quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

DEGUSTAÇÃO 9 - NA TEIA DO SOL

As emoções de um militante político durante a ditadura militar no Brasil. Este é o tema da obra NA TEIA DO SOL, cujo primeiro capítulo publicamos hoje na série Degustação.

O romance foi editado em 2004, pela Editora Planeta do Brasil.

Para mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.

Menalton Braff. Na teia do sol

Capítulo 1

Acordo tarde, atordoado, o sol um pé fincado na parede, bem ali, na frente, e outro, fulgurante, cravado na minha cara, torturador, que de onde conhece ele, seu sacana, de onde, responde! Uma bola de fogo presa na garganta: Quem? Você sabe, seu sacana, de onde, responde! Uma brasa cospe o hematoma no olho esquerdo: Quem? Escondo os olhos, de repente cegos, no côncavo da mão. Não me lembro! Responde! Não me lembro! Viro o corpo e o cotovelo afunda na cama-de-vento. Só isso: não me lembro. Sobe e desce a palavra que me dilacera as entranhas. Não sei: nada mais. O Vilmar entregou o primeiro, o Vilmar, pensando que se livraria. Não parou mais de apanhar até entregar tudo o que sabia. Queriam mais: você sabe mais. Apesar do suor, é um direito meu, este desfrute,  minha recompensa: tanto tempo esquecido o gozo da segurança. Mais um minuto. Me viro para o lado, em fuga: inundação de luz sobre mim, iluminando o cobertor rasgado e sujo. Depois a gente vê se traz coisa melhor. Móveis e utensílios, onde e como, sementes e ferramentas: sua herança. Mão áspera e grossa abraça a minha,
meus olhos só pedem uma palavra de esperança: o dia, companheiro, o dia ninguém sabe, mas é preciso continuar regando esta laranjeira, para que um dia as flores iluminem sua copa. Um direito meu, minha recompensa: esquecido o nome desta aragem que se enfia pelo vão sem janela, farejando faceira: aqui entre amigos.  Uma aragem perfumada pelo canto dos passarinhos: aqui entre amigos. Primeira noite fora daquele alçapão e preciso gozar melhor o corpo relaxado, entregue a si. Porta única, o alçapão, para um corredor comprido e estreito, deformado no olho mágico. Mais estreito que o ouvido cego de um carrasco e menos iluminado que seu turvo olhar.  Lá do alto, o papel picado se espalha pela cidade: André querido: Ficamos sabendo que você continua no Brasil. Que você  Brasil. O vento esgarçando sua voz: você Brasil. Bebo cada palavra que recolho na memória, gota a gota até que se esvazie a bilha. Até quando? Estamos todos muito preocupados com você, para o sul, para o norte, dançando pela  última vez, e ao mesmo tempo contentes por saber que não te pegaram mais. Transeuntes apressados esmagam flores sem perfume na calçada. Foge, querido, te salva, porque te queremos vivo. Num andar de baixo, uma janela aberta engole duas letras. Não se preocupe conosco. Uma revoada de pombas desenhando uma palavra ilegível nos telhados vermelhos. Não se preocupe conosco. Meu coração se esfola, escorregando pelo despenhadeiro. Conosco. Estamos bem tanto quanto podemos estar, você sabe, resistindo ao desânimo e ajudando teus companheiros. Teus companheiros: teus para o norte e companheiros para o sul, no embalo de um vento morno que sobe das cloacas da cidade. Estamos com pressa de que você volte pra casa, mas sabemos que ainda não é a hora.  As pombas tentam novamente, mas faltam letras a seu recado. Meu pai disse que você é um herói, que eu preciso me orgulhar de você. Como se fosse preciso ele dizer. Nossa turma está perplexa mas não se dispersou, e o clima na Faculdade é de luto desde que você fugiu. André querido, eles não serão eternos nem tão fortes como nosso amor. Eu te espero, nem que seja até o último dia de minha vida. Um beijo da tua Terê, triste mas confiante. Abandono finalmente aquela janela a espiar com seu único olho vazado uma rua que se agita quinze andares para baixo. Não, Teresa, não quero ser herói, porque tenho muito medo, um medo comum, que me contrai o estômago e me congela o gesto, e porque gosto muito de nossa turma, e porque sinto muita saudade das aulas, e porque da vida, o que mais quero, é casar contigo e ter muitos filhos, lindos e amoráveis filhos. Bagos de mamona estralam debaixo do sol e jogam os caroços fecundos no chão. Meu sono é fingimento, duas semanas, dia e noite o ouvido ligado na campainha, se alguém toca não sei se me despejo pela janela ou me entrego, diferença quase nenhuma, a não ser que o toque seja barra ponto barra, segredo entre mim e o Guma, assim, ó, ninguém além de nós dois. Distendo braços e pernas, volteio a cabeça pra relaxar o pescoço, assim, ó, e no oco do apartamento quase vazio, como um ribombo, pensei que tinham ouvido até no palácio onde tanto me querem. Me jogo pra fora da cama, suado. Este agora meu palacete: as paredes de tábuas sem mata-juntas, um piso irregular, de terra batida, um vão sem janela, idéia de coisa inacabada, a cobertura de telha oca apoiada nuns caibros roliços, marcas ainda do machado. Quarto e cozinha sem forro. A cama de lona e pregos na parede onde pendurar a roupa. Sinais da vassoura: os riscos no chão. A limpeza um acordo entre o homem e suas possibilidades. Então, pra fechar a segunda semana, ouço nosso código e meu corpo, compacto, congela: pode ter caído e revelado o segredo. Na frente da última porta do corredor, alguém insiste: barra ponto barra. Pisando com pés que nada sentem, as pernas querendo desobedecer, vou espiar pelo olho mágico. A taramela é pouco mais que simbólica: aqui, Tito, aqui você está seguro. O cansaço entrou na frente dos dois, quando abri finalmente a porta, marcas de muitos corredores escuros nos olhos. Os sacos de papel chegaram manchados de água e gordura e foram colocados em cima da mesa nua. O Guma, delicado mas sem alegria, que pega, quem sabe a última refeição neste apartamento. Eram pastéis quase frios, mas que me comoveram, porque talvez a última, e eu senti vontade de saltar ao pescoço de meus companheiros, beijá-los, apesar de que continuei mastigando, faminto, sem nada demonstrar. Olhavam espantados, quiçá curiosos, o espetáculo da fome, mudos, porém, respeitosos. Bato o dedo na taramela, que gira, louca: uma festa. Abro a porta. Para quem escapou de um esquife, um continente, esta chácara. Me atolo em ar e sol, me espraio na terra, escapo de meu corpo entorpecido, me espalho de mim no espaço ilimitado. Vejo. As últimas laranjas, no alto da laranjeira, oferta de cor e sumo, pouco acima do alcance do braço. Para baixo, à direita, até a cerca dos fundos enterrada em caraguatás e outros espinheiros, eucaliptos de corpo esguio e casca verde-desmaiado. Mais de vinte litros de água por dia, André, suas folhas, muito útil na drenagem de terreno alagadiço, meu pai com sua botânica prática, as férias no interior. E o cheiro: respira este cheiro. Quem sofre de tísica. Estendo o olhar aos quatro cantos e calculo uns cinco mil metros quadrados. Me sinto um guerrilheiro nas montanhas. Hoje não, tiro o dia pra preguiça, o reconhecimento de meu novo ambiente. Não, nem água: muito mais sede do que isto já passei. Um gole de refrigerante limpando a boca, mas depende de quê? Minha alegria novamente encolhida e o desânimo devorando o entusiasmo. Duas semanas, Guma, fechado aqui. Enfio as mãos na água do tambor e molho a cara, esfrego a nuca, encho a boca, faço um bochecho e jogo a água longe. Hoje não, por conta do índio que mora em mim. Nem escova de dentes. Não foi grande coisa, menos de dez linhas, mas uma voz que me chegava do outro lado, de lá, de onde as pessoas precisam fingir a todo instante que a vida corre normal, os pequenos atos sem heroísmo a não ser o de serem praticados enquanto a vida ao redor desmorona. Suas letras cobriram a cidade, mas depois de engolido na minha memória. E eu, bom, meu rumo decidido em algum quarto escuro. A primeira bola de bilhar, a que recebe a tacada, perde força, mas não o movimento que transmite às demais, nenhuma delas, entretanto, com movimento próprio: há um taco. De quê? Insisto, a ansiedade como gelo na minha boca. E o Guma então me pergunta se: você sabe alguma coisa de horticultura? Se bem que eles continuassem muito sérios, o Guma e seu companheiro, a pergunta me pareceu fora de propósito, eles dois e o semblante abatido deles, o rosto manchado de cansaço. De horticultura, e o som cantava sem sentido, qualquer coisa como um grito na rua. Uma buzina chamando?  Então suspeitei da verdade e bom, quando criança, minha mãe, na outra casa, perto de meu avô, porque nos fundos do quintal, depois do coradouro, algumas plantas, de olhos fechados eu vejo, sem qualquer conhecimento especial, mas já vi nascer, agachado e cheio de emoção, as primeiras folhas rasgando o solo, e tenho assistido ao crescimento, em muitos lugares, além de um pouco de botânica no colégio, o primeiro da classe e um professor asmático, mas apaixonado por tudo o que vive, acho que não deve haver grande mistério, eu adivinhando meu destino, sol e água, um pouco por conta da natureza. O olhar que eles trocaram: o que é que você acha?, fez secar minha esperança. Desconversei: guardar forças e juntar argumentos. Não, com seus pais, não, qualquer contato muito perigoso, vigiados dia e noite, aqueles homens lendo jornal escorados no poste. Retornei e insisti: que podiam confiar em mim, as férias na fazenda de um tio-avô, os pés no barro, a terra no sangue, uma ligação atávica, todos os meus ancestrais,  eu juro, gerações de pés-no-chão de onde tiravam o sustento. Daqui três dias, o velho verdureiro, que ainda não conheço, mas tenho a senha: como vai o velho?, minha saudação, e a resposta: muito bem. Então devo responder: é o que se quer. E ele completa: saúde, dinheiro e mulher. Então será o meu verdureiro, carrocinha de dois pneus e toldo de lona, todas as quintas-feiras. Me disseram que bem, então tudo bem, às onze horas da noite, no ponto de ônibus. Vontade de arrancar a roupa e mergulhar inteiro e desprotegido no sol e no vento, esfregar o corpo neste barro bendito. Eis que chega o Barão, cuida bem dele, companheiro, menção especial no  rol da herdade. Me olha de longe, desconfiado, o rabo entre as pernas, e o focinho erguido me esquadrinha antes de me aceitar. Então eu bato com a palma da mão na coxa, promessa de carinhos, e chamo: aqui, Barão. Ele abana a cauda abaixada, quebra o corpo e pende a cabeça, humilde, atendendo a meu chamado amistoso, e vem requebrando pra me farejar as pernas, descobrir de onde venho, um exame que não dura muito e em que sou aprovado, sinal que descubro em seu gesto de me lamber a mão. Só nós dois, amigo, neste continente perdido. Urge que aprendamos a língua um do outro, entende, camarada? Acho que entende, porque me pula no peito e abana a cauda, risonho, me reconhecendo como coisa sua, um companheiro. Então sai em disparada entre os canteiros de repolho, porque lá do outro lado da cerca, num campo encharcado, um bando de anuns brancos chegou reclamando, seu grito irritado. Mas que nem antes nem depois, o Guma num corcelzinho azul bem velho, às onze horas em ponto, pela torre da igreja, nem antes nem depois, sim, já entendi, mais instruções na viagem, e saíram deixando os pastéis e os refrigerantes, na porta a reiteração: às onze em ponto, quando o sino, nem antes nem depois, pela torre da igreja. Volta com a língua pendurada, vermelha e molhada, feliz, os anuns enxotados para os confins deste campo que eu da cerca percorro com os olhos, apalpo, um campo alagado, com valetas rasas ligadas como costelas a uma valeta mais funda. Uma povoação de maricás ralos e espinhentos, que não podem servir de esconderijo, a não ser à noite. Preciso voltar com mais tempo e escolher as passagens de terra firme, os caminhos possíveis para o caso de uma necessidade. O ar fino e limpo, o espaço aberto desencadeiam minha fome, e, acompanhado pelo novo amigo, volto ao meu palacete. No caminho, arranco uma cenoura ainda nova: muita vitamina, verdura ou legume?, minha mãe em dúvida com os nomes, se atrapalhando. Eu acho que é legume. Barão segue à minha frente, adivinhando minhas intenções, quem sabe o cheiro dos pastéis na mochila me denunciando. Ela pronta em dois minutos, a mochila, e três horas de espera aninhadas no alto da torre, que eu não perdia de vista, às vezes o medo de que me fugisse ou de que o relógio parasse, que acontecesse alguma coisa que melasse minha retirada, porque era muito bom pensar que depois de duas semanas confinado num apartamento, ia finalmente respirar os ventos de uma horta e ver o sol sem o enquadramento de uma janela do décimo quinto andar. É um medo que sempre me  persegue quando alguma coisa muito importante está por acontecer, espécie de superstição que combato com raiva, pois sei muito bem que a fatalidade só existe na cabeça das pessoas, e que o descuido, este sim, pode ser fatal. Meu tempo era muito pessoal, metido apenas dentro de mim, e divergia dos ponteiros. Depois de cinco horas de espera, o relógio da torre da igreja teimava em afirmar que só cinco minutos se tinham passado. Teimosia de velho empedernido, que não acredita em nada a não ser no que repete de quinze em quinze minutos e desde os tempos em que ainda tinha memória. Cruzes, quanta voragem! Quase me pega os dedos quando lhe ofereço um pedaço de pastel. Calma, Barão, que este é o último. Você não sabe o que significa saborear? Onde a disciplina de teus impulsos e o requinte de tua educação? Engole tudo de uma vez e fica me olhando, esperando mais. Às onze horas, mal cheguei ao ponto, um corcelzinho azul bem velho estacionou na minha frente e nem conferi se era o Guma antes de abrir a porta e entrar, então ele me perguntou se tudo bem com você, porque eu decerto parecia mudo, o coração fugindo, tontura de ébrio, as ruas e as fachadas completamente outras nestas duas semanas, tão diferentes como se estivesse rodando pelas ruas de Londres, ou Calcutá, onde nunca estive que não fosse pelo tubo da televisão, principalmente porque era um bairro em que nunca andei à noite. Foi difícil dormir, nesta primeira noite, pensando que os mosquitos fossem me carregar de volta, ao som de um concerto para violino e orquestra de cordas desafinadas. Pois este bosta é bem capaz de não saber nada mesmo, o fardado cochichando ao ouvido do paisano. Me pegaram pelos braços, suspenderam meu corpo amolecido pelo medo e pelas pancadas, e me levaram de volta pra cela. O dia começava a clarear. O cansaço foi mais forte que os pernilongos, e a sensação de que agora disporia da rosa-dos-ventos para escapar: me entreguei. O Guma repetiu a pergunta se tudo bem com você, e me alcançou um chapéu velho, agora no prego do quarto, que deveria ter sido cinza, em sua juventude, mas que o tempo e o uso tinham deixado sem cor definida, um escuro entre sujo e triste, e como eu relutasse em botar aquilo na cabeça, ele me passou um jornal dobrado, de ontem, e disse: toma, olha. Nas férias, quando criança, esta mesma sensação ao chupar uma laranja arrancada do pé. Quando criança, depois de adulto nunca mais voltei, meu tio-avô morto e a fazenda vendida. É uma estradinha de terra, estreita, mal uma carroça, ainda vivas as marcas do carro em manobra ontem à noite: boa sorte, companheiro. Segue em frente, pela várzea, uns dois quilômetros adiante umas casas agrupadas, todas baixas, pode ficar tranqüilo que é gente simples, chacareiros, se aparecem, coisa muito difícil, que ninguém se ajuda muito por não ter com quê, seu primo doente, tratamento no hospital. E uma fotografia antiga, não sei onde foram desencavar, tempo do serviço militar, semelhança nenhuma, me mostrava na primeira página, logo acima da promessa de que nas próximas horas botariam as mãos em mim, promessa do doutor, e apesar de a fotografia ser de um cara imberbe, ar aparvalhado, uns oito anos mais novo do que eu e ninguém mais podia se lembrar da cara que tive, apesar disso, me arrepiei ao ver um nome que raramente uso nos últimos dias, meu nome em negrito, corpo dez, e que nas próximas horas, garantia o doutor, homem de respeito, diplomado, confiável, que decerto não declarava aquilo à toa, sem que estivesse realmente muito próximo de sua vítima, eu, com aquela cara de que nem me lembrava mais. Domingo, durante o almoço com a Teresa e seus pais: que o cerco apertando, o Vilmar esta noite e ele sem muita convicção, meio pára-quedista, que não sabe grande coisa, mas o suficiente pra deixar vulneráveis um aparelho e mais dois ou três companheiros, que ele, mais por vaidade com as meninas, necessidade aurática, o Vilmar, por isso, um contato lá de dentro, a hora da retirada, é só o que espero. Os olhos da mãe de Teresa se enchem de lágrimas, com medo, os olhos do pai de Teresa se enchem de lágrimas, de ódio, e nós dois confiantes: que se tudo correr bem, nossos planos, até o fim do ano o casamento. Então, na despedida, minha sogra me beijou a testa: vai, meu filho, vai, cumpre teu destino, não sei se mais difícil pra vocês, nesta vida, ou pra nós que vamos contar os minutos da espera. Talvez bosquejo apenas, leiaute de que o tempo não permite arte-final, mas com traços que denunciavam quem viria a ser, por isso perguntei ao Guma se o carro não dava mais que aquilo, e ele, sem tirar os olhos da rua, sorriu antes de me dizer que o carro era legal, tudo em ordem, de um companheiro de quem ninguém suspeitava, e que a velocidade era boa, de gente que não precisa fugir. Um cedro, o paisano, imenso, seu braço mais grosso do que meu pescoço, se abaixou um pouco, domado, para ouvir o da farda dizer que este bosta, que era eu,  que este bosta é bem capaz de não saber nada mesmo. Apesar de ressentido com a pouca importância que me dava, me mantive imóvel, quase morto. Meu tio-avô saiu no escuro com a espingarda na mão direita e uma lanterna na esquerda. Curioso e com medo, saí atrás: o cachorro tinha dado sinal, na porta do galinheiro. É um bicho muito esperto, André, o gambá. Amolece o corpo deste jeito e deixa morder um pouco, as glândulas soltando esta catinga.  E com o foco da lanterna me mostrava o gambá estendido no chão, bem como morto, mesmo quando empurrado pelo cano da espingarda. Sem resistência, o cachorro cansa de morder este molambo fedido e se contenta  em latir de longe, em volta, até que enjoa e vai dormir. De manhã, vai-se ver, mas não era aqui?, bem aqui!, e sinal nenhum da refrega, a não ser um pouco de capim amassado. Descarregou na cabeça um tiro calibre dezesseis que reboou pela várzea e respondeu nas encostas dos morros, muitos quilômetros adiante. Um tiro que guardo até hoje nos ouvidos. Este bosta é bem capaz. E o dia estava clareando. Até que entramos por uma avenida muito longa e mal iluminada, o que de certa maneira me aliviou um pouco, porque as sombras desmanchavam minha fisionomia. E eram mais de onze e meia quando passamos pelo último poste iluminado, solitário, no fim da cidade, e pegamos uma estrada de terra, lugar ermo, quase intransitável. Olhei pelo vidro traseiro e fiquei olhando aquela luz inútil iluminando terrenos baldios. Um Sol vermelho, enorme, suspenso nos fios de luz, engarranchado, e envolto em fumaça, quando eles chegaram despejando uma chuva de bombas de gás lacrimogêneo, de cacetetes, jatos dágua, e antes de entrar pela porta aberta da catedral, olhei aquele Sol mudo, medroso, e pensei que já tinha conhecido o inferno. Os que viram primeiro ainda conseguiram fugir correndo pelas ruas afluentes, a praça em poucos instantes quase deserta. Foi minha última experiência religiosa, em um país que até em sua Constituição é religioso. Me arrancaram dos braços de Deus debaixo de pontapés e pescoções pra dentro de um camburão superlotado.  As poucas casas que os faróis do carro iluminavam na beira da estrada dormiam em profundo sossego, conformadas com a própria pobreza, como se nada existisse além do sono, como se não estivéssemos em um país do terceiro mundo, como se milhares de crianças não estivessem morrendo de fome naquele mesmo instante, como se um governo ilegítimo não estivesse naquela mesma hora, em todas as horas, vigilante, protegendo interesses escusos, pisoteando com suas botas sujas de lama a liberdade de um povo em nome dela mesma, a liberdade, esta mulher da vida, e eu não entendia que estivessem assim tranqüilas aquelas casas, porque eu não sentia sono nenhum, será que elas também, fingindo pra sobreviver?, e já tínhamos rodado bem uns vinte minutos pela mesma estrada quando saímos dela e entramos por outra ainda mais estreita, quase uma estrada de roça, e o carro sacudia muito, porque havia umas valetas cavadas por rodas de carroça em dia de chuva, dava bem pra ver, e os pneus nunca se mantinham muito tempo em cima ou em baixo, de vez em quando o carro arrastando a barriga na terra ou no mato, um barulho como se fosse desmanchar. Muitos companheiros a salvo só depois de atravessar a fronteira, as notícias chegando esparsas, imprecisas, todas elas meses depois, que o Vilmar, espremido, tinha dado todo o serviço, que não era muito, mas que me envolvia, e ele, tão requisitado pelas garotas por causa de sua aura, notícia de que expelido pela cloaca de um avião para as profundezas do oceano, agora moda pra não deixar vestígio, tantas organizações internacionais ligadas aos direitos humanos, a História um monstro que se alimenta de sangue jovem e anônimo pra continuar sua rota. Vai, filho, cumpre teu destino. Então quanto mais longe melhor, e eu acho que já uns vinte quilômetros ou mais, desde o último bico de luz pendurado num poste, de que te serviu a aura, Vilmar, de que te serviu? Não sei dizer direito, porque a escuridão engolia as distâncias e a velocidade do carro era muito irregular, só sei dizer que mesmo vendo aqueles retalhos de campos e matos dos dois lados da estrada, eu continuava falando muito baixo, só pensando que quanto mais longe melhor, que se no outro mundo, muito que bem, melhor ainda, lá ninguém acha que sou um perigo para a sociedade e tampouco sou lá conhecido. Se chego a atravessar esta cerca aqui na frente, adeus, ninguém mais bota as mãos em mim nas próximas horas, um mato fechado, bom, feito de propósito para esconderijo. Ninguém te avisou, Vilmar, ninguém teve tempo de te avisar que cedido o primeiro, não há mais parar, insaciável a sede deles. Percorro cerca de duzentos metros da estrada, nos dois sentidos, e sinto um prazer muito grande em poder caminhar em segurança. Insaciável, Vilmar. Acho que aqui poderia passar muitos anos, este espaço todo à minha disposição.      


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