O conto que segue está no livro À sombra do cipreste, cuja 7ª edição saiu pela Global Editora em 2013.
Concerto para violino
O porteiro veio até a
calçada alongando-se feliz como gato que acaba de acordar, erguidas para o céu
suas mãos carregadas de perguntas que Guilherme temia e não tinha como
responder. Era a terceira tarde consecutiva em que rondava a porta do edifício
à espera de um recado, de um aceno, sinal qualquer que justificasse a esperança
de voltar a encontrá-la. Tamanha persistência poderia estar provocando
suspeitas, mesmo assim adiou o medo e espiou pela porta de vidro: no saguão,
apenas sofás e poltronas cochilando preguiçosos e vazios sobre o tapete persa.
Guilherme atravessou a rua, rancoroso e lento, até mergulhar sua inveja na
sombra fresca da marquise em frente à loja de instrumentos musicais. Aquele
sim, o porteiro, todas as informações guardadas no silêncio de sua cabeça: o
nome dela, seus hábitos, o número do apartamento onde suportava a vida com o
marido (com toda certeza um troglodita transpirando perversidade) e com os dois
filhos pequenos, que na matinê de domingo, no cinema, fartavam-se de pipoca e
heroísmo sem perceber o que acontecia com sua mãe na poltrona ao lado. Virou-se
ainda uma vez, astuto, e encontrou o olhar do porteiro a esquadrinhá-lo
ostensivamente. Fosse livre para agir segundo sua vontade, enfrentava o
porteiro e arrancava dele os segredos que mantinha trancafiados como privilégio
da profissão. Mas a vontade não conta, se há um nome de mulher a preservar, e
Guilherme voltou-se para a vitrina com repentino e inexplicável interesse pela
música.
Foi então que, deslumbrado,
descobriu o violino estirado em seu estojo preto forrado por dentro de flanela
carmesim. Nunca o vira de tão perto nem tão majestosamente silencioso.
Percorreu-lhe as curvas, minucioso, e esgueirou-se por suas reentrâncias com a
convicção de que se perdia para sempre, mas era tarde para retroceder: braços e
pernas retinham ainda a lembrança de suas unhas. Ofegante e desajeitado, então,
tentou aproximar-se um pouco mais, sem perceber, todavia, que o vidro
transparente era também intransponível. Inconformado com aquela estúpida
indecisão do domingo, mordeu o lábio, punitivo. Quão tolo fora, ao permitir que
ela partisse com os filhos, sem deixar pista nenhuma! Um aceno de despedida,
apenas, antes de submergir pela porta do edifício. Um aceno, e nada mais. E ali
mesmo, na frente da loja, plantara-se à espera de que ela voltasse. Em todas
aquelas sacadas igualmente desertas, vestígio algum que o pudesse ajudar.
Se entrasse na loja e
perguntasse o preço do violino, talvez o deixassem acariciá-lo por alguns instantes.
Mas como evitar que lhe fizessem perguntas embaraçosas, que o incitassem a
tocar? Não saberia o que responder nem imaginava como se empunha o arco. Como
explicar que a descoberta de sua vocação dera-se no domingo à tarde, ao
perceber que não era casual o encontro de seus joelhos? Poderia confessar que,
desde então, a vida perdera qualquer encanto que não fosse o da esperança de voltar a sentir
na pele o delicado dedilhar de suas unhas? Aquilo segredo seu, o primeiro, que
nem ao pai (Sentindo alguma coisa, Guilherme?) nem aos colegas na escola ousara
revelar.
Ao procurar o porteiro, na
calçada oposta, Guilherme teve um sobressalto: calça jeans e blusa clara, o
cabelo desfraldado ao vento, ela acabava de sair do edifício e se afastava
coleante na direção da esquina. Sozinha. Mesmo com o risco de ser atropelado,
atravessou a rua correndo - não fosse perdê-la outra vez. A cinco passos de
distância, ensaiou chamá-la, mas se deu conta de que nem para perguntar-lhe o
nome, na volta da matinê, tivera o necessário tirocínio. Deus do céu, quão
difíceis de aprender são as artes da vida! Enquanto se aproximava, bêbado de
curvas e alfazema, relembrava um tumulto de frases inteligentes a respeito de
prêmios à perseverança e sorria orgulhoso de sua façanha.
Na banca de revistas, ela
parou examinando as capas coloridas e vistosas. Quem sabe em uma delas
encontraria sua foto estampada. A seu lado, sem coragem ainda para encará-la,
Guilherme distraiu os dedos a folhear qualquer coisa que talvez fosse uma
revista. De repente, uma sensação de desamparo, os joelhos frouxos: a voz que
esfolava seus ouvidos não era a dela.
Enfim, essa não foi a
primeira vez, repetia Guilherme no caminho de volta a seu posto, ao lado do
violino. De tal pensamento, entretanto, a despeito da insistência, não lucrava
consolo ou lição. Uma frase frouxa, descolorida, sem eco em seus nervos
atordoados. Finalmente, espáduas na parede da loja, suado, espremeu a memória
até que sangrasse, tentando trazer de volta aquele rosto fugitivo feito de mel
e luar. Em vão tentou, porém, porque os traços dispersos que por ali restavam
eram poucos e apagados, sem o dom de ensandecê-lo. Sentiu-se cansado, idiota,
sujo e imensamente infeliz.
Guilherme enfiou a mão no
bolso procurando, e procurou, mas no bolso ele não tinha nada e sua mão voltou
vazia. A cidade tornara-se grande, de repente, na frente daquela loja. Grande
demais para ser conquistada. E esperta, cheia de malícia. Ora desfilava
barulhenta, escondida no interior de ônibus e automóveis, ora espiava silenciosa
através das mil janelas de cada um daqueles edifícios. Guilherme concluiu
alarmado que não tinham mais sentido ficar ali exposto, naquela espera inútil.
Mas o corpo, fremente de esperança, pedia para ficar.
No meio da rua os motores
dos carros silenciaram. As vitrinas emudeceram, os semáforos apagaram, ninguém
ousava mover-se nas calçadas. Atônita, a cidade toda parou: com suas unhas
afiadas, seus dois olhos de vertigem, o balanço dos quadris e o sorriso de
remanso (Como esquecê-los, mesmo que apenas por um instante?) ela vinha
atravessando a rua - mais bela agora, porque vinda de muito longe.
No interior da loja,
exatamente quando o violino e a orquestra pareciam ter-se, finalmente,
reconciliado, mão premonitória interrompeu os argumentos de Brahms e desfez o encanto.
Guilherme soltou-se da
parede e flutuou até o meio-fio para esperá-la. Não sabia por onde andariam
braços, pernas, nem pensamentos: seu corpo resumido a pulsações. Ao buscar-se
no escuro espelho de seus olhos, porém, encontrou-os vazios e distraídos.
Ela galgou a calçada, leve,
altaneira, e desapareceu na cidade.
O desalento foi tamanho que quase não consigo escrever esse comentário...
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