sexta-feira, 28 de agosto de 2015

CONTOS CORRENTES

MATHEUS ARCARO

Autor do livro de contos Violeta velha e outras flores, Matheus Arcaro nasceu em 1984 em Ribeirão Preto, onde vive atualmente. Graduado em Comunicação Social e também em Filosofia. Pós-graduado em História da Arte. Atua como diretor de criação publicitária e como professor de Filosofia e Sociologia. Desde 2006 tem artigos, crônicas, contos e poemas publicados em veículos regionais e nacionais. Nas poucas horas vagas, atua ainda como artista plástico.

É dele o conto abaixo:
Teclado

Depois de alguns segundos em frente à porta da qual acabaram de sair, Joana ligou para o marido.
– Nada nos exames. Disse apenas para continuarmos observando.
Perdeu as contas. A quantos especialistas tinha depositado suas esperanças nos últimos meses? Pediatra, fonoaudiólogo, psicólogo, psiquiatra, acupunturista, tarólogo... Nada de resultados, apenas palpites travestidos de diagnóstico. Nenhuma pista do que poderia estar acontecendo com seu filho.
Sete ou oito meses antes, final de tarde pacata como havia de ser, Júlio entrou em casa com um pacote vermelho comprido debaixo do braço. Passou pela mãe, correndo, sem sequer cumprimentá-la. O que será isso? Joana conclui, sem tirar olho da panela, que devia ser algum trabalho de escola.
Dedicada às funções que julgava suas desde o começo dos tempos, Joana cuidava do lar com esmero, alimentava o marido e somava à renda trabalhando meio período na quitanda do Zerdali, velho turco especializado em ajudar senhoras casadas. Júlio era parte importante do plano que traçaram para ela antes mesmo do seu nascimento. Que mulher nesse mundo seria feliz sem um filho? Entretanto, desde o dia em que o seu menino entrara em casa às pressas com aquele embrulho, sua plenitude ficara comprometida.
            E Júlio? Júlio parecia com o que devia parecer. Um livro erótico de capa sóbria. Ajudava a mãe com algumas tarefas em casa; na escola, notas boas, não excelentes. Menino. Mas, por dentro, um turbilhão. Apesar dos doze anos, percebia que era habitado por algo extraordinário; algo que o tornava diferente de todos os amigos; um tesouro valioso demais para se exibir por aí.
           No início Joana gostou. Obviamente causava-lhe estranheza o fato de o teclado não emitir som, mas, melhor assim. Pelo menos não atrapalha minha novela. De quando em vez aparecia ao quarto do filho e acariciava-o com aquele olhar que só as mães sabem lançar. Mas os dias foram passando e, ao contrário do que imaginara, o tempo que Júlio dedicava ao instrumento só fazia aumentar. Na segunda semana, os banhos (que antes duravam quarenta minutos) não passaram de cinco. Na terceira, jantou quatro vezes no quarto. Na quinta, parte da madrugada pertencia ao teclado.
          – Meu filho, a pilha desse negócio deve estar fraca!
          Não era a pilha. Não era a bateria. Não era a eletricidade. Júlio não precisava que o instrumento fizesse barulho. A música do teclado, do seu teclado, era vibrante. Carregava-o a viagens inimagináveis. Nem os tempos e compassos mais perfeitos conseguiriam aquelas harmonias.
           O menino não possuía técnica rígida. Por vezes, deslizava os dedos de uma extremidade à outra do instrumento, como se fossem patinadores bem treinados. Em outras situações, porém, os dedos pareciam beija-flores famintos, roçando as teclas como se nelas estivesse o néctar necessário à sobrevivência. Não raras as ocasiões em que os dez dedos subiam e desciam vigorosamente feito o trote de um garanhão. Independente dos movimentos das mãos, os olhos permaneciam fechados e a testa franzida atrás da cortina loura.
          – Temos que comprar um teclado novo para o menino, Luiz!
          O aperto orçamentário não foi recompensado. Tentaram ainda outros instrumentos, sopro, corda, percussão. Nada. Eram inexpressivos para Júlio. Sua vida, desde que recebera o presente, pertencia àquelas notas musicais.
          Toda noite despedia-se do amigo colocando-o sobre o criado-mudo. Os que, como prega o ditame, perdem o amigo, mas não perdem a piada, diriam que não há lugar mais propício. Entretanto, a escolha do menino era por uma questão de segurança, já que a pequena estante ficava colada à sua cama. Em algumas manhãs Joana abria a porta, coração na garganta, expectativa de cumprir seu papel materno, acordar o filho para a escola com um beijo na fronte, mas quase sempre ele estava vestido, pronto, a acariciar o companheiro sobre o regaço.
          Joana passou noites em claro pesquisando na internet casos semelhantes, implorou a Júlio que retomasse o juízo, rezou a todos os deuses, anjos e santos que conhecia. Nenhum resultado. Determinado dia, num surto de desespero, ela escondeu o teclado. Esperou Júlio adormecer entrou em seu quarto, pegou o instrumento e o levou para a casa da irmã. Não entregaria os pontos tão facilmente; não daria o filho por insano antes de esgotar as possibilidades. Ele, de certa maneira, esperava por algo de tal natureza, por isso não repreendeu a mãe. Não sabia sentir raiva. Passados três dias sem que Júlio tenha sequer aproximado um alimento da boca, Joana preferiu devolver o instrumento a ver o filho mirrar-se. 
Mais didático que calamitoso tal episódio plantou uma reflexão em Joana: por que este instrumento mudo é tão importante para o meu filho? Por duas semanas, a pergunta deixou-a praticamente em silêncio. Silêncio que germinou a resposta em seu peito e desintegrou o tapume que a separava do menino: pela primeira vez, ela viu Júlio. As melodias solitárias, as horas de conversa com o teclado, as anotações no caderninho musical: tudo fazia sentido dentro da pele do filho. Meu filho! Apesar de deixá-la indefesa de si, sentiu-se estranhamente satisfeita. Inteiramente mãe.

Muito antes de entrar naquele consultório, ela sabia que exames seriam desnecessários. Sabia que seu filho não precisava ser medicado. Porque remédio algum, por mais alta que seja a dosagem, cura o poder da imaginação. Quando, pela primeira vez, tomou coragem de dizer isso ao marido, ele já tinha desligado o telefone.

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