sexta-feira, 6 de novembro de 2015

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Um passageiro estranho (conto inédito)

Na madrugada fria de Curitiba embarquei no ônibus que vinha de Porto Alegre com destino a São Paulo. Encaixei meu corpo na poltrona, a cortina fechada, e comecei a contar ovelhinhas. Não sei quantas contei porque muitas delas refugavam a cerca que deveriam ultrapassar com seu pulo, enquanto outras misturavam-se com os assuntos que naquele dia tinham ocupado meu tempo e minha mente. Eu estava praticamente derrotado porque meu cliente, relapso, não tivera o cuidado de apresentar provas e testemunhas convincentes. Mas cabe recurso, adormeci pensando, e com uma fila de ovelhas no interior de meus olhos.

Em Pinheirinho o ônibus fez uma parada rápida em um posto de combustível e abri os olhos porque alguém ia ocupar o lugar a meu lado. Era um homem alto, envolto em uma capa preta e um chapéu enfiado na cabeça fazendo sombra em seu rosto. Ele me cumprimentou, Boa noite, doutor. Sei ter contrariado alguns interesses, e um encontro assim, tão insólito, me afugentou o sono. Respondi com voz carregada de pigarro, uma voz querendo esconder-se, por isso considerei sorte minha o interior do ônibus estar inteiramente anoitecido.
Depois de sentado, meu companheiro de poltrona me pareceu ignorar meus olhos fechados e, falando em voz que só nós dois ouvíssemos, provocou-me uma dor que desceu do pescoço à região sacra da coluna.
− Eu sei que o senhor não me conhece, mas eu sei quem é o senhor.
E calado esperou que eu continuasse o assunto, o que me recusei a fazer. O senhor não é daqui, não é mesmo? Uma afirmação confirmando informações sobre mim? Em seguida, contudo, percebi sua intenção: afirmou que morava na cidade.
− O senhor está voltando para São Paulo?
Não era mais por causa do sono interrompido minha irritação, mas por me ver de repente à mercê de um desconhecido de quem nem a fisionomia podia ver. Ele, no entanto, queria apenas falar. Era sua necessidade.
− Eu estou indo para o nunca mais.
Não resisti ao absurdo da frase e, finalmente, abri a boca.
− Como assim?
Foi a deixa para que meu companheiro começasse a contar sua história. A minha pergunta confirmava meus ouvidos à disposição de sua angústia.
Os desentendimentos dos últimos anos. Coisa normal, qualquer casal tem. Mas então os filhos, os dois, do lado da mãe na presunção de que teriam uma participação maior nas fatias do bolo. Que o pai morresse? Não, pelo menos explicitamente. Às vezes alguma sugestão, se o senhor morresse, ou, quando o senhor morrer, como é que está sua saúde?, tudo isso me presumindo o primeiro da fila. Talvez com alguma pressa, porque os filhos, jamais tiveram a preocupação de construir alguma coisa, jogando na lata de lixo tudo que ganham. Claro, na esperança de que uma partilha garantiria seu futuro.
As últimas casas ficaram no escuro da madrugada, encolhidas de frio, provavelmente, e a estrada era então ladeada por bosques e plantações. Meu desejo de dormir entrava em conflito com a vontade de falar do meu vizinho.
Em conluio familiar, conseguiram acusar o pai de adultério, de sonegação de impostos, de falsidade ideológica por causa de uns documentos de pouco valor, de ateísmo militante, de muitas outras coisas foi acusado. A mãe, que jamais contrariava os filhos, concordava com todas as acusações e algumas ela mesma inventava.
O inferno desceu sobre o palacete da Água Verde.
Os quartos já eram separados, mas os horários também se modificaram para que não houvesse mais encontros. A filha, com o marido, resolveram ocupar uma das alas do andar superior alegando sua ociosidade. Eram dois espiões a vigiar seus passos, os passos do pai.
O ruído monótono do motor, a escuridão dentro do ônibus e aquela voz pouco mais que um cochicho, tudo contribuía para que o sono aumentasse. Penso ter perdido algumas passagens do drama daquele estranho passageiro. Durante muito tempo ele fez silêncio e me deu a impressão de ter cabeceado algumas vezes.
− Sabe de onde conheço o senhor?
O inopino de sua pergunta me fez voltar à poltrona e à estrada. Pensei em dizer alguma coisa como resposta, mas ele não me deu tempo.
− Hoje foi meu divórcio e encontrei o senhor várias vezes no fórum. E a gente reconhece um advogado naquele ambiente com a maior facilidade. O meu também estava de terno e gravata. O infeliz.
Acho que dormimos os dois por algumas horas, pois tive a impressão de que descíamos a Serra do Azeite.
Infeliz?
− Eles cooptaram meu advogado, não sei com que promessas. E me deixaram sem nada. Estou viajando com tudo que tenho.
O dia já estava claro e entre um cochilo e outro, fiquei espiando a paisagem que corria para trás. Morros, campos, cavalos, mourões, árvores. Tudo em movimento fugindo em sentido contrário ao nosso.
O ônibus acabou parando em um posto de combustível para nosso café. Já não estava tão frio como no início da viagem e resolvi espichar as pernas, me aliviar no mictório, tomar uma xícara de café e comer alguma coisa. Meu companheiro não se mexia e tive alguma dificuldade para descer. Vinte minutos, gritou o motorista ao abrir a porta que nos separava da cabine.
O que se pode fazer em vinte minutos?, pensei e comecei a contabilizar o tempo para cada atividade. Concluí que poderia pelo menos desencarangar as pernas. Algumas pessoas preferiram continuar dormindo, sem vontade de despertar.
Andei, me aliviei, tomei meu café e comi um pãozinho de queijo, andei um pouco mais. Quando o motorista apareceu à porta do restaurante, achei que estava na hora de embarcar novamente.
Então a surpresa. Meu vizinho havia inclinado o corpo até prensar a cabeça contra o banco da frente. Assim não seria possível chegar a meu lugar.
− Senhor.
Repeti o chamado por diversas vezes sem qualquer resposta. Sacudi seu ombro mais acessível. Seu corpo estava completamente rígido.
  
  



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