Cecília Figueiredo nasceu em Franca e é membro da Academia
Ribeirão-pretana de Letras É professora de inglês, com atendimento preferencial
para executivos, pois foi tradutora bilíngue de dois bancos estrangeiros, onde
desenvolveu essa competência.
Sua família, de Areias, sempre esteve muito próxima da
literatura. Sua avó conheceu Monteiro Lobato, transferido para Areias como
promotor. Na infância, Cecília leu toda a obra de Monteiro Lobato, tendo
começado a escrever ainda menina.
Tem dois livros publicados: Paixão vírgula paixão e A casa
da instabilidade, ambos de poemas. Atualmente prepara um livro de contos.
A autora considera a poesia como uma entidade, uma parceira.
Diante de alguma aridez, diz a autora, procura ler algum poema de quem admira e
uma palavra ou verso desencadeia um novo poema.
Fonte: Blog do Selmo Vasconcellos
Fonte: Blog do Selmo Vasconcellos
NA BRANCURA DE MARINALVA
Depois que cheguei em casa, na hora da janta,
Marinalva resolveu abrir o berreiro. Falou que não tinha isso, não tinha
aquilo, eu só fiquei na espera da parada dela para eu resmungar. Depois de boa
meia hora, a Lurdes já tinha até trazido o café, ela parou.
- De necessidade, também tenho eu, Marinalva.
- De necessidade temos tudo, pai. Até calcinha
faltando elástico a gente tá usando!
Olhei para Lurdes, ela encostada no fogão, os olhos
vermelhos, mas sem falar nada.
- Tá faltando, ô Lurdes, elástico pra calcinha?
Ela não disse nem que sim, nem que não. Lurdes era
uma mulher de palavras guardadas, se tivesse que falar, falava de um jato, e
com pouca coisa já comunicava. Marinalva é que era um diabo de maledicente. Se
tinha um doce, queria comer a jaca que não tinha.
- Quanto precisa prá comprar elástico, Marinalva?
Eu falava com paciência com a menina, sempre gostei
de filha mulher; achava que mulher tinha um pouco do demônio que a terra dá, e
demônio quando é bom, fica melhor que santo.
- Precisa de tudo novo, pai! Tudo!
- Mas que é que isso que está acontecendo aqui em
casa? Teve enchente, que não tô sabendo? Ou queimaram tudo quando eu tava fora?
- Pai, cê não entende, uma moça não pode passar sem
as coisas...
Sabia que eu não entendia. Lurdes, mesmo quando
novinha, nunca me pediu um grampo, uma flor para por no cabelo. Trazia sempre o
vestidinho lavado, a cara limpa, os olhinhos mais brilhantes que a cera do
vermelhão. Os únicos presentes que dei à Lurdes foi um rodo de plástico que
estava empilhado em oferta no mercado; ela me pediu sem me pedir, olhou para o
rodo e olhou para mim, eu entendi o recado. Outro presente foi uma colcha de
cama de flor desbotada, que tinha vermelho nas flores e das folhas tinha um
verde meio de barro, que ela até hoje estende sobre a cama. O representante das
lojas Veraneio veio aqui oferecer, Lurdes falou que era para ele voltar de
noite. Sem as palavras de Lurdes e com o turbilhão de palavras do
representante, comprei a colcha em seis prestações, que acabei pagando no banco
da vila todo dia dez. As crianças nasceram, vomitaram, mijaram e cagaram por
cima da colcha, Lurdes nunca se importou. Lavava, botava na corda, tava sempre
nova.
O mais velho dos meninos, Alcino, também cresceu sem
que precisasse de nada. Menino de coração calado esse, puxou à mãe, jurava que
tudo dava, e o menor, Gilson, herdou o que tinha sido do irmão. Marinalva é que
saiu espevitada e cheia de querer.
- Pai, sabia que na escola todo mundo repara em mim?
As lágrimas caíam, soltas, e encharcavam o vestido.
Fiquei olhando o quanto de água saía daquela cara, e me perguntava se ainda
haveria mais para cair.
- Lurdes, vem cá.
A mulher foi se chegando, as mãos apertando o
vestido e no rosto uma espécie de esperança de que a filha fosse ganhar o
mundo.
- Isso tem senso?
Ela continuou muda.
- Fala, Lurdes, desembucha!!!
- A menina precisa das coisas, Telvino...
- Que coisas, minha gente??? Que coisas???
Saí andando pela sala com as mãos em cima da testa,
dor no peito de impotência e de falta de resolução.
- Coisa de mulher, ué.
- E tu, por caso, é o quê? Durmo com homem? Casei
com homem? Cê tem o que tem pra vestir e tem o que tem para viver, igual
Marinalva!
- A menina é vaidosa, Telvino, e tamos noutros
tempos...
Marinalva agora tinha estancado o choro e foi se
colocar onde a mãe estivera, no segundo plano, assistindo a cena, como se
ajudasse a Lurdes, que precisaria ter seus apartes.
- Tá faltando comida aqui, Lurdes?
- Tá não, Telvino.
- E água pra tomar banho, tá faltando?
- Tá não.
- Tem sabão e papel pras necessidades?
- Tem, sim.
- Então acabou! Um homem se mata de trabalhar de
quando o sol nasce até que some para sustentar a família e agora, tem que ter
reclamação?
Choro compulsivo que vem do fogão, é Marinalva de
novo que abriu o chororô.
- Santa Mãe de Deus, criatura.... mas o que é que te
falta???
- Falta tudo, pai...
Senti uma tristeza de não passar nem com pinga.
Lembrei-me nessa hora das mulheres bonitas que às vezes eu via quando eu saía
da vila; eram enfeitadas de tirar o ar, perfumadas, uns ouros faiscando, uns
cabelos macios também de ouro sob o sol.
As que tinham um pouco menos de recato, rebolavam, fogosas, pra dentro das
saias, e os saltos fininhos dos sapatos batiam na calçada na base da intenção,
girando a cabeça da homarada. A gente olhava aquilo e ficava virado. Ninguém é
que falava nada na horinha, só contemplava a manada passando... Muitas vezes
elas passavam de duas em duas, cochichando, outras vezes em grupinhos, as
boquinhas rindo, vermelhas, igualmente ignorando a gente, e a gente crescendo
em coragem e provocação... As nossas
partes de baixo esquentavam, era um tal de nego se coçar dali e se coçar
daqui...
Falei sem pensar:
- Não quero você de mulher de desfrute, Marinalva!
- Pai!!!!!! Ela arregalou os dois olhos.
Já tinha falado, então reafirmei:
- Mas é o que é.
Marinalva ia fazer dezessete anos no mês que vem.
Todos os anos do aniversário da filha, Lurdes assava um bolo de fubá com queijo
dentro junto com torta de carne moída,
que ela servia de noite, na hora das visitas, cortada em tirinhas, para a
comadragem, Pra beber, era sempre o refresco de saquinho que eu pegava no bar.
Agora a menina ia fazer dezessete anos e tudo estava fora dos conformes.
Não falei mais nada. A minha dor de cabra macho que
sustenta a família sem covardia agora me pareceu que não tinha valia. Olhei pro rosto branco de Marinalva e
para a cara de descorçoada da Lurdes, saí e bati a porta com força.
A rua estava silenciosa e só o cachorro do seu Bardo
latiu quando eu passei.
- Merda de cachorro lazarento, cala a boca!
Desci a rua poeirenta, vi o bar do Mauro já aceso e
com as mesinhas do lado de fora.
Rumei pra lá com a confiança que seria ali o meu
alentamento.
- Boa noite, Mauro, solta uma aí.
O bar vazio também, só a televisão berrando num
canal de filme de tiro.
- Cabeça quente, compadre?
Mauro era o aliado maior da vila, chorava, ria,
torcia pelo time que nem tinha, só pra ganhar a confiança do bebedor da hora;
não precisava de nada e ele já vinha tirando as conclusões.
- Tão quente que precisa de álcool.
Nessa meia palavra Mauro entendeu de um tudo, tanto
que ficou parado, olhando a rua também.
Depois coçou a cabeça com as duas mãos em cima no
cocuruto, mostrando as axilas de cheiro podre, contornadas pela regata branca e
suja nas beiradas.
- Vai comer o quê?
- Nada, compadre, já jantei, obrigado.
Trouxe o copinho baixo, assentou por sobre a mesa
sem toalha, e voltou para o balcão, meio esperando que eu lhe desse uma
confiança de última hora.
Fiquei ali observando o vazio da passagem e a falta
do dinheiro que agora fazia falta. Marinalva era uma menina bonita, de pernas
grossas, o sorriso branquinho, sem nenhuma falha. Quando ela nasceu, até pensei
que fosse corneagem da mulher. Não tinha o ar do outro mais velho e nem a nossa
cor. Era branquela e esguia, no que daí que nasceu, tive a idéia de por o nome
de Marinalva, que a gente já sabia que alva significava branca demais.
Quando a mulher saía com menina no colo, era uma
baita vaidade em mim, com pinta de criança rica, mesmo que envolta nos panos
que a gente arranjava.
A rua continuava seca, parada... Passava da meia
noite, eu estivera bebendo sem dar a noção ao tempo. Mauro agora estava distraído com os anúncios da
televisão, que gritava a mil e umas cartelas de sorteio de carros.
Marinalva merecia o melhor que eu podia dar e que
Lurdes nunca me inspirou.
Lurdes era uma mulher de fora da vila que eu trouxe
debaixo do braço quando arrumei serviço nestas paradas. Era um pouco mais que
uma criança de nove irmãos, e quando eu a vi pela primeira vez, os pés estavam
sujinhos da poeira do chão, barrigudinha. A família deu graças a Deus que eu
tirei um de lá.
Depois que veio para cá, encorpou, deixou o cabelo
bater na cintura, criou uma cor. Ficou boa prá de dia e boa prá de noite. Mas nunca
conheceu aquilo que um homem via na hora da parada do serviço fora da vila, que
era quando as moças bonitas feito potrancas passavam e lascavam os perfumes
bons delas por cima da gente. Do que a gente não conhece, a gente não tem
vontade. Lurdes não tinha vontades, por jamais ter sido vontades.
Marinalva era mesmo diferente, uma menina que já era
mulher, mais preparada, já mais sabedora do mundo. Até inglês a bicha tava
querendo falar, a escola pobre daqui não tem de um nada, mas ela ia atrás de
tudo que era novidade que saía na revista, rádio ou televisão. Por vezes eu
chegava em casa e encontrava a mãe e a filha de risadinhas por trás das portas.
Era decerto revista que Marinalva trazia e que Lurdes olhava, agradada.
Marinalva tinha que explicar tudinho à mãe, corrigia a fala dela sem dó; Lurdes
só ria.
Minha merda de vida não tinha nem revista nem
risadinha, é um serviço bruto, que não pergunta nem responde, lanha.
Também queria coisas, também conheço o que o mundo
tem de bom e que Marinalva desconfia que tem, eu só queria o do bom da vida e que esta merda de vida me nega.
Também queria pegar uma mulher de salto, dar uma
cheirada no cangote dela, levá-la para beber um do mais refinado, um conhaque fino
de garrafa, soltar meus buchos em cima daquela macieza...
Marinalva me vem à cabeça... Dava de um tudo para
dar para ela o que nunca dei para mim.
Quando a gente nasce grosso e cresce bruto, a gente
sabe que não pode ser assim, mas esquece, vai tocando a vida, vai tomando as
pingas de rebote... só que de repente, a gente desperta. Os bacanas passam
assoviando, a gente come a poeira deles e ainda tem que achar que tá bom.
- Boa noite. Vê aí uma carteira de Royal.
Mauro desgrudou a pança gorda e virou-se para pegar
o maço de cigarros.
Girei meu rosto na direção da voz modulada que pedia
com educação. Era um janota de jaqueta de couro e óculos escuros por cima da
cabeça. Tinha também umas correntes de ouro que faziam de pulseira, coisa de
mulherzinha.
Abriu a carteira de couro claro, saltou nota alta
para lá e pra cá.
Mauro abriu um sorriso fedorento e falso, parecia
que nunca tinha visto dinheiro na vida, babou-se todo por cima do mijadinho.
- Quer café, conhaque?
- Um café, se faz favor. É passado agora?
- Agorinha.
Enfiei minha
mão até o bolso da minha calça para sentir o pesado da navalha que sempre
carrego comigo. A lâmina estava fria de tão nervosa.
O rosto de Marinalva apareceu à minha frente,
branco, branco, com aquele choro que fala "tudo, pai!" Depois vi o
desfile da mulherada vadia que passava em cima de mim, os decotes bem baixos,
as risadas atordoadas de batom
vermelho... "Tudo, pai!". Via a minha miséria e via a abastança dos
outros como se fosse um filme de tiro de televisão, num segundo, tudo, e no
outro segundo, nada. A minha vida era o segundo segundo, um nada varado de
nada...
Foi sangue na pança do boiola e sangue nas costas
gorduchas do Mauro que pulou por cima do balcão para socorrer o frangote.
A carteira de couro claro, grossa de dinheiro, veio
para cima de mim, com os vestidos finos de Marinalva, os sapatos lustrosos de
Marinalva, os dentes brancos de Marinalva...
" Tudo, pai, tudo pai!" ... A minha vista
escureceu de repente, senti um sangue morno e viscoso descer na minha
garganta... as dúzias de pingas já me encaroçando o estômago... "tudo,
pai!" "tudo..." ... e já não tinha mais raiva, só um branco de
morte,vingando-se na brancura da pele
suplicante e fresca de Marinalva.
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