
Abandonou a estabilidade profissional para conquistar seus dois sonhos: psicologia e literatura.
Viveu em Conselheiro Lafaiete, estudou psicologia em Barbacena e atualmente mora em São Paulo.
Seu primeiro livro, Meu nome agora é Jaque, foi editado pela Rona Editora, de Belo Horizonte. O segundo, Manhãs adiadas, Saiu pela Dobra Editorial, de São Paulo.
O conto que ora publicamos está no livro Manhãs adiadas.
Monólogo sobre leões e borboletas
Eltânia André*
... entrei
no restaurante, sabe qual?, aquele ali na esquina
da Brigadeiro com a Cincinato Braga, localizou?, gosto de
comer lá: preço bom, rango caseiro e barato. Pedi o de-sempre,
arroz, feijão, batata frita e bife de fígado acebolado, tava cansado, montar um
guarda-roupa de seis portas, é um trabalho de concentração, a última cliente
aporrinhando o tempo todo, a loja vinha enrolando
a fulana pra mais de quinze dias, espia isso, doutor: no momento de colocar uma das portas de correr, o espelho que deveria estar colado, veio desgrudado, solto sobre a madeira, por desgraceira, espatifou-se em mil pedaços, o chão ficou todo estrelado - sinal de sorte – diria minha vó, que Deus a tenha num bom lugar, não houve jeito de evitar o imprevisto, isso acontece, não é sempre, mas às vezes quando menos se espera acontece uma trapalhada, estraçalha-se, mas justamente com essa dona aborrecida que não se esgotava de reclamar - acontece, quis rebater, mas a mulher agarrou num ódio danado e não quis saber de disse-me-disse, ligou para o gerenteco, “olha, eu não quero mais esse sujeito aqui na minha casa, na terça-feira, vocês disseram que viriam e ninguém apareceu eu fiquei o dia inteirinho esperando e nada, hoje veio um estúpido, com um bafo de pinga, nem se aguentando em pé e (...)”, aquele dia começou assim, doutor: eu via sinais de sorte, mas tava montado era no azar, na televisão um lero-lero danado com a visita do cara: “Obama no Brasil” presidente dos Estados Unidos, acho que ele é homem e tanto, pô um negão quinem eu conseguir chegar onde chegou, é de tirar o chapéu, ele apertava as mãos das crianças da favela, uma delas chorava cheia de fricote, não consigo entender o porquê da agitação, era um aperto de mão e só, aí a repórter falou uma coisa que me interessou - as filhas do presidente aprenderam a falar a palavra borboleta em quase todos os idiomas ou teriam que aprender, não me lembro muito bem, mas deve ser muita coisa mesmo, borboletas que não acabam mais, no idioma delas é... peraí que eu sei, be-ter-flai, não ri não, doutor, ah, é ba-ter-flai?, baterflai!, legal, então dito assim nas estranjas a língua desobedece, né, fico imaginando como deve ser em japonês, o doutor sabe como é?, mas o que importa é que eu tinha apostado tudo no leão – por que borboleta? seria um sinal? – matutei, não, não podia, era o dia de o rei reinar, tava certo disso e não tava, peguei na dúvida meu leão ou a borboleta dos obamas?; a mocinha numa indecisão apertava o controle remoto e trocava de canal, passa um canal de esporte, depois uma televisão educativa com aqueles programas sobre bichos, rios, florestas, pantanal, trocava sem parar, e vêm outras notícias e eu de butuca até nos comerciais, aí o seu Orlando ligou no meu celular e tive que escutar aquele amigo da onça, o Judas, X-9, jurava de pé-junto que éramos amigos, mas foi promovido e ficou metido a besta, foi logo me dizendo que tinha me dado a última chance, mas que não aliviava mais, pereré-pereré-pão-podre e nesse agastamento todo, já tava com o bilhete vermelho mesmo, mandei ele logo praquele lugar com a loja inteira e tudo mais, dois anos aguentando contrariedade, uma humilhação atrás da outra, só a cachaça mesmo pra me segurar e suportar tanta merda na cachola, não, doutor, tinha bebido não, nadica naquela hora; tinha, vou mentir pro doutor não, não adoço e nem tempero, se fiz, fiz; se não fiz, não fiz, ó, mas parei às quatro da manhã, por pura responsa, a galera tava jogando bisca, meus primos vieram de Pirapetinga pra assistir ao jogo do Fluminense, fizeram surpresa, jogão no Morumbi, uma van cheinha; pro doutor ver como eu tava ligado, mesmo ganhando a última rodada, eu parei, dei uma cochiladinha e lá pelas seis da manhã, tomei um banho gelado, depois um café bem preto goela abaixo e tava novinho em folha, a vida é assim, tem hora que falta, tem hora que sobra e é com o que tá no meio que a gente vive; sim, lembro os detalhezinhos... pode perguntar pras testemunhas, na porta do restaurante uma dona pedia ajuda, ela fica sempre por lá com a mesma conversa fiada, dizia que precisava voltar pra casa e não tinha como comprar a passagem, já tinha ido à assistente social, mas a única coisa que conseguiu foi um abrigo que ficava bem distante da região central de São Paulo - fiquei com dó, ela tava pele e osso de tão magra, mas fazer o quê?, a vida de pobre é essa peleja, esse destino que só é bom mesmo quando se fecham os olhos pra sonhar, não dou conta nem das minhas misérias, no rio que o rico mata a sede o pobre se afoga; mas chega de chororô e vamu que vamu, sim, como ia esquecer: um dos atendentes caçoava do outro, encostado no balcão, chora Mané, meu timão só dá alegria; na mesa lá do canto, um casal de namorados parecia fazer planos em uma caderneta, a moça fazia anotações e o bicão toda hora lascava um beijo nela; dentro do balcão: dois garçons (um deles era o talzinho) se estranhavam por causa da próxima folga, dava pra ouvir o bafafá, e minha refeição esfriando na cozinha, ninguém nem aí, cada um curtindo suas mazelas, é doutor foi assim assim!, tava de boa, pensando no que eu faria com o dinheiro do bicho – se ganhasse, calminho da silva: o jeito era apostar na sorte de vez em quando, fazia uma semana que eu jogava no 7464 – leão, tinha fé... me bateu a dúvida, fiquei com uma pulga atrás da orelha: borboleta ou leão? 7464 ou 7415? Os obamas dos esteites apontam para o final 15, mas o 7464 é o número do busão que pego todo dia pra aguentar esse inferno todo de patrão, cliente, gente chata e metida a besta, as contas pra pagar, o aniversário da Raíssa no mês que vem, é minha filha, doutor, tenha outras duas, Raíza e Rúbia; poxa, quinze anos, tem que fazer uma coisinha pra comemorar, a parentada não quer nem saber, exige mesmo, pode ser qualquer arrebenta tripa, mas tem que ter festança; passei de manhã baixa na banca do Careca e apostei o dinheiro do aluguel, já tava atrasado mesmo há quatro meses, depois eu dava um jeito: cem reais para a milhar na cabeça e pra salvar, cinquenta reais do primeiro ao quinto, depois que ouvi a cartada dos obamas fiquei meio cismado, mas tava com fé; ó, minha mãe, coitadinha, equipou a casa dela com as moedinhas que jogava nas milhares dos seus sonhos, ela interpretava e fazia ligação com os animais, se sonhava com água limpa – era coelho na certa; se era barrenta - dava cobra e por aí vai, é uma sábia, agora ela tem microondas, batedeira, forno elétrico; o doutor precisa ver, o forninho dela dá até pra assar peru no natal, é potente sim, senhor, ah, tamém pagou a entrada do colchão de molas com a graninha do bicho, lembro mais: à minha direita tinham duas donas... não pude deixar de ouvir a conversa das fulaninhas (minha dona diz que eu tenho ouvido de tuberculoso e memória de elefante), enquanto traçavam um baita filé de frango com queijo e presunto, salivei, um dos pratos mais caros, (...), um papo sem pé nem cabeça: não deixe não, ele não pode fazer isso não, a casa é sua, Mulher, toma as rédeas, senão ele vai te montar ainda mais, quando ele gritar com o capeta na boca, coloca um louvor, invoca Jesus, coloca bem alto; foi assim que ganhei meu irmão, com o canto do Senhor, sabe como foi?, o Beto, meu irmão, num sabe?, colocava aquela música de ímpio: rocks do demo, um tal de Titãs, um tal de Lobão e até um tal de D2, eu pedia: irmão pare, por favor; mas de nada adiantava, escravo do mal, tava todinho dominado pelo Coisa Ruim, aleluia, eu peguei com o Senhor, clamei pelo sangue de Jesus, e derrotamos o tinhoso, eu queria ouvir meu louvor, isso sim é música, mas ele não me emprestava o som, embirrei: fui às Casas Bahia e comprei um sonzinho, bom, menina, precisa ver, dividido em doze parcelas sem juros, aí o desg... aí o maninho teve que engavetar as vozes servas do diabo, sabe por quê?, eu acordava primeiro que ele e colocava meu louvor na maior altura e falava: não tira não, deixa Jesus cantar pra nós, isso sim é derrotar o inimigo, escuta, mano, aí eu cantava na maior altura pra ele aprender, menina sabe que hoje ele não escuta mais aquele som do inferno, vou lhe contar um segredo: Deus falou comigo pela boca da irmã Ana (se não me engano), ela é serva fiel, num sabe?, disse que eu tinha que salvar o mano e atendendo o pedido de Jesus, eu abri o som dele e cortei um fiozinho e não é que o Senhor fez um milagre: ficou mudo; que papo furado, né, doutor? a maluca da mulher me encarou com aquela cara de fuinha, xô azar, perceberam que eu tava de ouvido em pé, de butuca pra todo lado, prestando atenção, mas porra quem manda falar alto, pra despistar chamei o cão sarnento – “esse rango saí ou não sai?”, e ele veio com desculpa esfarrapada: moço, me desculpe, mas esqueceram de anotar o seu pedido, mas já vou providenciar – disse olhando com raiva pro colega, depois de um tempo, voltou o Mané, o feijão acabou, tem problema substituir por farinha?, vi a curva de zombaria no canto da boca dele, aí eu montei no ódio igualzim daquela mulher, tava tremendo de ressaca, despedido pelo traíra do Orlando, dívida atrás de dívida, aguentando frescura de madame que pensa que tem um boi de cem conto na barriga, aí eu judiei, “meu camarada é por isso que vocês estão nessa de serviçal até hoje, não têm competência, cadê o gerente? Chama lá, chama o dono dessa espelunca, então, tenho meus direitos”, o arranca-rabo ferveu, o sujeito gritava, eu gritava mais alto, pô tava nervosaço, ele entrou na cozinha e pra acalmar fiquei de butuca na TV – gosto de ouvir os acontecidos; no ABC, uma jovem é arrastada pela correnteza, passa debaixo de alguns carros, e ao ser levada pela enxurrada até o finzinho da rua, quase é atropelada , por um triz é salva, passa bem, apesar dos estragos: doutor, a menina era puro roxo, inchada, mais de três dentes quebrados; a mãe soluçava de desespero... “eu sabia que era ela, senti, mas eu agradeço por ela estar viva...”, só notícia brava, não dava pra concentrar no bem, então voltei a pensar naquela humilhação toda, aí o tempo fechou e eu disse o que queria e o que não queria, vocês fazem isso porque sou pobre, se fosse um engravatado o meu pedido tinha sido atendido, não, eu não quis mais comer, eu perdi a fome, dane-se, dane-se, ele veio com aquela conversinha fiada depois de me fazer esperar mais de meia hora, um entra-e-sai de gente, quis me fazer comer aquela gororoba fria, eu não queria mais não, o sangue subiu a cabeça, eu já não tinha mais nada a perder, a vida toda sendo bucha de canhão, ninguém aguenta, aquele galegozinho veio me chamar de filho-da-puta, quem pensa que ele é, só porque é branquela, leite azedo, puta preconceito!, mas é trabalhador como eu, serve comida, eu servia aos clientes, ninguém é melhor que ninguém nessa vida, doutor, não é porque eu tenho este cabelo chamuscado, mão cheias de calos, que vão pisar em cima de mim, não, quem carrega essa cidade nas costas, não são os pobres de nós trabalhadores que viemos pra cá?, meus pais saíram do sertão mineiro com uma mão na frente e outra atrás, mas nunca roubamos, trabalhamos de sol a sol, meu pai era pedreiro, mas criou a fiarada toda, minha mãe pariu onze, já morreram quatro, somos pobres, mas decente; não, doutor, eu não sou de fugir da responsa, mesmo com umas na cabeça, eu dou conta do recado, monto móvel, faço carreto, faço serviço de bombeiro, reparo de um tudo, pinto casa, agora eu tava atendendo a aquele pessoal que compra móveis da loja, virei montador, cuidava disso na maior, imagina, doutor, eu fui despedido pelo celular, enquanto aguardava o rango, barriga roncando, isso é uma humilhação, o diacho do lambe-botas vem com aquela grosseria toda, eu não aguentei, ninguém bate na cara que mamãe beijou, não, não, vontade foi de lambuzar a cara dele de comida quente, jogar a bandeja no chão, mas a única coisa que veio na minha cabeça, ô maldição, foi me defender, ele avançou eu avancei tamém, não sou homem de fugir da raia, fico na paz - dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair, mas doutor não era para machucar, ele me deu um tapa na cara, na cara dum homem não se rela, né mesmo?, aí agarrei numa ira dos diabos, acochei ele no balcão e bati pra valer, nunca fui desses repentes, sempre controlei a ira na rédea curta, pode acreditar, não sou fichado na polícia nem nada, vê aí nos arquivos, é, quebramos tudo, tenho dinheiro pra pagar não, tenho não seu doutor, ele tamém é responsável, meu desatino foi ter quebrado a garrafa na cabeça do fidaégua, mas ele tá vivo, não tá!... desempregado eu tamém tô... não tenho dinheiro pra pagar cesta básica não, como vou fazer caridade se minhas latas tão vazias, nem sei como vou contar pra patroa, mas peraí doutor tá acendo uma luz, tô pra te dizer uma coisa, tem uma chance, talvez eu possa sim, e de lambuja eu pago os atrasados que estão dormindo na gaveta, se hoje for o meu dia de sorte, oxalá! continuo com fé... mas o doutor tenho que saber uma coisa: que bicho deu?
a fulana pra mais de quinze dias, espia isso, doutor: no momento de colocar uma das portas de correr, o espelho que deveria estar colado, veio desgrudado, solto sobre a madeira, por desgraceira, espatifou-se em mil pedaços, o chão ficou todo estrelado - sinal de sorte – diria minha vó, que Deus a tenha num bom lugar, não houve jeito de evitar o imprevisto, isso acontece, não é sempre, mas às vezes quando menos se espera acontece uma trapalhada, estraçalha-se, mas justamente com essa dona aborrecida que não se esgotava de reclamar - acontece, quis rebater, mas a mulher agarrou num ódio danado e não quis saber de disse-me-disse, ligou para o gerenteco, “olha, eu não quero mais esse sujeito aqui na minha casa, na terça-feira, vocês disseram que viriam e ninguém apareceu eu fiquei o dia inteirinho esperando e nada, hoje veio um estúpido, com um bafo de pinga, nem se aguentando em pé e (...)”, aquele dia começou assim, doutor: eu via sinais de sorte, mas tava montado era no azar, na televisão um lero-lero danado com a visita do cara: “Obama no Brasil” presidente dos Estados Unidos, acho que ele é homem e tanto, pô um negão quinem eu conseguir chegar onde chegou, é de tirar o chapéu, ele apertava as mãos das crianças da favela, uma delas chorava cheia de fricote, não consigo entender o porquê da agitação, era um aperto de mão e só, aí a repórter falou uma coisa que me interessou - as filhas do presidente aprenderam a falar a palavra borboleta em quase todos os idiomas ou teriam que aprender, não me lembro muito bem, mas deve ser muita coisa mesmo, borboletas que não acabam mais, no idioma delas é... peraí que eu sei, be-ter-flai, não ri não, doutor, ah, é ba-ter-flai?, baterflai!, legal, então dito assim nas estranjas a língua desobedece, né, fico imaginando como deve ser em japonês, o doutor sabe como é?, mas o que importa é que eu tinha apostado tudo no leão – por que borboleta? seria um sinal? – matutei, não, não podia, era o dia de o rei reinar, tava certo disso e não tava, peguei na dúvida meu leão ou a borboleta dos obamas?; a mocinha numa indecisão apertava o controle remoto e trocava de canal, passa um canal de esporte, depois uma televisão educativa com aqueles programas sobre bichos, rios, florestas, pantanal, trocava sem parar, e vêm outras notícias e eu de butuca até nos comerciais, aí o seu Orlando ligou no meu celular e tive que escutar aquele amigo da onça, o Judas, X-9, jurava de pé-junto que éramos amigos, mas foi promovido e ficou metido a besta, foi logo me dizendo que tinha me dado a última chance, mas que não aliviava mais, pereré-pereré-pão-podre e nesse agastamento todo, já tava com o bilhete vermelho mesmo, mandei ele logo praquele lugar com a loja inteira e tudo mais, dois anos aguentando contrariedade, uma humilhação atrás da outra, só a cachaça mesmo pra me segurar e suportar tanta merda na cachola, não, doutor, tinha bebido não, nadica naquela hora; tinha, vou mentir pro doutor não, não adoço e nem tempero, se fiz, fiz; se não fiz, não fiz, ó, mas parei às quatro da manhã, por pura responsa, a galera tava jogando bisca, meus primos vieram de Pirapetinga pra assistir ao jogo do Fluminense, fizeram surpresa, jogão no Morumbi, uma van cheinha; pro doutor ver como eu tava ligado, mesmo ganhando a última rodada, eu parei, dei uma cochiladinha e lá pelas seis da manhã, tomei um banho gelado, depois um café bem preto goela abaixo e tava novinho em folha, a vida é assim, tem hora que falta, tem hora que sobra e é com o que tá no meio que a gente vive; sim, lembro os detalhezinhos... pode perguntar pras testemunhas, na porta do restaurante uma dona pedia ajuda, ela fica sempre por lá com a mesma conversa fiada, dizia que precisava voltar pra casa e não tinha como comprar a passagem, já tinha ido à assistente social, mas a única coisa que conseguiu foi um abrigo que ficava bem distante da região central de São Paulo - fiquei com dó, ela tava pele e osso de tão magra, mas fazer o quê?, a vida de pobre é essa peleja, esse destino que só é bom mesmo quando se fecham os olhos pra sonhar, não dou conta nem das minhas misérias, no rio que o rico mata a sede o pobre se afoga; mas chega de chororô e vamu que vamu, sim, como ia esquecer: um dos atendentes caçoava do outro, encostado no balcão, chora Mané, meu timão só dá alegria; na mesa lá do canto, um casal de namorados parecia fazer planos em uma caderneta, a moça fazia anotações e o bicão toda hora lascava um beijo nela; dentro do balcão: dois garçons (um deles era o talzinho) se estranhavam por causa da próxima folga, dava pra ouvir o bafafá, e minha refeição esfriando na cozinha, ninguém nem aí, cada um curtindo suas mazelas, é doutor foi assim assim!, tava de boa, pensando no que eu faria com o dinheiro do bicho – se ganhasse, calminho da silva: o jeito era apostar na sorte de vez em quando, fazia uma semana que eu jogava no 7464 – leão, tinha fé... me bateu a dúvida, fiquei com uma pulga atrás da orelha: borboleta ou leão? 7464 ou 7415? Os obamas dos esteites apontam para o final 15, mas o 7464 é o número do busão que pego todo dia pra aguentar esse inferno todo de patrão, cliente, gente chata e metida a besta, as contas pra pagar, o aniversário da Raíssa no mês que vem, é minha filha, doutor, tenha outras duas, Raíza e Rúbia; poxa, quinze anos, tem que fazer uma coisinha pra comemorar, a parentada não quer nem saber, exige mesmo, pode ser qualquer arrebenta tripa, mas tem que ter festança; passei de manhã baixa na banca do Careca e apostei o dinheiro do aluguel, já tava atrasado mesmo há quatro meses, depois eu dava um jeito: cem reais para a milhar na cabeça e pra salvar, cinquenta reais do primeiro ao quinto, depois que ouvi a cartada dos obamas fiquei meio cismado, mas tava com fé; ó, minha mãe, coitadinha, equipou a casa dela com as moedinhas que jogava nas milhares dos seus sonhos, ela interpretava e fazia ligação com os animais, se sonhava com água limpa – era coelho na certa; se era barrenta - dava cobra e por aí vai, é uma sábia, agora ela tem microondas, batedeira, forno elétrico; o doutor precisa ver, o forninho dela dá até pra assar peru no natal, é potente sim, senhor, ah, tamém pagou a entrada do colchão de molas com a graninha do bicho, lembro mais: à minha direita tinham duas donas... não pude deixar de ouvir a conversa das fulaninhas (minha dona diz que eu tenho ouvido de tuberculoso e memória de elefante), enquanto traçavam um baita filé de frango com queijo e presunto, salivei, um dos pratos mais caros, (...), um papo sem pé nem cabeça: não deixe não, ele não pode fazer isso não, a casa é sua, Mulher, toma as rédeas, senão ele vai te montar ainda mais, quando ele gritar com o capeta na boca, coloca um louvor, invoca Jesus, coloca bem alto; foi assim que ganhei meu irmão, com o canto do Senhor, sabe como foi?, o Beto, meu irmão, num sabe?, colocava aquela música de ímpio: rocks do demo, um tal de Titãs, um tal de Lobão e até um tal de D2, eu pedia: irmão pare, por favor; mas de nada adiantava, escravo do mal, tava todinho dominado pelo Coisa Ruim, aleluia, eu peguei com o Senhor, clamei pelo sangue de Jesus, e derrotamos o tinhoso, eu queria ouvir meu louvor, isso sim é música, mas ele não me emprestava o som, embirrei: fui às Casas Bahia e comprei um sonzinho, bom, menina, precisa ver, dividido em doze parcelas sem juros, aí o desg... aí o maninho teve que engavetar as vozes servas do diabo, sabe por quê?, eu acordava primeiro que ele e colocava meu louvor na maior altura e falava: não tira não, deixa Jesus cantar pra nós, isso sim é derrotar o inimigo, escuta, mano, aí eu cantava na maior altura pra ele aprender, menina sabe que hoje ele não escuta mais aquele som do inferno, vou lhe contar um segredo: Deus falou comigo pela boca da irmã Ana (se não me engano), ela é serva fiel, num sabe?, disse que eu tinha que salvar o mano e atendendo o pedido de Jesus, eu abri o som dele e cortei um fiozinho e não é que o Senhor fez um milagre: ficou mudo; que papo furado, né, doutor? a maluca da mulher me encarou com aquela cara de fuinha, xô azar, perceberam que eu tava de ouvido em pé, de butuca pra todo lado, prestando atenção, mas porra quem manda falar alto, pra despistar chamei o cão sarnento – “esse rango saí ou não sai?”, e ele veio com desculpa esfarrapada: moço, me desculpe, mas esqueceram de anotar o seu pedido, mas já vou providenciar – disse olhando com raiva pro colega, depois de um tempo, voltou o Mané, o feijão acabou, tem problema substituir por farinha?, vi a curva de zombaria no canto da boca dele, aí eu montei no ódio igualzim daquela mulher, tava tremendo de ressaca, despedido pelo traíra do Orlando, dívida atrás de dívida, aguentando frescura de madame que pensa que tem um boi de cem conto na barriga, aí eu judiei, “meu camarada é por isso que vocês estão nessa de serviçal até hoje, não têm competência, cadê o gerente? Chama lá, chama o dono dessa espelunca, então, tenho meus direitos”, o arranca-rabo ferveu, o sujeito gritava, eu gritava mais alto, pô tava nervosaço, ele entrou na cozinha e pra acalmar fiquei de butuca na TV – gosto de ouvir os acontecidos; no ABC, uma jovem é arrastada pela correnteza, passa debaixo de alguns carros, e ao ser levada pela enxurrada até o finzinho da rua, quase é atropelada , por um triz é salva, passa bem, apesar dos estragos: doutor, a menina era puro roxo, inchada, mais de três dentes quebrados; a mãe soluçava de desespero... “eu sabia que era ela, senti, mas eu agradeço por ela estar viva...”, só notícia brava, não dava pra concentrar no bem, então voltei a pensar naquela humilhação toda, aí o tempo fechou e eu disse o que queria e o que não queria, vocês fazem isso porque sou pobre, se fosse um engravatado o meu pedido tinha sido atendido, não, eu não quis mais comer, eu perdi a fome, dane-se, dane-se, ele veio com aquela conversinha fiada depois de me fazer esperar mais de meia hora, um entra-e-sai de gente, quis me fazer comer aquela gororoba fria, eu não queria mais não, o sangue subiu a cabeça, eu já não tinha mais nada a perder, a vida toda sendo bucha de canhão, ninguém aguenta, aquele galegozinho veio me chamar de filho-da-puta, quem pensa que ele é, só porque é branquela, leite azedo, puta preconceito!, mas é trabalhador como eu, serve comida, eu servia aos clientes, ninguém é melhor que ninguém nessa vida, doutor, não é porque eu tenho este cabelo chamuscado, mão cheias de calos, que vão pisar em cima de mim, não, quem carrega essa cidade nas costas, não são os pobres de nós trabalhadores que viemos pra cá?, meus pais saíram do sertão mineiro com uma mão na frente e outra atrás, mas nunca roubamos, trabalhamos de sol a sol, meu pai era pedreiro, mas criou a fiarada toda, minha mãe pariu onze, já morreram quatro, somos pobres, mas decente; não, doutor, eu não sou de fugir da responsa, mesmo com umas na cabeça, eu dou conta do recado, monto móvel, faço carreto, faço serviço de bombeiro, reparo de um tudo, pinto casa, agora eu tava atendendo a aquele pessoal que compra móveis da loja, virei montador, cuidava disso na maior, imagina, doutor, eu fui despedido pelo celular, enquanto aguardava o rango, barriga roncando, isso é uma humilhação, o diacho do lambe-botas vem com aquela grosseria toda, eu não aguentei, ninguém bate na cara que mamãe beijou, não, não, vontade foi de lambuzar a cara dele de comida quente, jogar a bandeja no chão, mas a única coisa que veio na minha cabeça, ô maldição, foi me defender, ele avançou eu avancei tamém, não sou homem de fugir da raia, fico na paz - dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair, mas doutor não era para machucar, ele me deu um tapa na cara, na cara dum homem não se rela, né mesmo?, aí agarrei numa ira dos diabos, acochei ele no balcão e bati pra valer, nunca fui desses repentes, sempre controlei a ira na rédea curta, pode acreditar, não sou fichado na polícia nem nada, vê aí nos arquivos, é, quebramos tudo, tenho dinheiro pra pagar não, tenho não seu doutor, ele tamém é responsável, meu desatino foi ter quebrado a garrafa na cabeça do fidaégua, mas ele tá vivo, não tá!... desempregado eu tamém tô... não tenho dinheiro pra pagar cesta básica não, como vou fazer caridade se minhas latas tão vazias, nem sei como vou contar pra patroa, mas peraí doutor tá acendo uma luz, tô pra te dizer uma coisa, tem uma chance, talvez eu possa sim, e de lambuja eu pago os atrasados que estão dormindo na gaveta, se hoje for o meu dia de sorte, oxalá! continuo com fé... mas o doutor tenho que saber uma coisa: que bicho deu?
Muito bom esse conto. Gostei. Lê-se sem respirar praticamente.
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