sexta-feira, 13 de novembro de 2015

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

A última viagem


Por obsolescência, dizia o jornalista lá pela metade da matéria. Será uma despedida reverente, esta última viagem, pelos cinquenta anos de serviços da locomotiva 524. A 524 levara em sua vida pessoas da cidade para outras cidades, pessoas que atravessaram oceanos, cortaram os céus, circundaram o mundo.

E a locomotiva passou a semana toda estacionada um pouco afastada da estação para que a cidade inteira a pudesse ver. Estava de tinta nova, de engrenagens engraxadas, de nós de pinho em seu depósito. Nos últimos dias de exposição, engataram-lhe dois vagões também engalanados, justamente os dois que estavam em tempo de serem aposentados, mas que apareciam agora sem um risco, mancha qualquer, como se tivessem acabado de sair do estaleiro.
Houve fila para entrar e observar de perto a locomotiva e seus dois vagões.
Quando passou a lista de adesão para esta última viagem, a viagem de despedida, Tancredo foi o primeiro a assinar. Estava com seu lugar garantido. O único inconveniente, segundo ele, é que não haveria um vagão restaurante. Com cerca de quinze anos de idade estivera na viagem inaugural da 524, e lembrava-se muito bem de ter sido naquele vagão sua estreia como consumidor de cerveja. As lembranças da mocidade quase sempre são doces, mesmo que amargas.
No dia aprazado, um domingo às nove da manhã, o sol veio também prestar suas homenagens à locomotiva. Estava sorridente, mas não agressivo. Jornalistas do país inteiro, de microfone em punho, alguns, outros de caderninho e caneta, todos eles tendo de acotovelar-se com o público da cidade que viera assistir ao embarque dos viajantes e à partida das três peças em vias de se aposentarem.
O último apito da maria-fumaça cobriu toda a cidade e foi fazer eco nas montanhas da serra, o horizonte.
As bandeirolas coloridas que o prefeito tinha mandado pendurar nas paredes externas, acenaram com certo frenesi, que a multidão não entendeu como sendo apenas o efeito de uma lufada de vento que passou estimulada pelo apito. Cinquenta anos transportando pessoas para os confins do mundo, trazendo mercadorias dos quatro pontos cardeais. E parecia tudo muito novo, como numa viagem inaugural.
Há ainda quinze poltronas vagas, gritou o alto-falante. Quem quiser, pode embarcar.
Houve um pequeno tumulto na plataforma, onde o povo se aglomerava, pois o número de candidatos era três vezes maior do que as vagas existentes. Por fim, a Câmara de Vereadores, em sessão de extrema urgência, deliberou que a escolha seria por idade, dando-se preferência, como sempre, aos mais velhos. E assim foi feito, completando-se a lotação.
O último apito da última viagem tinha já troado por cima da cidade. Em seguida, ouviu-se o chiar do vapor passando por algum lugar muito apertado. E as rodas moveram-se. Lentamente, mas moveram-se. Motivo suficiente para que chapéus fossem jogados para o alto, para que mulheres gritassem como histéricas, para que os meninos se atropelassem tropeçando nos trilhos e caindo, os joelhos em carne viva.
Pelas janelas dos vagões, os passageiros abanavam despedidas quase desesperadas.
Por fim, a 524 foi ganhando velocidade, seu barulho foi amaciando e o comboio da última viagem desapareceu na distância. A fumaça, que subia em pulsação viva, foi ainda vista por algum tempo. Mas também desapareceu.
O prefeito deu algumas entrevistas, depois das quais aconselhou o povo a voltar para suas casas, porque nada mais aconteceria. Uma despedida melancólica, mas inevitável. E foi assim que as casas voltaram a sua vida normal, com os habitantes todos suspirando saudosos.
Sobre o destino da 524, sabe-se que ganhou velocidade até o desvio dos trilhos que haviam sido previamente deslocados, mergulhando a locomotiva e seus dois vagões para o fundo do oceano.



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