sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Gesto irrisório               


Pela tépida superfície da perna imóvel, a formiga sobe e avança num rumo de aventuras inúteis em sua escalada inexploratória, caminhada a esmo a tangenciar o absurdo, porquanto nada busca, nada intenta, nada, a não ser a própria realização do abstruso ato de caminhar a esmo.
A tarde, em maio, vaga e morna, voga indecisa entre a tonalidade esmaecida de um outono insolúvel e a perspectiva do inverno que tarda. Através de ampla janela para a rua, a sala exala o aroma agriadocicado e difuso das flores murchas pendentes.
Mãos soltas no regaço, pálpebras pesadas, Eva acompanha a disputa. Por desenfadamento: nenhuma das filhas consegue escapar à toleima geral. E os genros, eles todos, tão fúteis! Depois de ouvir a extensa explanação que Rui acaba de fazer às cunhadas sobre seu próprio virtuosismo ao volante, Eva prefere manter-se em delicado absenteísmo, refugiada na contemplação dos netos. Limpa os óculos, disfarça o bocejo. Náusea... talvez o perfume das magnólias.

Quando chegam, as filhas, ocasiões raras, trazendo sua gente toda, todos na sala. Bem pouco agressivo, o menino da Isaura. Apesar de tamanho, como é, tomba no tapete, derrubado pelo Juarez. Levanta-se ofegante e ameaça transformar em briga a brincadeira de ainda há pouco. Ah, é? É assim?
E Rita, sua Ritinha, ar absorto e melancólico, sempre pálida, assiste ao modo como os parentes a deslocam insensíveis para fora de qualquer convergência. Parece triste, mas bem sabe Eva que à filha basta a física presença do recém-marido, pouco ou nada importando que outros se apossem da ocasião para um desfile de futilidades mundanas.
Em seu canto do sofá, Eva paira e abrange, parada, e repara no gesto quase imperceptível de Isaura mordendo o lábio inferior pela aflição de saber que Rui tão-somente finge desinteresse pela disputa entre os meninos, e que se sente humilhado.
Padre Anselmo circula grave, portador de graves e engatilhadas prescrições. A vida nele é um desencadear permanente. Junta-se ao grupo de Rui e assume a direção da conversa. Além de belos sermões, o melhor repertório de anedotas sobre lua-de-mel.

De suas entranhas imprecisas, a tarde devolvia o surdo rumor de um trânsito irascível e de moroso ritmo que, lenta e obstinadamente, ia triturando as últimas oportunidades de paz. Rumor exasperante que, através de janela aberta sobre a rua, fluía em fluxo contínuo como pedal inarmônico para dorido pranto. Em fins de maio. E as flores, percebendo uma pétala desgarrada perdida no tapete, abandonaram-se à desesperança.
Subitamente obstaculizada, a formiga parou. Mas como o retorno sempre fosse uma impossibilidade, retomou seu rumo irreversível e escalou as dobras ínfimas da barra de um negro vestido de seda. De dor.
Em ridícula pose de garnisé, Juarez aguardava o primeiro golpe: alçara os punhos cerrados, protegendo a cabeça.
O abismado olhar de Eva deixara de captar as significações ilógicas, onde o fim era princípio e o tempo um acessório dispensável: transcorrer de angústias.
Tornava-se vã toda palavra, pois o vácuo do recém-viúvo à beira do desvario, nem as palavras de encorajamento de padre Anselmo conseguiam preencher.
Ainda pálida, sua Ritinha. Ainda bela. O cabelo arranjado como o usara: escorrendo livre para os ombros. O corpo em postura rígida, é bem verdade, quem sabe incômoda, mas necessária ao ritual. Eva enxugou as lágrimas e tentou reter a fisionomia da filha, de louça fria, mas era como se estivesse tentando fixar o tempo: o agora, mera vertigem – ou tendo já sido ou estando para ser. Somente do movimento a constatação possível. A sala repleta de gente que sofria sem nenhum ensaio ou fingimento, sofrimento improvisado.
Rui deixou por um momento as cunhadas, às quais consolava, e, amaciando os passos, carregou o filho para junto da janela e distante do sobrinho, o Juarez.

Em maio, a tarde continuará indecisa, mas não tardará o inverno. O verde das árvores atingirá a plenitude, e seus frutos serão maduros. Os primeiros tons esmaecidos do outono serão o sinal tão almejado de que entre si as estações são sucessíveis.
Sentada numa ponta do sofá, Eva poderá perceber num vislumbre que os netos sempre voltam às mesmas disputas, que observará sem compreender. Juarez derrubará o primo, não por ser o mais forte, mas por uma espécie de malévola determinação. Ela pedirá, então, que alguém abra a janela, pois o perfume das magnólias será excessivo e nauseante. Estará um pouco aborrecida, sonolenta, porque terá de suportar passivamente a frivolidade dos genros e das filhas.
Será maio.
E quando padre Anselmo chegar, sorriso enorme, os primos virão correndo disputar a bênção, e Isaura sairá do quarto com o precioso embrulho cor-de-rosa nos braços. Orgulhoso, Rui anunciará que, além de seu virtuosismo ao volante, o nome de Rita, da cunhada, foi escolha sua. Por isso receberá muitos cumprimentos.
Um tanto pálida, sua Ritinha, quem sabe o leite. Olhará para as mãos irrequietas e descobrirá o mundo no mesmo instante em que padre Anselmo estiver espargindo-lhe os sacros pingos e proferindo em nome de quem eu te batizo, Rita. De pé, no meio da sala, no meio da tarde, Isaura e Rui aceitarão a responsabilidade de ampará-la sempre e sentirão ternura de pais e se comoverão.
Hesitante, sobre o joelho de Eva, a formiga por fim escolherá um caminho que jamais será percorrido… Gesto irrisório de um dedo distraído derrubá-la-á para o tapete.

*
O conto acima está no livro Na força de mulher, publicado em 1984 sob o pseudônimo de Salvador dos Passos. 

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