segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CARTA CAPITAL| BELO GESTO


Belo gesto

Embora todos nós nos entregamos à mórbida preferência por ver os defeitos humanos, ainda há pessoas que resgatam o sentido da palavra humanidade

O Adamastor me fez lembrar outro dia que todos nós nos entregamos à mórbida preferência por ver os vícios e defeitos humanos. Há na base disso, dizia ele, uma prazerosa sensação de superioridade. E para exemplificar o que me dizia apenas como conceito, começou a citar filmes e livros, sobretudo filmes com sucesso de bilheteria. Mas é o pobrismo, hoje moda no Brasil, rebati.

Bom que fosse só isso, refletiu meu amigo. E continuou dizendo que o facínora fascina porque comete o que muitos gostariam de cometer, sem coragem de arrostar a sociedade e arcar com as consequências. O Adamastor, como vocês sabem, não tem lá grande formação acadêmica, mas é dotado de uma perspicácia impressionante aliada a um forte senso de observação. Pode-se dizer que é um conhecedor do ser humano.
Me lembrei dessa conversa com meu amigo, ontem de manhã. Como fazemos todos os dias, minha mulher e eu vamos de carro até certa avenida onde caminhamos por cinquenta minutos em passo acelerado. É preciso suar. Antes do exercício, como nos recomendou uma professora de educação física, costumamos fazer alongamento. Colocamos as duas mãos empurrando o carro e as pernas se contorcem para soltar os músculos renitentes e infensos ao gosto do exercício. Agora reconheço: a posição em que trabalhamos as pernas é um pouco estranha.

Pois ontem, em pleno alongamento, vimos uma jovem mulher, não mais de vinte e cinco anos, atravessar a avenida olhando para nós, com semblante preocupado. Ao se aproximar, ela perguntou para a Roseli: A senhora não está se sentindo bem? Eu moro aqui perto, vamos até lá em casa.

Meu pessimismo de plantão, ficou visivelmente abalado. Com que direito me chega uma pessoa estranha tentando subverter minhas opiniões sombrias a respeito do ser humano? Não digeri rápida nem tranquilamente sua oferta. Mas consegui refrear meus impulsos antissociais a tempo.

Muito constrangidos por termos provocado tal equívoco, mostramos à jovem mulher que apenas nos preparávamos para mais uma sessão de exercícios, obedecendo ao que nos prescrevera uma especialista nestas coisas de nossa materialidade. Pelas sobrancelhas erguidas, suponho que ela tenha ficado um tanto decepcionada, não sei, mas, sorridente, ela atravessou novamente a avenida e seguiu seu caminho. Nunca a tínhamos visto, talvez nunca mais venhamos a vê-la, mas passamos o resto do dia convencidos de que existem, sim, existem pessoas que resgatam o sentido da palavra humanidade.

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