade, o paraíso encolhia-se em excesso quase infernal, traduzido finalmente em comida três vezes ao dia, casinha em bairro pobre e aluguel rico, e pouco, muito pouco mais. Não foi isso que vim buscar, dizia o pai, e ficava triste. Nos curtos serões da cidade, Gustavo cantava com lágrimas nos olhos e contava como tinha sido sua infância de pastor. Maçãs, ele dizia, como não existem iguais no mundo. E a filha, aprendendo com os colegas de escola a língua difícil deles, entendia as recordações do pai, conhecia cada sílaba de sua voz meio estragada, e punha-se a suspirar como se fossem também suas aquelas recordações.
Quando surgiu a oportunidade de ver o paraíso de perto, sua porta aberta, Gustavo hesitou. Voltava para casa, desfalcado da família, mas voltava a ver seus campos, onde pasciam rotundas ovelhas lanudas, sentia novamente o sabor das nédias maçãs, e sentava-se ao pé do borralho enquanto a neve descia silenciosa de brumas insondáveis? Percorria as trilhas conhecidas de bosques limpos ou aceitava a gleba no sertão, ajudando este governo a povoar regiões desabitadas?
Hilda mexia-se na cozinha, providências de dona de casa, sem contudo tirar o olho do pai, que nada dizia, porque já diziam seus olhos fixos num ponto qualquer da parede. Não consultou a filha, na hora da decisão, porque uma criança, se sonha, sonha com bonecas loiras de olhos azuis. E sua Hilda, mulher para o serviço de casa, era criança para ter opinião.
Até que um dia, o sol ainda bocejando, apareceu a carroça que os levaria até a gleba que lhes tocava. Dois cavalos fortes, de grandes patas e pernas possantes, sacudiam as caudas, parados na frente de uma casa pobre de bairro afastado. Machado, enxada, facão, foice, martelo, serrote e outras ferramentas fornecidas pelo serviço de imigração. Tudo num feixe padrão, promessa de desenvolvimento regional. Mantimentos para um mês, em caixas de tábuas claras e finas. Gustavo tremia muito ao conferir a carga com que se encaminhava para seu futuro.
Ao partirem, Hilda olhou várias vezes para trás lastimando tudo que deixava naquela casa, como sua cama, o fogão, sua primeira menstruação e as vizinhas, com quem já conseguia conversar. Fungava sentida como quem parte para o desconhecido, pois ela partia para o desconhecido. A carroça ia abarrotada, mesmo assim só levava o essencial.
A primeira cabana, os medos noturnos − vozes de um povo de animais demoníacos −  ventos e chuvas como jamais imaginara ver, o castigo do sol, tudo isso (o pavor de enfrentar uma natureza rebelde) eram coisas do passado. Como dois homens, puseram-se a trabalhar, mal chegados ao morro que agora era deles. Sem vizinhos com quem discutir limites ou repartir o bolo de inhame. Sem conhecidos para quem se queixar de uma dor de dente.

Gustavo ia deixando de cantar, o corpo moído do trabalho, as lembranças entorpecidas. Chegava da roça arrastando as pernas, claudicando, e muitas vezes sem comer jogava-se no catre à espera de que o sono o matasse um pouco, pelo menos por algumas horas. Hilda, atenta ao único ser humano com quem convivia inverno e verão, pensou que o pai já se esquecera das histórias de sua infância: bosque limpo, rebanho de ovelhas, nédias maçãs e a neve dos meses de inverno. Ele nunca mais falava sobre aquilo, não lhe contava mais como fora sua vida. Ele parece que aos poucos desaprendia de falar. Em qualquer língua.

Apesar de não ter sido consultada sobre enterrar-se nas brenhas daquele sertão, ela conformava-se com sua sorte, pois seu horizonte estreitava-se em torno da família que lhe restara. Não era amor que a prendia àquele homem taciturno, mas a certeza de que sua sobrevivência dependia dele. Por isso acompanhou com preocupação as mudanças de humor do velho e afinou vistas e ouvidos para evitar que lhe fugisse.

Com o baque do banquinho derrubado com as pontas dos pés dependurados, Hilda saltou da cama mesmo antes de abrir os olhos. Empoleirada na mesa, feroz, sua mão esquerda encontrou rápido a corda esticada que seus olhos não podiam ver. Com dois, três golpes de faca a corda rompeu-se, e o corpo do pai se derramou no chão batido da cozinha.

O velho pôs-se a tossir por causa do pescoço machucado, enquanto a filha o punha sentado no outro banquinho de três pernas magras. Nem morrer em paz se pode neste inferno, ele queixou-se na única língua que ainda lembrava. E o pensamento da menina gritava, mas e eu, na mesma língua do pai.


Quando os primeiros raios do sol atravessaram as frestas da parede, encontraram Gustavo muito quieto recordando-se dos bosques limpos da sua infância, da melhor maçã do mundo. Em sua frente viu desfilar um rebanho de ovelhas lanudas antes que as montanhas se cobrissem de neve.

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