A última viagem
Por obsolescência, dizia o jornalista lá pela
metade da matéria. Será uma despedida reverente, esta última viagem, pelos
cinquenta anos de serviços da locomotiva 524. A 524 levara em sua vida pessoas
da cidade para outras cidades, pessoas que atravessaram oceanos, cortaram os
céus, circundaram o mundo.
E a locomotiva passou a semana toda estacionada um
pouco afastada da estação para que a cidade inteira a pudesse ver. Estava de
tinta nova, de engrenagens engraxadas, de nós de pinho em seu depósito. Nos últimos
dias de exposição, engataram-lhe dois vagões também engalanados, justamente os
dois que estavam em tempo de serem aposentados, mas que apareciam agora sem um
risco, mancha qualquer, como se tivessem acabado de sair do estaleiro.
Houve fila para entrar e observar de perto a
locomotiva e seus dois vagões.
Quando passou a lista de adesão para esta última
viagem, a viagem de despedida, Tancredo foi o primeiro a assinar. Estava com
seu lugar garantido. O único inconveniente, segundo ele, é que não haveria um
vagão restaurante. Com cerca de quinze anos de idade estivera na viagem
inaugural da 524, e lembrava-se muito bem de ter sido naquele vagão sua estreia
como consumidor de cerveja. As lembranças da mocidade quase sempre são doces,
mesmo que amargas.
No dia aprazado, um domingo às nove da manhã, o sol
veio também prestar suas homenagens à locomotiva. Estava sorridente, mas não
agressivo. Jornalistas do país inteiro, de microfone em punho, alguns, outros
de caderninho e caneta, todos eles tendo de acotovelar-se com o público da
cidade que viera assistir ao embarque dos viajantes e à partida das três peças
em vias de se aposentarem.
O último apito da maria-fumaça cobriu toda a cidade
e foi fazer eco nas montanhas da serra, o horizonte.
As bandeirolas coloridas que o prefeito tinha
mandado pendurar nas paredes externas, acenaram com certo frenesi, que a
multidão não entendeu como sendo apenas o efeito de uma lufada de vento que
passou estimulada pelo apito. Cinquenta anos transportando pessoas para os
confins do mundo, trazendo mercadorias dos quatro pontos cardeais. E parecia
tudo muito novo, como numa viagem inaugural.
Há ainda quinze poltronas vagas, gritou o
alto-falante. Quem quiser, pode embarcar.
Houve um pequeno tumulto na plataforma, onde o povo
se aglomerava, pois o número de candidatos era três vezes maior do que as vagas
existentes. Por fim, a Câmara de Vereadores, em sessão de extrema urgência,
deliberou que a escolha seria por idade, dando-se preferência, como sempre, aos
mais velhos. E assim foi feito, completando-se a lotação.
O último apito da última viagem tinha já troado por
cima da cidade. Em seguida, ouviu-se o chiar do vapor passando por algum lugar
muito apertado. E as rodas moveram-se. Lentamente, mas moveram-se. Motivo
suficiente para que chapéus fossem jogados para o alto, para que mulheres
gritassem como histéricas, para que os meninos se atropelassem tropeçando nos
trilhos e caindo, os joelhos em carne viva.
Pelas janelas dos vagões, os passageiros abanavam
despedidas quase desesperadas.
Por fim, a 524 foi ganhando velocidade, seu barulho
foi amaciando e o comboio da última viagem desapareceu na distância. A fumaça,
que subia em pulsação viva, foi ainda vista por algum tempo. Mas também
desapareceu.
O prefeito deu algumas entrevistas, depois das
quais aconselhou o povo a voltar para suas casas, porque nada mais aconteceria.
Uma despedida melancólica, mas inevitável. E foi assim que as casas voltaram a
sua vida normal, com os habitantes todos suspirando saudosos.
Sobre o destino da 524, sabe-se que ganhou
velocidade até o desvio dos trilhos que haviam sido previamente deslocados,
mergulhando a locomotiva e seus dois vagões para o fundo do oceano.
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