
O romance foi editado em 2004, pela Editora Planeta do Brasil.
Para mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.
Menalton Braff. Na teia do sol
Capítulo 1
Acordo tarde, atordoado, o sol um pé fincado na parede, bem
ali, na frente, e outro, fulgurante, cravado na minha cara, torturador, que de
onde conhece ele, seu sacana, de onde, responde! Uma bola de fogo presa na
garganta: Quem? Você sabe, seu sacana, de onde, responde! Uma brasa cospe o
hematoma no olho esquerdo: Quem? Escondo os olhos, de repente cegos, no côncavo
da mão. Não me lembro! Responde! Não me lembro! Viro o corpo e o cotovelo
afunda na cama-de-vento. Só isso: não me lembro. Sobe e desce a palavra que me
dilacera as entranhas. Não sei: nada mais. O Vilmar entregou o primeiro, o
Vilmar, pensando que se livraria. Não parou mais de apanhar até entregar tudo o
que sabia. Queriam mais: você sabe mais. Apesar do suor, é um direito meu, este
desfrute, minha recompensa: tanto tempo
esquecido o gozo da segurança. Mais um minuto. Me viro para o lado, em fuga:
inundação de luz sobre mim, iluminando o cobertor rasgado e sujo. Depois a
gente vê se traz coisa melhor. Móveis e utensílios, onde e como, sementes e
ferramentas: sua herança. Mão áspera e grossa abraça a minha,
meus olhos só
pedem uma palavra de esperança: o dia, companheiro, o dia ninguém sabe, mas é
preciso continuar regando esta laranjeira, para que um dia as flores iluminem
sua copa. Um direito meu, minha recompensa: esquecido o nome desta aragem que
se enfia pelo vão sem janela, farejando faceira: aqui entre amigos. Uma aragem perfumada pelo canto dos passarinhos:
aqui entre amigos. Primeira noite fora daquele alçapão e preciso gozar melhor o
corpo relaxado, entregue a si. Porta única, o alçapão, para um corredor
comprido e estreito, deformado no olho mágico. Mais estreito que o ouvido cego
de um carrasco e menos iluminado que seu turvo olhar. Lá do alto, o papel picado se espalha pela
cidade: André querido: Ficamos sabendo que você continua no Brasil. Que você Brasil. O vento esgarçando sua voz: você
Brasil. Bebo cada palavra que recolho na memória, gota a gota até que se
esvazie a bilha. Até quando? Estamos todos muito preocupados com você, para o
sul, para o norte, dançando pela última
vez, e ao mesmo tempo contentes por saber que não te pegaram mais. Transeuntes
apressados esmagam flores sem perfume na calçada. Foge, querido, te salva,
porque te queremos vivo. Num andar de baixo, uma janela aberta engole duas
letras. Não se preocupe conosco. Uma revoada de pombas desenhando uma palavra
ilegível nos telhados vermelhos. Não se preocupe conosco. Meu coração se
esfola, escorregando pelo despenhadeiro. Conosco. Estamos bem tanto quanto
podemos estar, você sabe, resistindo ao desânimo e ajudando teus companheiros.
Teus companheiros: teus para o norte e companheiros para o sul, no embalo de um
vento morno que sobe das cloacas da cidade. Estamos com pressa de que você
volte pra casa, mas sabemos que ainda não é a hora. As pombas tentam novamente, mas faltam letras
a seu recado. Meu pai disse que você é um herói, que eu preciso me orgulhar de você.
Como se fosse preciso ele dizer. Nossa turma está perplexa mas não se
dispersou, e o clima na Faculdade é de luto desde que você fugiu. André
querido, eles não serão eternos nem tão fortes como nosso amor. Eu te espero,
nem que seja até o último dia de minha vida. Um beijo da tua Terê, triste mas
confiante. Abandono finalmente aquela janela a espiar com seu único olho vazado
uma rua que se agita quinze andares para baixo. Não, Teresa, não quero ser
herói, porque tenho muito medo, um medo comum, que me contrai o estômago e me
congela o gesto, e porque gosto muito de nossa turma, e porque sinto muita
saudade das aulas, e porque da vida, o que mais quero, é casar contigo e ter
muitos filhos, lindos e amoráveis filhos. Bagos de mamona estralam debaixo do
sol e jogam os caroços fecundos no chão. Meu sono é fingimento, duas semanas,
dia e noite o ouvido ligado na campainha, se alguém toca não sei se me despejo
pela janela ou me entrego, diferença quase nenhuma, a não ser que o toque seja
barra ponto barra, segredo entre mim e o Guma, assim, ó, ninguém além de nós
dois. Distendo braços e pernas, volteio a cabeça pra relaxar o pescoço, assim,
ó, e no oco do apartamento quase vazio, como um ribombo, pensei que tinham
ouvido até no palácio onde tanto me querem. Me jogo pra fora da cama, suado.
Este agora meu palacete: as paredes de tábuas sem mata-juntas, um piso
irregular, de terra batida, um vão sem janela, idéia de coisa inacabada, a
cobertura de telha oca apoiada nuns caibros roliços, marcas ainda do machado.
Quarto e cozinha sem forro. A cama de lona e pregos na parede onde pendurar a
roupa. Sinais da vassoura: os riscos no chão. A limpeza um acordo entre o homem
e suas possibilidades. Então, pra fechar a segunda semana, ouço nosso código e
meu corpo, compacto, congela: pode ter caído e revelado o segredo. Na frente da
última porta do corredor, alguém insiste: barra ponto barra. Pisando com pés
que nada sentem, as pernas querendo desobedecer, vou espiar pelo olho mágico. A
taramela é pouco mais que simbólica: aqui, Tito, aqui você está seguro. O
cansaço entrou na frente dos dois, quando abri finalmente a porta, marcas de
muitos corredores escuros nos olhos. Os sacos de papel chegaram manchados de
água e gordura e foram colocados em cima da mesa nua. O Guma, delicado mas sem
alegria, que pega, quem sabe a última refeição neste apartamento. Eram pastéis
quase frios, mas que me comoveram, porque talvez a última, e eu senti vontade
de saltar ao pescoço de meus companheiros, beijá-los, apesar de que continuei
mastigando, faminto, sem nada demonstrar. Olhavam espantados, quiçá curiosos, o
espetáculo da fome, mudos, porém, respeitosos. Bato o dedo na taramela, que
gira, louca: uma festa. Abro a porta. Para quem escapou de um esquife, um continente,
esta chácara. Me atolo em ar e sol, me espraio na terra, escapo de meu corpo entorpecido,
me espalho de mim no espaço ilimitado. Vejo. As últimas laranjas, no alto da laranjeira,
oferta de cor e sumo, pouco acima do alcance do braço. Para baixo, à direita,
até a cerca dos fundos enterrada em caraguatás e outros espinheiros, eucaliptos
de corpo esguio e casca verde-desmaiado. Mais de vinte litros de água por dia,
André, suas folhas, muito útil na drenagem de terreno alagadiço, meu pai com
sua botânica prática, as férias no interior. E o cheiro: respira este cheiro.
Quem sofre de tísica. Estendo o olhar aos quatro cantos e calculo uns cinco mil
metros quadrados. Me sinto um guerrilheiro nas montanhas. Hoje não, tiro o dia
pra preguiça, o reconhecimento de meu novo ambiente. Não, nem água: muito mais
sede do que isto já passei. Um gole de refrigerante limpando a boca, mas
depende de quê? Minha alegria novamente encolhida e o desânimo devorando o
entusiasmo. Duas semanas, Guma, fechado aqui. Enfio as mãos na água do tambor e
molho a cara, esfrego a nuca, encho a boca, faço um bochecho e jogo a água
longe. Hoje não, por conta do índio que mora em mim. Nem escova de dentes. Não
foi grande coisa, menos de dez linhas, mas uma voz que me chegava do outro lado,
de lá, de onde as pessoas precisam fingir a todo instante que a vida corre
normal, os pequenos atos sem heroísmo a não ser o de serem praticados enquanto
a vida ao redor desmorona. Suas letras cobriram a cidade, mas depois de
engolido na minha memória. E eu, bom, meu rumo decidido em algum quarto escuro.
A primeira bola de bilhar, a que recebe a tacada, perde força, mas não o
movimento que transmite às demais, nenhuma delas, entretanto, com movimento
próprio: há um taco. De quê? Insisto, a ansiedade como gelo na minha boca. E o
Guma então me pergunta se: você sabe alguma coisa de horticultura? Se bem que
eles continuassem muito sérios, o Guma e seu companheiro, a pergunta me pareceu
fora de propósito, eles dois e o semblante abatido deles, o rosto manchado de
cansaço. De horticultura, e o som cantava sem sentido, qualquer coisa como um
grito na rua. Uma buzina chamando? Então
suspeitei da verdade e bom, quando criança, minha mãe, na outra casa, perto de
meu avô, porque nos fundos do quintal, depois do coradouro, algumas plantas, de
olhos fechados eu vejo, sem qualquer conhecimento especial, mas já vi nascer,
agachado e cheio de emoção, as primeiras folhas rasgando o solo, e tenho
assistido ao crescimento, em muitos lugares, além de um pouco de botânica no
colégio, o primeiro da classe e um professor asmático, mas apaixonado por tudo
o que vive, acho que não deve haver grande mistério, eu adivinhando meu
destino, sol e água, um pouco por conta da natureza. O olhar que eles trocaram:
o que é que você acha?, fez secar minha esperança. Desconversei: guardar forças
e juntar argumentos. Não, com seus pais, não, qualquer contato muito perigoso,
vigiados dia e noite, aqueles homens lendo jornal escorados no poste. Retornei
e insisti: que podiam confiar em mim, as férias na fazenda de um tio-avô, os
pés no barro, a terra no sangue, uma ligação atávica, todos os meus
ancestrais, eu juro, gerações de
pés-no-chão de onde tiravam o sustento. Daqui três dias, o velho verdureiro,
que ainda não conheço, mas tenho a senha: como vai o velho?, minha saudação, e
a resposta: muito bem. Então devo responder: é o que se quer. E ele completa: saúde,
dinheiro e mulher. Então será o meu verdureiro, carrocinha de dois pneus e
toldo de lona, todas as quintas-feiras. Me disseram que bem, então tudo bem, às
onze horas da noite, no ponto de ônibus. Vontade de arrancar a roupa e
mergulhar inteiro e desprotegido no sol e no vento, esfregar o corpo neste
barro bendito. Eis que chega o Barão, cuida bem dele, companheiro, menção
especial no rol da herdade. Me olha de
longe, desconfiado, o rabo entre as pernas, e o focinho erguido me esquadrinha
antes de me aceitar. Então eu bato com a palma da mão na coxa, promessa de
carinhos, e chamo: aqui, Barão. Ele abana a cauda abaixada, quebra o corpo e
pende a cabeça, humilde, atendendo a meu chamado amistoso, e vem requebrando
pra me farejar as pernas, descobrir de onde venho, um exame que não dura muito
e em que sou aprovado, sinal que descubro em seu gesto de me lamber a mão. Só
nós dois, amigo, neste continente perdido. Urge que aprendamos a língua um do
outro, entende, camarada? Acho que entende, porque me pula no peito e abana a
cauda, risonho, me reconhecendo como coisa sua, um companheiro. Então sai em disparada
entre os canteiros de repolho, porque lá do outro lado da cerca, num campo encharcado,
um bando de anuns brancos chegou reclamando, seu grito irritado. Mas que nem antes
nem depois, o Guma num corcelzinho azul bem velho, às onze horas em ponto, pela
torre da igreja, nem antes nem depois, sim, já entendi, mais instruções na
viagem, e saíram deixando os pastéis e os refrigerantes, na porta a reiteração:
às onze em ponto, quando o sino, nem antes nem depois, pela torre da igreja.
Volta com a língua pendurada, vermelha e molhada, feliz, os anuns enxotados
para os confins deste campo que eu da cerca percorro com os olhos, apalpo, um
campo alagado, com valetas rasas ligadas como costelas a uma valeta mais funda.
Uma povoação de maricás ralos e espinhentos, que não podem servir de
esconderijo, a não ser à noite. Preciso voltar com mais tempo e escolher as
passagens de terra firme, os caminhos possíveis para o caso de uma necessidade.
O ar fino e limpo, o espaço aberto desencadeiam minha fome, e, acompanhado pelo
novo amigo, volto ao meu palacete. No caminho, arranco uma cenoura ainda nova:
muita vitamina, verdura ou legume?, minha mãe em dúvida com os nomes, se
atrapalhando. Eu acho que é legume. Barão segue à minha frente, adivinhando
minhas intenções, quem sabe o cheiro dos pastéis na mochila me denunciando. Ela
pronta em dois minutos, a mochila, e três horas de espera aninhadas no alto da
torre, que eu não perdia de vista, às vezes o medo de que me fugisse ou de que
o relógio parasse, que acontecesse alguma coisa que melasse minha retirada,
porque era muito bom pensar que depois de duas semanas confinado num
apartamento, ia finalmente respirar os ventos de uma horta e ver o sol sem o
enquadramento de uma janela do décimo quinto andar. É um medo que sempre
me persegue quando alguma coisa muito
importante está por acontecer, espécie de superstição que combato com raiva,
pois sei muito bem que a fatalidade só existe na cabeça das pessoas, e que o
descuido, este sim, pode ser fatal. Meu tempo era muito pessoal, metido apenas
dentro de mim, e divergia dos ponteiros. Depois de cinco horas de espera, o
relógio da torre da igreja teimava em afirmar que só cinco minutos se tinham
passado. Teimosia de velho empedernido, que não acredita em nada a não ser no
que repete de quinze em quinze minutos e desde os tempos em que ainda tinha
memória. Cruzes, quanta voragem! Quase me pega os dedos quando lhe ofereço um
pedaço de pastel. Calma, Barão, que este é o último. Você não sabe o que
significa saborear? Onde a disciplina de teus impulsos e o requinte de tua educação?
Engole tudo de uma vez e fica me olhando, esperando mais. Às onze horas, mal cheguei
ao ponto, um corcelzinho azul bem velho estacionou na minha frente e nem
conferi se era o Guma antes de abrir a porta e entrar, então ele me perguntou
se tudo bem com você, porque eu decerto parecia mudo, o coração fugindo,
tontura de ébrio, as ruas e as fachadas completamente outras nestas duas
semanas, tão diferentes como se estivesse rodando pelas ruas de Londres, ou
Calcutá, onde nunca estive que não fosse pelo tubo da televisão, principalmente
porque era um bairro em que nunca andei à noite. Foi difícil dormir, nesta
primeira noite, pensando que os mosquitos fossem me carregar de volta, ao som
de um concerto para violino e orquestra de cordas desafinadas. Pois este bosta
é bem capaz de não saber nada mesmo, o fardado cochichando ao ouvido do
paisano. Me pegaram pelos braços, suspenderam meu corpo amolecido pelo medo e
pelas pancadas, e me levaram de volta pra cela. O dia começava a clarear. O
cansaço foi mais forte que os pernilongos, e a sensação de que agora disporia
da rosa-dos-ventos para escapar: me entreguei. O Guma repetiu a pergunta se
tudo bem com você, e me alcançou um chapéu velho, agora no prego do quarto, que
deveria ter sido cinza, em sua juventude, mas que o tempo e o uso tinham
deixado sem cor definida, um escuro entre sujo e triste, e como eu relutasse em
botar aquilo na cabeça, ele me passou um jornal dobrado, de ontem, e disse:
toma, olha. Nas férias, quando criança, esta mesma sensação ao chupar uma laranja
arrancada do pé. Quando criança, depois de adulto nunca mais voltei, meu
tio-avô morto e a fazenda vendida. É uma estradinha de terra, estreita, mal uma
carroça, ainda vivas as marcas do carro em manobra ontem à noite: boa sorte,
companheiro. Segue em frente, pela várzea, uns dois quilômetros adiante umas
casas agrupadas, todas baixas, pode ficar tranqüilo que é gente simples,
chacareiros, se aparecem, coisa muito difícil, que ninguém se ajuda muito por
não ter com quê, seu primo doente, tratamento no hospital. E uma fotografia
antiga, não sei onde foram desencavar, tempo do serviço militar, semelhança
nenhuma, me mostrava na primeira página, logo acima da promessa de que nas
próximas horas botariam as mãos em mim, promessa do doutor, e apesar de a
fotografia ser de um cara imberbe, ar aparvalhado, uns oito anos mais novo do
que eu e ninguém mais podia se lembrar da cara que tive, apesar disso, me
arrepiei ao ver um nome que raramente uso nos últimos dias, meu nome em
negrito, corpo dez, e que nas próximas horas, garantia o doutor, homem de
respeito, diplomado, confiável, que decerto não declarava aquilo à toa, sem que
estivesse realmente muito próximo de sua vítima, eu, com aquela cara de que nem
me lembrava mais. Domingo, durante o almoço com a Teresa e seus pais: que o
cerco apertando, o Vilmar esta noite e ele sem muita convicção, meio
pára-quedista, que não sabe grande coisa, mas o suficiente pra deixar
vulneráveis um aparelho e mais dois ou três companheiros, que ele, mais por
vaidade com as meninas, necessidade aurática, o Vilmar, por isso, um contato lá
de dentro, a hora da retirada, é só o que espero. Os olhos da mãe de Teresa se enchem
de lágrimas, com medo, os olhos do pai de Teresa se enchem de lágrimas, de
ódio, e nós dois confiantes: que se tudo correr bem, nossos planos, até o fim
do ano o casamento. Então, na despedida, minha sogra me beijou a testa: vai,
meu filho, vai, cumpre teu destino, não sei se mais difícil pra vocês, nesta
vida, ou pra nós que vamos contar os minutos da espera. Talvez bosquejo apenas,
leiaute de que o tempo não permite arte-final, mas com traços que denunciavam
quem viria a ser, por isso perguntei ao Guma se o carro não dava mais que
aquilo, e ele, sem tirar os olhos da rua, sorriu antes de me dizer que o carro
era legal, tudo em ordem, de um companheiro de quem ninguém suspeitava, e que a
velocidade era boa, de gente que não precisa fugir. Um cedro, o paisano,
imenso, seu braço mais grosso do que meu pescoço, se abaixou um pouco, domado,
para ouvir o da farda dizer que este bosta, que era eu, que este bosta é bem capaz de não saber nada
mesmo. Apesar de ressentido com a pouca importância que me dava, me mantive imóvel,
quase morto. Meu tio-avô saiu no escuro com a espingarda na mão direita e uma
lanterna na esquerda. Curioso e com medo, saí atrás: o cachorro tinha dado
sinal, na porta do galinheiro. É um bicho muito esperto, André, o gambá.
Amolece o corpo deste jeito e deixa morder um pouco, as glândulas soltando esta
catinga. E com o foco da lanterna me
mostrava o gambá estendido no chão, bem como morto, mesmo quando empurrado pelo
cano da espingarda. Sem resistência, o cachorro cansa de morder este molambo
fedido e se contenta em latir de longe,
em volta, até que enjoa e vai dormir. De manhã, vai-se ver, mas não era aqui?,
bem aqui!, e sinal nenhum da refrega, a não ser um pouco de capim amassado.
Descarregou na cabeça um tiro calibre dezesseis que reboou pela várzea e
respondeu nas encostas dos morros, muitos quilômetros adiante. Um tiro que
guardo até hoje nos ouvidos. Este bosta é bem capaz. E o dia estava clareando.
Até que entramos por uma avenida muito longa e mal iluminada, o que de certa
maneira me aliviou um pouco, porque as sombras desmanchavam minha fisionomia. E
eram mais de onze e meia quando passamos pelo último poste iluminado,
solitário, no fim da cidade, e pegamos uma estrada de terra, lugar ermo, quase
intransitável. Olhei pelo vidro traseiro e fiquei olhando aquela luz inútil iluminando
terrenos baldios. Um Sol vermelho, enorme, suspenso nos fios de luz,
engarranchado, e envolto em fumaça, quando eles chegaram despejando uma chuva
de bombas de gás lacrimogêneo, de cacetetes, jatos dágua, e antes de entrar
pela porta aberta da catedral, olhei aquele Sol mudo, medroso, e pensei que já
tinha conhecido o inferno. Os que viram primeiro ainda conseguiram fugir
correndo pelas ruas afluentes, a praça em poucos instantes quase deserta. Foi
minha última experiência religiosa, em um país que até em sua Constituição é
religioso. Me arrancaram dos braços de Deus debaixo de pontapés e pescoções pra
dentro de um camburão superlotado. As
poucas casas que os faróis do carro iluminavam na beira da estrada dormiam em profundo
sossego, conformadas com a própria pobreza, como se nada existisse além do
sono, como se não estivéssemos em um país do terceiro mundo, como se milhares
de crianças não estivessem morrendo de fome naquele mesmo instante, como se um
governo ilegítimo não estivesse naquela mesma hora, em todas as horas,
vigilante, protegendo interesses escusos, pisoteando com suas botas sujas de
lama a liberdade de um povo em nome dela mesma, a liberdade, esta mulher da
vida, e eu não entendia que estivessem assim tranqüilas aquelas casas, porque
eu não sentia sono nenhum, será que elas também, fingindo pra sobreviver?, e já
tínhamos rodado bem uns vinte minutos pela mesma estrada quando saímos dela e
entramos por outra ainda mais estreita, quase uma estrada de roça, e o carro
sacudia muito, porque havia umas valetas cavadas por rodas de carroça em dia de
chuva, dava bem pra ver, e os pneus nunca se mantinham muito tempo em cima ou
em baixo, de vez em quando o carro arrastando a barriga na terra ou no mato, um
barulho como se fosse desmanchar. Muitos companheiros a salvo só depois de
atravessar a fronteira, as notícias chegando esparsas, imprecisas, todas elas
meses depois, que o Vilmar, espremido, tinha dado todo o serviço, que não era
muito, mas que me envolvia, e ele, tão requisitado pelas garotas por causa de
sua aura, notícia de que expelido pela cloaca de um avião para as profundezas
do oceano, agora moda pra não deixar vestígio, tantas organizações internacionais
ligadas aos direitos humanos, a História um monstro que se alimenta de sangue jovem
e anônimo pra continuar sua rota. Vai, filho, cumpre teu destino. Então quanto
mais longe melhor, e eu acho que já uns vinte quilômetros ou mais, desde o
último bico de luz pendurado num poste, de que te serviu a aura, Vilmar, de que
te serviu? Não sei dizer direito, porque a escuridão engolia as distâncias e a
velocidade do carro era muito irregular, só sei dizer que mesmo vendo aqueles
retalhos de campos e matos dos dois lados da estrada, eu continuava falando
muito baixo, só pensando que quanto mais longe melhor, que se no outro mundo,
muito que bem, melhor ainda, lá ninguém acha que sou um perigo para a sociedade
e tampouco sou lá conhecido. Se chego a atravessar esta cerca aqui na frente,
adeus, ninguém mais bota as mãos em mim nas próximas horas, um mato fechado,
bom, feito de propósito para esconderijo. Ninguém te avisou, Vilmar, ninguém
teve tempo de te avisar que cedido o primeiro, não há mais parar, insaciável a
sede deles. Percorro cerca de duzentos metros da estrada, nos dois sentidos, e
sinto um prazer muito grande em poder caminhar em segurança. Insaciável,
Vilmar. Acho que aqui poderia passar muitos anos, este espaço todo à minha
disposição.
*
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