terça-feira, 19 de agosto de 2014

QUESTÕES DE ESTÉTICA DA LITERATURA (108)


Mallarmé

(Pág. 235) "3.6.4. O emissor e a poética formalista
Toda a teoria formalista da literatura tende a abolir o pólo da comunicação literária constituído pelo emissor, em nome da autonomia e da autotelicidade do texto literário e, consequentemente, em nome da análise estritamente imanente que este texto, concebido como ens causa sui, obviamente requer.
Na literatura contemporânea, como ficou dito, Mallarmé é o primeiro grande responsável pela entrada em crise e pela subsequente desvalorização - ou mesmo aniquilamento, pelo menos em sede teórica - da função do emissor/autor. Segundo Mallarmé, o texto literário - o 'Livro' -, uma vez desligado do autor, volve-se em puro ser, em entidade autónoma e transcendente que nem de leitor necessita: 'Impersonnifié, le volume, autant qu'on s'en separe comme auteur, ne reclame approche de lecteur. Tel, sache, entre les accessoires humains, il a lieu tout seul: fait, étant.' Se o dizer do poeta, 'sonho e canto', instaura orficamente a presença da ausência, o texto poético puro requer a ausência do seu enunciador a fim de que a sua presença não perturbe a harmoniosa plenitude encantatória da linguagem: 'L'oeuvre pure implique la disparition (p. 236) élocutoire du poète, qui cede l'initiative aux mots [...]'. O trabalho aparentemente pessoal do poeta é na verdade um trabalho anónimo e impessoal e o 'Texto', ente absoluto, fala por si próprio e 'sem voz de autor'.

Valéry, que retomou e aprofundou muitas ideias da poética mallarmeana e cuja influência nas teorias do formalismo e do estruturalismo francês - em especial do grupo Tel Quel - é bem conhecida, contribuiu poderosamente para corroer e desagregar o conceito de autor e para, em contrapartida, conferir ao texto literário um valor nuclear. Alguns anos antes de Wimsatt e Beardsley terem public ado o seu famoso ensaio 'The intentional fallacy', já Valéry condenava o privilégio concedido à interpretação de uma obra literária em conformidade com a intenção do autor, pondo em relevo a autonomia do texto relativamente à intencionalidade autoral: 'Quand l'ouvrage a paru, son interprétation par l'auteur n'a pas plus de valeur que toute autre par qui que ce soit. (...) Mon intention n'est que mon intention et l'oeuvre est l'oeuvre'. O autor (p. 237) é uma máscara e uma ficção criadas na obra e, em grande parte, pela própria obra, pois que, se o autor produz a obra, a obra, reversivelmente, cria o seu autor, em virtude da lógica e da dinâmica intrínsecas que a obra, uma vez concluída, detém de modo autónomo. E a obra, por seu turno, é a complexa resultante de múltiplos factores - entre estes, figura o leitor, entidade a quem Valéry consagra particular atenção -, o que leva o poeta de Charmes a escrever esta frase sibilina: 'Toute oeuvre est l'oeuvre bien d'autres choses qu'un 'auteur'".

(CONTINUA)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças