
O romance JANELA ABERTA e a coletânea de contos NA FORÇA DE MULHER foram editados em 1984 e 1986, respectivamente, pela Seiva.
Saiba mais sobre os dois livros nos seguintes endereços:
Página de Janela aberta, no BLOG DO MENALTON.
Página de Na força de mulher, no BLOG DOO MENALTON.
Publicamos, a seguir, trechos das duas obras para degustação.
Janela aberta

Trecho do capitulo 1
Na sala era bem assim: por trás de imagens cruéis, a voz do
narrador informando com orgulho disfarçado, sobre o tanto de palestinos mortos,
os de bem longe, do outro lado que ninguém sabe ao certo ode fica. Queijo na
mão, Raimundo ruminando ideias sem prestar atenção.
Se arrependimento matasse, bem, se matasse ninguém se
arrependia. E o cretino ainda tem o descaramento de ficar na frente da
televisão, pensou Laura, apagando a luz do quarto. Assoou rancorosamente o
nariz. De dar raiva, tamanha tranquilidade. A dele. Só mesmo um monstro assim
como ele. Apalpou a perna machucada. Precisava pensar pelos limites do exagero,
como lhe pedia sua raiva. Pensar diferente de que jeito, se ainda ouvia o baque
disfarçado das pancadas? Pensava. Podia adivinhar que a mansidão do pai fosse
explodir, como explodiu? Não. Nem nunca poderia imaginar. Pois e foi. Não
esperava que ele viesse agora roendo as unhas pedir desculpas. Conhecia feitio
do pai. Não vinha. Ele, como era, fazia um uso minguado das palavras. Desgostava.
Que não viesse, mas pelo menos desgrudasse da televisão. Até provável que tivesse
jantado. Não era de duvidar. Enquanto ela se danava abafando choro no cobertor.
As atrocidades israelenses não comoviam Raimundo. Maior
desgraça era a sua, sentindo areia correr no lugar de sangue. Tinha batido pra
machucar, com ódio, querendo ouvir choro, precisando subjugar.
Ah! mas tal gosto ele não tivera. Batesse quanto quisesse.
Lágrima ele não veria. E nem era necessário cerrar os dentes para engolir
soluço. Enquanto estivesse apanhando, sob aquele
desabamento de pancadas, como
sentir a dor, se a raiva crescia mais que tudo, fazendo seu corpo uma pluma de
tão leve.
Mal entrou no quarto e passou a chave na porta, Laura
olhou-se no espelho. Pensou que fosse desmaiar. Até quis. Toda marcada. Um hematoma
logo acima do olho direito, o lábio sangrando, os braços com manchas roxas.
Aspecto horrível. Um furacão, o pai furioso. Mas como fora dizer uma coisa
daquelas? A frase tinha escapado, repentina e inesperada como na linguagem solta
da fábrica. Só mesmo tendo sangue de barata, não reagir depois de ouvir da
própria filha que fosse dar o rabo ao
Altino se era tão grande o desejo de
satisfazê-lo.
Penalizada. As dores pelo corpo inteiro quase não contavam.
Pior era a mancha escura acima do olho. Humilhante. E arrependida. Apesar de
tudo, não era direito ofender como ofendera. Teria parado se pudesse. Mas não
conseguiu. Sem forças mais que para repetir a frase obscena, revidava com
ofensa cada uma das pancadas.
De bruços sobre a cama, mordendo o cobertor, Laura cansou de
tanto chorar. Mas não se rendera, não senhor. Não era de se dobrar. Devolveria
tudo e com juro alto. Bater, está certo, que é pra manter o respeito – apesar
dos seus dezenove anos – mas bater com aquela brutalidade, como se quisesse
matar, mudava completamente a situação. Exigia resposta apropriada.
Laura continuava no escuro. Assoou novamente o nariz e
sentou-se abraçada aos joelhos.
Abrindo caminho por entre os escombros deixados pelo exército
sionista, Laura avançou pela trilha brumosa da memória, procurando encontrar o
início e as razões do que acontecera. A voz do locutor não chegava a ser
emocionada. Uma voz profissional. Neutra. A moça mergulhava angustiada, sem
saber se adiantaria conhecer a cronologia dos fatos. A única certeza era a da
dor que sentia, uma dor latejante que pedia vingança. Muitos aviões
destroçados. A maior batalha de blindados desde a Segunda Guerra, foi o que
afirmaram, com uma certa ponta de vaidade. Coisas distantes com as quais Laura
não se identificava. Ao seu redor, via apenas criaturas cujas preocupações não poderiam
ir além do seu quintal, da disputa em torno do tanque de lavar roupa, do varal
insuficiente. Guerras de pouco prejuízo e fácil acordo. Cinco famílias usando
quase o mesmo espaço. A separá-las, apenas telhados e algumas paredes
comprimindo corredores estreitos. Altino era o mais ausente de todos. Mesmo
assim, o rei daquele terreiro. O cheiro de gasolina, as manchas de óleo no cimento,
o barulho do motor funcionando foram os primeiros sinais de que a casinha dos
fundos, a última, seguindo pelo corredor, estava ocupada. Sinais que alteraram
a paisagem e o comportamento de quase todos eles.
Marmita na mão, Laura saia cedo para o serviço quando
encontrou na rua a vizinha, que voltava àquela hora da padaria. Acontecimento
raro, sabido como era o fato de que a velha costumava acordar bem tarde.
– Sabia da novidade?
– Novidade, dona Lúcia?!
– Esta noite chegou vizinho novo ...
– Ahn!
Não era novidade que pudesse matar de surpresa. A casinha de
duas peças, a dos fundos, mais cedo ou mais tarde seria ocupada. Seu Lourival
vira e mexe queixava-se de que só recebia para os impostos – cada vez mais
altos. Lucro nenhum com aquilo, só trabalho. Se conseguisse um bom aluguel pela
casinha dos fundos, aí sim, sobraria para o cigarro. Mentira, todos sabiam. Seu
Lourival vivia dos aluguéis, sem necessidade de outro rendimento. Mesmo assim,
pedia um absurdo pelos dois cômodos.
– É, nem notei movimento diferente.
– Um rapaz!
– Ah, é?
– Solteiro – acrescentou dona Lúcia, piscando
maliciosamente.
Laura não deu maior importância ao detalhe e, como estivesse
prensada pelo relógio, subiu apressada pela rua em que três bicos de luz
tentavam romper a escuridão. Tinha pela frente uma viagem de quase uma hora –
duas conduções – de pé, espremida no corredor do ônibus superlotado...
Na força de mulher
Esperando anoitecer
O aconchego da sala se desprende do olhar grave e manso de
velhos retratos de um casal de velhos, passa pelas janelas fechadas, afaga o
sono macio do gato e vai enrodilhar-se num canto. Lídia suspira e volta a
falar:
– Meu finado pai era homem rico. Hum! Muito rico.
Arminda escuta por escutar, por estar presente, e as
palavras adejam em sua distração como fantasmas familiares.
– Tinha uma fazenda em Ribeirão Preto que era uma beleza. E
outra em Barretos, sabe. Mundão de terra coberta de café. Fruta, quanto a gente
queria e ainda jogava pros porcos. Mais de duzentos. Pros porcos! Dizendo assim
hoje capaz de ninguém acreditar. Mas era. Do bom e do melhor. Quem diria que
acabava morrendo na miséria, precisando ajutório dos outros. Pois morreu.
Também correndo atrás de mulher é que ele passou a vida. Jogou fora uma
fortuna. Acho que já contei pra você: ele era calabrês. Sangue muito quente.
Raça braba! – puxei por ele. Você não vê como de vez em quando eu viro um
demonho? É o sangue. Calabrês é tudo assim. Sangue quente.
Esquecida sobre o fogão, a chaleira jorra uma coluna
transparente de vapor. Arminda se aflige, porque antegoza o café com leite e os
bolinhos fritos.
– Homem bonito, ele, bem vistoso. Não pensa que era daqueles
fazendeiros de cabeça pendurada, remendo na bunda e chapéu de palha. Ele?!
Quisperança! Se vestia como um capitalista. Era um lorde. Eu me lembro de muita
gente confundindo ele, pensando que ele fosse doutor. Como delegado, coronel. Pra
mim até me representa que era tudo isso e muito mais. Pois morreu uma penúria
de fazer dó. Até uma casa que ele tinha comprado na Avenida do Estado, a gente
perdeu. Tudo! Já imaginou a fortuna que não vale agora? Não teve jeito! Nem
sossego. Aquilo virava num demonho quando via mulher bonita. Você não vê como
eu, que sou velha, ainda tenho minhas vaidades? Pois é o sangue. Muito forte!
Fruta... hum! Você nunca viu uma coisa daquelas. Que fartura! Não sei, não. Só
vendo mesmo. Depois vieram as demandas, sabe, questão de terra mal medida,
cerca errada, olho gordo de gente poderosa, essas coisas. Você pensa que ele se
abalou com aquilo? Quem disse! Juntou oo resto que tinha sobrado no interior, veio
pra São Paulo e ainda levou um vidão aqui. Aquilo é que era velho! Nunca mais.
Se não fosse o desastre que quebrou a perna e a bacia dele, não sei, não.
Demorar muito seca a chaleira. Arminda se remexe na
poltrona.
– E eu, o que foi que eu ganhei com tanto sacrifício a vida
toda? O cachorro doo meu marido até pra morrer me deu despesa. Quem pagou o
enterro dele fui eu. Se eu deixasse, decerto tinham jogado ele em um buraco
qualquer que ninguém mais sabia onde era. Pra depois me acusarem? Eu não!
Mandei fazer um túmulo todo de mármore, com o nome dele gravado, uma fotografia
dele todo bonitão. Você chegou a ver ele, não é? Tinha presença, ah, isso
tinha. E andava assim de mulher correndo atrás dele. O sem-vergonha, qualquer
coisinha que ganhava, toca a jogar fora com a cadelada. Pra dentro de casa,
minha filha, neres. Nem um vintém. Com estes braços aqui é que eu sustentei a
casa. Aquele homem era um malandro refinado. Raça muito ruim de gente. Preso
não sei quantas vezes por causa de jogo. Toda a semana era aquilo: “Semana que
vem eu tou mas é rico”. Quanto eu sofri, hum! Só eu sei. Você nem imagina, hem!
Me vendo assim com a minha idade, me arrumando como eu me arrumo, ninguém diz.
Cavei esta aposentadoria com trinta anos de dureza.
A coluna de vapor se finava.
– Pois você ainda tem esta aposentadoria. E eu que não tenho
nada?!
O aparte desperta Lídia, que se zanga.
– Como coisa que adianta muito o que eu ganho. Não da nem
pra pagar o aluguel. E se você visse o estado aqui quando eu entrei...
Arminda sente que o assunto começa a fugir.
– Pois é, mas aqui dentro você é a dona. E eu, morando de
favor na casa da minha filha, hem! De meu, eu não tenho nada e a Sula você sabe
muito bem que tipo de vida ela leva. Isso me dá um desgosto tamanho desgosto
que só não saio de lá porque é o arrimo que eu tenho. Uma pensão como a tua,
pra mim...
Lídia se levanta, fazendo menção de cuidar do café, mas
volta a sentar-se.
– Você não tem, Arminda, porque foi sempre uma boba.
Bem despertas, agora, olham-se rancorosas.
– Quantas vezes eu falei que aquilo não era homem para ti.
Um cachaceiro que nem emprego tinha. Você fosse esperta, continuava
trabalhando, como eu.
Rangem as molas da poltrona. Arminda se impacienta.
– Emprego fixo ele não tinha, mas vagabundo e cachaceiro,
ah, isso eu não admito.
A conversa cresce em aspereza.
– Era bom ficar em casa sem nada o que fazer, não era?
– Sei lá, a gente nunca sabe o que vai acontecer.
Os lábios murchos de Lídia tremem de ódio.
– Uma acomodada, isso sim. Você sempre foi acomodada demais.
E agora, tem uma filha que te sustenta. Bailarina! Se não fosse triste eu até
achava graça. Acomodada, sim. Enquanto ela ainda arranja macho, vocês vão
vivendo. Quero ver só depois. Na profissão dela ninguém paga INPS.
Tempos de muita luta. Quando Menalton surprendeu a todos nós, no jornal da São Judas com Salvador dos Passos e as suas duas obras literárias que marcaram as nossas vidas.
ResponderExcluirAli iniciava a trajetória de um grande escritor brasileiro que o tempo só confirmou com a sequência de sua rica literatura.
Parabéns sempre, grande amigo de grandes jornadas.
Naidson P. Pires, amigo que a gente não esquece. Hoje diretor de escola, quando jovem, engajado nas questões sociais, extremamente lúcido. Um prazer recebê-lo aqui. Continuamos juntos.
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