sexta-feira, 8 de novembro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue está no livro À sombra do cipreste, cuja 7ª edição saiu pela Global Editora em 2013.

Concerto para violino

O porteiro veio até a calçada alongando-se feliz como gato que acaba de acordar, erguidas para o céu suas mãos carregadas de perguntas que Guilherme temia e não tinha como responder. Era a terceira tarde consecutiva em que rondava a porta do edifício à espera de um recado, de um aceno, sinal qualquer que justificasse a esperança de voltar a encontrá-la. Tamanha persistência poderia estar provocando suspeitas, mesmo assim adiou o medo e espiou pela porta de vidro: no saguão, apenas sofás e poltronas cochilando preguiçosos e vazios sobre o tapete persa. Guilherme atravessou a rua, rancoroso e lento, até mergulhar sua inveja na sombra fresca da marquise em frente à loja de instrumentos musicais. Aquele sim, o porteiro, todas as informações guardadas no silêncio de sua cabeça: o nome dela, seus hábitos, o número do apartamento onde suportava a vida com o marido (com toda certeza um troglodita transpirando perversidade) e com os dois filhos pequenos, que na matinê de domingo, no cinema, fartavam-se de pipoca e heroísmo sem perceber o que acontecia com sua mãe na poltrona ao lado. Virou-se ainda uma vez, astuto, e encontrou o olhar do porteiro a esquadrinhá-lo ostensivamente. Fosse livre para agir segundo sua vontade, enfrentava o porteiro e arrancava dele os segredos que mantinha trancafiados como privilégio da profissão. Mas a vontade não conta, se há um nome de mulher a preservar, e Guilherme voltou-se para a vitrina com repentino e inexplicável interesse pela música.


Foi então que, deslumbrado, descobriu o violino estirado em seu estojo preto forrado por dentro de flanela carmesim. Nunca o vira de tão perto nem tão majestosamente silencioso. Percorreu-lhe as curvas, minucioso, e esgueirou-se por suas reentrâncias com a convicção de que se perdia para sempre, mas era tarde para retroceder: braços e pernas retinham ainda a lembrança de suas unhas. Ofegante e desajeitado, então, tentou aproximar-se um pouco mais, sem perceber, todavia, que o vidro transparente era também intransponível. Inconformado com aquela estúpida indecisão do domingo, mordeu o lábio, punitivo. Quão tolo fora, ao permitir que ela partisse com os filhos, sem deixar pista nenhuma! Um aceno de despedida, apenas, antes de submergir pela porta do edifício. Um aceno, e nada mais. E ali mesmo, na frente da loja, plantara-se à espera de que ela voltasse. Em todas aquelas sacadas igualmente desertas, vestígio algum que o pudesse ajudar.

Se entrasse na loja e perguntasse o preço do violino, talvez o deixassem acariciá-lo por alguns instantes. Mas como evitar que lhe fizessem perguntas embaraçosas, que o incitassem a tocar? Não saberia o que responder nem imaginava como se empunha o arco. Como explicar que a descoberta de sua vocação dera-se no domingo à tarde, ao perceber que não era casual o encontro de seus joelhos? Poderia confessar que, desde então, a vida perdera qualquer encanto que  não fosse o da esperança de voltar a sentir na pele o delicado dedilhar de suas unhas? Aquilo segredo seu, o primeiro, que nem ao pai (Sentindo alguma coisa, Guilherme?) nem aos colegas na escola ousara revelar.

Ao procurar o porteiro, na calçada oposta, Guilherme teve um sobressalto: calça jeans e blusa clara, o cabelo desfraldado ao vento, ela acabava de sair do edifício e se afastava coleante na direção da esquina. Sozinha. Mesmo com o risco de ser atropelado, atravessou a rua correndo - não fosse perdê-la outra vez. A cinco passos de distância, ensaiou chamá-la, mas se deu conta de que nem para perguntar-lhe o nome, na volta da matinê, tivera o necessário tirocínio. Deus do céu, quão difíceis de aprender são as artes da vida! Enquanto se aproximava, bêbado de curvas e alfazema, relembrava um tumulto de frases inteligentes a respeito de prêmios à perseverança e sorria orgulhoso de sua façanha.

Na banca de revistas, ela parou examinando as capas coloridas e vistosas. Quem sabe em uma delas encontraria sua foto estampada. A seu lado, sem coragem ainda para encará-la, Guilherme distraiu os dedos a folhear qualquer coisa que talvez fosse uma revista. De repente, uma sensação de desamparo, os joelhos frouxos: a voz que esfolava seus ouvidos não era a dela.

Enfim, essa não foi a primeira vez, repetia Guilherme no caminho de volta a seu posto, ao lado do violino. De tal pensamento, entretanto, a despeito da insistência, não lucrava consolo ou lição. Uma frase frouxa, descolorida, sem eco em seus nervos atordoados. Finalmente, espáduas na parede da loja, suado, espremeu a memória até que sangrasse, tentando trazer de volta aquele rosto fugitivo feito de mel e luar. Em vão tentou, porém, porque os traços dispersos que por ali restavam eram poucos e apagados, sem o dom de ensandecê-lo. Sentiu-se cansado, idiota, sujo e imensamente infeliz.

Guilherme enfiou a mão no bolso procurando, e procurou, mas no bolso ele não tinha nada e sua mão voltou vazia. A cidade tornara-se grande, de repente, na frente daquela loja. Grande demais para ser conquistada. E esperta, cheia de malícia. Ora desfilava barulhenta, escondida no interior de ônibus e automóveis, ora espiava silenciosa através das mil janelas de cada um daqueles edifícios. Guilherme concluiu alarmado que não tinham mais sentido ficar ali exposto, naquela espera inútil. Mas o corpo, fremente de esperança, pedia para ficar.

No meio da rua os motores dos carros silenciaram. As vitrinas emudeceram, os semáforos apagaram, ninguém ousava mover-se nas calçadas. Atônita, a cidade toda parou: com suas unhas afiadas, seus dois olhos de vertigem, o balanço dos quadris e o sorriso de remanso (Como esquecê-los, mesmo que apenas por um instante?) ela vinha atravessando a rua - mais bela agora, porque vinda de muito longe.

No interior da loja, exatamente quando o violino e a orquestra pareciam ter-se, finalmente, reconciliado, mão premonitória interrompeu os argumentos de  Brahms e desfez o encanto.

Guilherme soltou-se da parede e flutuou até o meio-fio para esperá-la. Não sabia por onde andariam braços, pernas, nem pensamentos: seu corpo resumido a pulsações. Ao buscar-se no escuro espelho de seus olhos, porém, encontrou-os vazios e distraídos.

Ela galgou a calçada, leve, altaneira, e desapareceu na cidade.

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