Pág. 233 - "Se o barroco, com o seu senso da modernidade e sua crença na criatividade humana, potencia, sob o aspecto teórico, a já relevante função conferida ao emissor/autor pelo humanismo renascentista, por outra parte, com o seu carácter de arte de massas em que o kitsch proliferou ao serviço de determinadas estruturas ideológicas, tanto de natureza religiosa como de natureza político-social, dilui consideravelmente aquela mesma função. Pensamos, por exemplo, que não é apenas fruto do descaso humano, dos acidentes ocasionados pela transmissão manuscrita e do temor suscitado pela censura, o anonimato de boa parte da produção poética barroca hispânica. Neste domínio, como (p. 234) em tantos outros, a literatura barroca apresenta um dualismo antitético bem marcado: nos textos em que predomina uma complexidade e um refinamento semânticos e técnico-estilísticos que se aproximam do hermetismo, privilegia-se a 'gramática' do emissor; nos textos que, pelas suas características sémicas e formais, podem ser classificados como 'literatura popular' ou mesmo como 'literatura de massas' , privilegia-se a 'gramática' do receptor. Quer dizer, uma das tensões mais fecundas e fascinantes da literatura barroca consiste na coexistência conflituante, no âmbito do seu policódigo, de dois modelos de comunicação: um modelo orientado para o emissor e um modelo orientado para o receptor.A teoria e a prática literárias do chamado classicismo francês e do neoclassicismo europeu, em geral, tendem a diminuir a importância do emissor no processo da comunicação literária, quer porque submetem a sua capacidade produtiva e inovadora a um código rigorosamente articulado e possuidor de forte imperatividade, quer porque esbatem, quando não anulam, as marcas textuais da subjectividade do enunciador (predomínio da razão, busca da universalidade, anticonfessionalismo, etc.).
Com o romantismo e a sua teoria não mimética da literatura, a sua visão do escritor como um novo Prometeu, a sua concepção da escrita literária como a expressão da interioridade deste eu prometeico, hipertrofia-se a função produtiva e comunicativa do emissor/autor, quer do autor empírico, quer do autor textual (confundidos, aliás, dada a lógica subjacente à teoria expressivista e biografista que da criação literária advogou o romantismo). A hipertrofia desta função manifesta-se com particular intensidade em certas classes de textos: narrativas autobiográficas, diários, memórias, poemas líricos de índole confessional. A originalidade do texto, na perspectiva da poética romântica, promana assim especularmente da originalidade de um homem e de uma existência. O biografismo e o historicismo geneticista traduzem, no plano da investigação e da (p. 235) crítica literárias, esta hipervalorização romântica do emissor/autor.
Se o realismo impõe severas restrições a tal hipertrofia do emissor - erradicando, por exemplo, as explícitas manifestações do autor textual -, é com Rimbaud e Mallarmé que primeiro se exprimem orientações radicalmente opostas àquela concepção romântica. Rimbaud revela dramaticamente o dissídio entre o sujeito poético e o eu empírico-social: 'Je est un Autre'; Mallarmé, desenvolvendo ideias já enunciadas por Novalis e Edgar Poe, anula o sujeito poético numa 'neutralidade supra-pessoal', abrindo assim caminho à crise e à negação do sujeito na literatura contemporânea."
(CONTINUA)
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