Conto do livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.
O caso das digitais perdidas
Foi então a vez de o Escrivão olhar espantado. Levantou-se e andou até a
porta da sala ao lado. Pode uma coisa destas?, cochichou para outro escrivão, o
cara aí não se lembra do próprio nome.
O Colega enrugou a testa e disse que não, caso nenhum para espanto, pois
há mais pessoas do que nomes sobre a Terra. Isso, disse o Colega em tom de
segredo, tem causado grandes transtornos. E voltou a suas fichas. Ele, muito
experiente e com tendência à filosofia, caráter incompatível com sua função.
Pelo menos foi o que me pareceu.
O Delegado passou pelo corredor, a camisa toda manchada de pressa, com
sua gravata muito correta. Ao vê-lo, o Escrivão esgueirou-se para seu lugar
porque era exatamente hora de trabalho. Destampou a caneta com uma precisão
exagerada, provavelmente desnecessária porque apenas fez alguns rabiscos em uma
folha de papel. Fixou em mim seu olhar severo e perguntou-me, E então?, vamos
terminar logo com isso? Completamente mudo, apenas sacudi a cabeça concordando.
Não há ninguém para quem possa telefonar pedindo ajuda? Em minha náusea
grossa e tépida os números em remanso, quase uma valsa. Os pares rodopiavam
cada vez mais rápidos até sumirem na poeira. Minhas sobrancelhas ergueram-se
como asas em vôo, fingindo-se em busca de uma lembrança, o nome de alguém que
nos pudesse ajudar. Era um trejeito estúpido, pois eu já sabia o resultado, mas
fazia de tudo para parecer disposto à colaboração.
Confesso que nunca cheguei a esquecer inteiramente meu nome. O que me
impedia de dar uma resposta imediata era o medo de que meu nome estivesse
envolvido em qualquer assunto ilícito. Há sempre alguma culpa escondida em um
nome e eu já supunha que meu caso tivesse agravos. Há muito venho tentando
pôr-me em dia, mas estou invariavelmente perdido no meio de senhas e códigos.
Não consigo mais lembrar a quem devo nem o quê.
Depois de muita relutância, enfim, declarei meu nome, omitindo, contudo,
o sobrenome com todos os seus detalhes. Mesmo que me lembrasse dele, acho que
não teria coragem de o revelar. Qualquer biografia tem necessidade de pontos
cegos, porque a vida, com as janelas escancaradas, é simplesmente impossível.
Os dedos silenciosos do Escrivão caíram sobre o teclado e registraram meu nome
na ficha da tela. Profissão? Todos nós sabemos que depois da primeira resposta
não há mais salvação. Acaba-se a resistência no exato momento em que se abre a
boca para entregar a vida, por mínima que seja. Da minha, havia tão-somente
revelado o nome, mas para um escrivão experiente podia ser o bastante. A
origem, as muitas peripécias familiares, boa parte da biografia, tudo isso pode
ser revelado sem que se perceba. Então não havia mais como permanecer escondido
e respondi que era pintor. Ele olhou-me com curiosidade e o sorriso bem curto
que enrugou seus lábios me deixou um pouco embaraçado. Tenho certeza de que duvidava,
porque me examinou minucioso durante muito tempo. É bem provável que minha
profissão não correspondesse ao perfil previamente traçado por eles: suas
necessidades inventando explicações. Sei que me senti mal ao perceber que até
minha profissão, por seu conteúdo ambíguo, poderia ser comprometedora. Não ousei,
todavia, declinar o tipo de pintor que eu era. Haveria embaraços dos quais é
improvável que conseguisse libertar-me.
A esse jogo dedicamos nossa tarde. Bem que percebi quando as teias de
aranha começaram a sumir do teto e a mancha de sol desapareceu do ladrilho
encardido. De tudo o que mais tenho medo é das sombras porque nunca se sabe o
que podem estar escondendo. E a noite já vinha subindo os primeiros degraus.
Nem assim consegui abreviar minha confissão. Finalmente o Escrivão mandou minha
ficha para a impressora e se levantou para acender a luz. Parecia muito cansado
e aborrecido. Acho que não tive culpa, nem por isso deixei de me sentir
levemente ameaçado.
O Escrivão leu a ficha em voz alta e aprovei todos os dados com
movimentos de cabeça, que são menos perigosos do que as palavras.
Estendeu-me então a ficha, apontando para o primeiro retângulo e dizendo
que aquele era do polegar. Sujei a polpa de meu dedo e borrei o lugar para onde
ele apontava. Com gesto brusco o Escrivão levou a ficha até perto dos olhos.
Encarou-me com uma ruga na testa suada.
-
Por que você fez isso? - ele me perguntou rispidamente e com alguma
agressividade.
Pronto, pensei, agora que parecia tudo terminado, vem mais complicação
ainda. O que foi que eu fiz?, quase cheguei a perguntar porque estava tremendo,
não sei se de cansaço ou pânico. Ele parece ter entendido minha pergunta
pensada e apontou para o borrão preto. Isso, ele insistiu, isso, essa mancha
sem identidade nenhuma. Por que você fez isso?
Respirei aliviado. Só isso?, pensei, pouco menos que feliz. Sim, como
foi? Não existe gesto inocente, meu caro. Tudo que fazemos reveste-se de culpa,
ele disse enfático, porque tudo significa. Quis retrucar, dizendo que tinha
opinião contrária, que me parecia tudo sem grande sentido, mas calei-me com
medo. Tive a impressão de que o Colega, da outra sala, chegou fechando nossa
porta com o corpo. O Escrivão tomou-me das mãos e examinou meus dois
polegares. O que você está escondendo?,
ele gritou, talvez com a intenção de avisar aos outros que tinha nas mãos um
problema difícil.
O esforço para vencer minha timidez grudou-me a camisa nas costas, o modo
de me desmanchar um tanto mais. Fingi que examinava minhas mãos para não
encará-lo enquanto explicava que desde adolescente trabalho com pintura. Foi
sempre o que fiz em troca da comida e do aluguel, a despeito de nunca me
reconhecer no que tenho feito. Sim, ele gritou, mas e daí? Seu nome não aparece
nas paredes que pinta? Não, respondi categórico, nada do que faço é meu, e a
própria cal, que tão cedo aprendi a usar, é alheia, não é minha, é inimiga, e
por isso aos poucos me descasca os dedos e o nome.
O Escrivão saiu da sala para confabular com o Colega, que nos observava
da porta. Passado algum tempo, em que os dois pareciam estar cochichando, ele
dirigiu-se à sala do Delegado, onde ficou por cerca de dez minutos. Os três
vieram muito sérios para me examinar. Incrível, eles diziam, olhando-se
incrédulos. Incrível, repetiam sacudindo a cabeça.
Então, não sei bem por quê, eles pararam na minha frente ostentando suas
gargalhadas sem controle, completamente alegres. Apontavam para mim sem
conseguir dizer nada porque as gargalhadas ocupavam toda a extensão de sua
surpresa. Torciam-se de tanto rir, com aqueles risos cada vez mais idênticos,
em cor e tamanho. Pegavam minha mão direita para olhar melhor a polpa de meu
polegar, e as lágrimas de seu riso molhavam-me os dedos. De repente, suas
fisionomias começaram a transformar-se de maneira assombrosa, até que se
misturaram tão completamente que nem eles mesmos se diferenciavam uns dos
outros. Por isso, muito acabrunhados, pararam de rir e assumiram o mesmo ar de
funcionários zelosos.
Finalmente minha ficha borrada de preto ficou com um dos três, que me
disse:
-
O expediente já terminou. O senhor me volte aqui amanhã.
*
a própria cal, que tão cedo aprendi a usar, é alheia, não é minha, é inimiga, e por isso aos poucos me descasca os dedos e o nome. Há sempre alguma culpa escondida em um nome .....
ResponderExcluirMuito bom!! atemporal!
Obrigado pelo comentário, Suzete.
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