Um passageiro estranho (conto inédito)

Em Pinheirinho o ônibus fez uma parada rápida em um posto de
combustível e abri os olhos porque alguém ia ocupar o lugar a meu lado. Era um
homem alto, envolto em uma capa preta e um chapéu enfiado na cabeça fazendo
sombra em seu rosto. Ele me cumprimentou, Boa noite, doutor. Sei ter
contrariado alguns interesses, e um encontro assim, tão insólito, me afugentou
o sono. Respondi com voz carregada de pigarro, uma voz querendo esconder-se,
por isso considerei sorte minha o interior do ônibus estar inteiramente
anoitecido.
Depois de sentado, meu companheiro de poltrona me pareceu
ignorar meus olhos fechados e, falando em voz que só nós dois ouvíssemos,
provocou-me uma dor que desceu do pescoço à região sacra da coluna.
− Eu sei que o senhor não me conhece, mas eu sei quem é o
senhor.
E calado esperou que eu continuasse o assunto, o que me
recusei a fazer. O senhor não é daqui, não é mesmo? Uma afirmação confirmando informações
sobre mim? Em seguida, contudo, percebi sua intenção: afirmou que morava na
cidade.
− O senhor está voltando para São Paulo?
Não era mais por causa do sono interrompido minha irritação,
mas por me ver de repente à mercê de um desconhecido de quem nem a fisionomia
podia ver. Ele, no entanto, queria apenas falar. Era sua necessidade.
− Eu estou indo para o nunca mais.
Não resisti ao absurdo da frase e, finalmente, abri a boca.
− Como assim?
Foi a deixa para que meu companheiro começasse a contar sua
história. A minha pergunta confirmava meus ouvidos à disposição de sua
angústia.
Os desentendimentos dos últimos anos. Coisa normal, qualquer
casal tem. Mas então os filhos, os dois, do lado da mãe na presunção de que
teriam uma participação maior nas fatias do bolo. Que o pai morresse? Não, pelo
menos explicitamente. Às vezes alguma sugestão, se o senhor morresse, ou,
quando o senhor morrer, como é que está sua saúde?, tudo isso me presumindo o
primeiro da fila. Talvez com alguma pressa, porque os filhos, jamais tiveram a
preocupação de construir alguma coisa, jogando na lata de lixo tudo que ganham.
Claro, na esperança de que uma partilha garantiria seu futuro.
As últimas casas ficaram no escuro da madrugada, encolhidas
de frio, provavelmente, e a estrada era então ladeada por bosques e plantações.
Meu desejo de dormir entrava em conflito com a vontade de falar do meu vizinho.
Em conluio familiar, conseguiram acusar o pai de adultério,
de sonegação de impostos, de falsidade ideológica por causa de uns documentos
de pouco valor, de ateísmo militante, de muitas outras coisas foi acusado. A
mãe, que jamais contrariava os filhos, concordava com todas as acusações e
algumas ela mesma inventava.
O inferno desceu sobre o palacete da Água Verde.
Os quartos já eram separados, mas os horários também se
modificaram para que não houvesse mais encontros. A filha, com o marido,
resolveram ocupar uma das alas do andar superior alegando sua ociosidade. Eram
dois espiões a vigiar seus passos, os passos do pai.
O ruído monótono do motor, a escuridão dentro do ônibus e
aquela voz pouco mais que um cochicho, tudo contribuía para que o sono
aumentasse. Penso ter perdido algumas passagens do drama daquele estranho
passageiro. Durante muito tempo ele fez silêncio e me deu a impressão de ter
cabeceado algumas vezes.
− Sabe de onde conheço o senhor?
O inopino de sua pergunta me fez voltar à poltrona e à
estrada. Pensei em dizer alguma coisa como resposta, mas ele não me deu tempo.
− Hoje foi meu divórcio e encontrei o senhor várias vezes no
fórum. E a gente reconhece um advogado naquele ambiente com a maior facilidade.
O meu também estava de terno e gravata. O infeliz.
Acho que dormimos os dois por algumas horas, pois tive a
impressão de que descíamos a Serra do Azeite.
Infeliz?
− Eles cooptaram meu advogado, não sei com que promessas. E
me deixaram sem nada. Estou viajando com tudo que tenho.
O dia já estava claro e entre um cochilo e outro, fiquei
espiando a paisagem que corria para trás. Morros, campos, cavalos, mourões,
árvores. Tudo em movimento fugindo em sentido contrário ao nosso.
O ônibus acabou parando em um posto de combustível para
nosso café. Já não estava tão frio como no início da viagem e resolvi espichar
as pernas, me aliviar no mictório, tomar uma xícara de café e comer alguma
coisa. Meu companheiro não se mexia e tive alguma dificuldade para descer.
Vinte minutos, gritou o motorista ao abrir a porta que nos separava da cabine.
O que se pode fazer em vinte minutos?, pensei e comecei a
contabilizar o tempo para cada atividade. Concluí que poderia pelo menos
desencarangar as pernas. Algumas pessoas preferiram continuar dormindo, sem
vontade de despertar.
Andei, me aliviei, tomei meu café e comi um pãozinho de
queijo, andei um pouco mais. Quando o motorista apareceu à porta do
restaurante, achei que estava na hora de embarcar novamente.
Então a surpresa. Meu vizinho havia inclinado o corpo até
prensar a cabeça contra o banco da frente. Assim não seria possível chegar a
meu lugar.
− Senhor.
Repeti o chamado por diversas vezes sem qualquer resposta.
Sacudi seu ombro mais acessível. Seu corpo estava completamente rígido.
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