O conto a seguir está publicado no livro À sombra do cipreste, vencedor do Prêmio Jabuti 2.000
O vôo da
águia
Quando ele me agarrou pelo braço (manchas roxas, ainda, de seus dedos
magros) e me puxou dizendo preciso conversar com alguém, os primeiros letreiros
de néon começavam a piscar dentro de seus olhos opacos. Então tive o
pressentimento de que a noite em breve estaria vertendo do manto da garoa fina
que esfumava as altas silhuetas dos edifícios no centro da cidade. Gesto
brusco, um safanão: meu susto. É uma ponte, é só uma ponte, ele repetia
enquanto me empurrava para dentro do bar. Apesar de trêmula, hesitante talvez,
sua voz escura não admitia resistência, pois subia-lhe das regiões viscerais,
onde tudo é urgente e inapelável. Entrei me perguntando de que recanto
esquecido da minha vida surgiam agora aqueles traços familiares que descobri
por baixo de tanta ruína.
As garrafas de cerveja vazias sobre a mesa e o cinzeiro transbordante
eram os vestígios deixados pela tocaia de longas horas acontecida naquele canto
de sala. A vida e os transeuntes, por certo, tinham desfilado
desapercebidamente por trás das sujas vidraças da janela que dava para a
calçada. A princípio não entendi o movimento de sua cabeça, mas, como
insistisse, deduzi que me indicava a cadeira onde eu deveria sentar. Ele
acendeu um cigarro - lábios secos - espantou com a mão o rolo de fumaça que lhe
escondeu a cabeça e me fixou com seus olhos fartos de ver. Só então consegui
arrancar do passado, e aos pedaços, o que me restava do Aquiles. Aquiles!
Notícia nenhuma do Aquiles desde os tempos em que teve de abandonar a escola.
Minha surpresa deve ter-lhe causado algum mal, porque o sorriso com que me
respondeu, sardônico, não passou de um repuxo que lhe deformou a boca e de um
leve apertar dos olhos. Esperou em silêncio que eu me refizesse do susto e me
encarou novamente. Então, isso é que é a vida?, ele me perguntou irritado e
continuou a me encarar, cobrando uma resposta.
Acuado, consultei o relógio. Aquiles aproveitou para pedir outra cerveja,
o dinheiro, olha, o dinheiro agora não importa mais, e jogou um maço de notas
amarrotadas sobre a mesa.
Era em bares assim que, à noite, depois das aulas, nos embriagávamos de
cerveja e de sonhos. Há quanto tempo não entrava mais num bar? Não me lembro
bem por quê, mas acreditávamos que a humanidade precisava de nós, e estávamos
dispostos a salvá-la com nossos discursos exaltados. Ofereceu-me um cigarro, que
não tive coragem de recusar. Sabe, Aquiles, a vida, e não avancei, com medo de
que a banalidade do que diria irritasse ainda mais meu amigo. Ele me pedia uma
ponte, e eu mal firmava meus próprios pés no chão. Procurei no relógio uma
razão que me tirasse dali, mas o bar já estava escuro demais e o ar quente e
denso escorria pelas lentes de meus óculos. Desatei o nó da gravata e emborquei
de um gole a cerveja do copo que ele teimava em manter cheio. Uma ponte. Que
ponte, se minhas margens, soltas as amarras, navegavam todas à deriva! As
prateleiras com suas garrafas cobertas de pó começaram a oscilar, e a lâmpada
vermelha, aos pés do dragão, latejava entre teias de aranha e um galho seco de
arruda. Há quanto tempo?
- Rastejei minha vida toda, agora chega.
Agora chega, ele ficou repetindo cada vez mais baixo, enquanto sacudia a
cabeça, negando, preciso acabar logo com tudo isso, e sua voz me pareceu apenas
a sombra de sua voz, a outra, como um pensamento sem necessidade de ouvinte. Me
dei conta de que o trânsito, às minhas costas, não estava mais congestionado,
pois há muito não ouvia o clamor nervoso das buzinas. Esfreguei com violência
um guardanapo de papel na testa e nas mãos. Por que aquela sensação de calor,
se nas veias o sangue estava congelado? As manchas eram nítidas e Aquiles não
tentava escondê-las. Talvez eu as pudesse remover com a mão, se tentasse, mesmo
assim continuei calado, porque a noite viera confirmar meu pressentimento, sem
me revelar, no entanto, o que elas significavam.
Tendo repetido várias vezes acabar logo com tudo isso, submergimos
exaustos numa profunda lagoa de silêncio, durante o qual Aquiles, a cabeça
pendida e os olhos parados, movia desvairadamente os lábios desbotados e
febris. Circundado na parede por um exército de garrafas empoeiradas, o
santo-guerreiro subjugava o dragão, mas não conseguia evitar que ele
continuasse expelindo suas chamas. Aquilo sempre, uma luta sem solução? Pensei em me levantar, em fugir daquele
ambiente para respirar a noite úmida. Apenas pensei. Qualquer movimento meu
poderia provocar um desenlace imprevisível. Respirei fundo, relaxei os ombros e
me ajeitei melhor na cadeira.
Já estava preparado para uma longa espera, quando, subitamente e de olhos
incendidos, Aquiles arrojou o corpo sobre a mesa e, segurando-me pelos pulsos,
perguntou então, você acha que vale a pena continuar, apesar de tudo, você acha
que vale a pena? E me sacudia os braços, seu nariz adunco bem próximo de meu
rosto, responde, você acha que alguma coisa vale a pena? Da margem sombria e
açoitada pela tormenta, ouvi o apelo do barqueiro, porém, atônito, não descobri
de onde vinha aquela voz.
Suas garras foram aos poucos afrouxando até libertarem meus pulsos.
Aquiles ainda me olhou por alguns instantes, mas já não via nada, porque em seguida
deitou a cabeça sobre os braços estendidos na mesa e pouco depois tive a
certeza de que dormia. Levantei-me com cuidado, ergui a gola do paletó e saí
finalmente para enfrentar a garoa.
Só na manhã seguinte, após a leitura dos jornais, fiquei sabendo que
Aquiles, naquela mesma madrugada, alçara vôo do alto de um edifício.
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