Gesto irrisório
Pela tépida superfície da perna imóvel, a formiga sobe e
avança num rumo de aventuras inúteis em sua escalada inexploratória, caminhada
a esmo a tangenciar o absurdo, porquanto nada busca, nada intenta, nada, a não
ser a própria realização do abstruso ato de caminhar a esmo.
A tarde, em maio, vaga e morna, voga indecisa entre a
tonalidade esmaecida de um outono insolúvel e a perspectiva do inverno que
tarda. Através de ampla janela para a rua, a sala exala o aroma agriadocicado e
difuso das flores murchas pendentes.
Mãos soltas no regaço, pálpebras pesadas, Eva acompanha a
disputa. Por desenfadamento: nenhuma das filhas consegue escapar à toleima
geral. E os genros, eles todos, tão fúteis! Depois de ouvir a extensa
explanação que Rui acaba de fazer às cunhadas sobre seu próprio virtuosismo ao
volante, Eva prefere manter-se em delicado absenteísmo, refugiada na
contemplação dos netos. Limpa os óculos, disfarça o bocejo. Náusea... talvez o
perfume das magnólias.
Quando chegam, as filhas, ocasiões raras, trazendo sua gente
toda, todos na sala. Bem pouco agressivo, o menino da Isaura. Apesar de
tamanho, como é, tomba no tapete, derrubado pelo Juarez. Levanta-se ofegante e
ameaça transformar em briga a brincadeira de ainda há pouco. Ah, é? É assim?
E Rita, sua Ritinha, ar absorto e melancólico, sempre
pálida, assiste ao modo como os parentes a deslocam insensíveis para fora de
qualquer convergência. Parece triste, mas bem sabe Eva que à filha basta a
física presença do recém-marido, pouco ou nada importando que outros se apossem
da ocasião para um desfile de futilidades mundanas.
Em seu canto do sofá, Eva paira e abrange, parada, e repara
no gesto quase imperceptível de Isaura mordendo o lábio inferior pela aflição
de saber que Rui tão-somente finge desinteresse pela disputa entre os meninos,
e que se sente humilhado.
Padre Anselmo circula grave, portador de graves e
engatilhadas prescrições. A vida nele é um desencadear permanente. Junta-se ao
grupo de Rui e assume a direção da conversa. Além de belos sermões, o melhor
repertório de anedotas sobre lua-de-mel.
De suas entranhas imprecisas, a tarde devolvia o surdo rumor
de um trânsito irascível e de moroso ritmo que, lenta e obstinadamente, ia triturando
as últimas oportunidades de paz. Rumor exasperante que, através de janela
aberta sobre a rua, fluía em fluxo contínuo como pedal inarmônico para dorido
pranto. Em fins de maio. E as flores, percebendo uma pétala desgarrada perdida
no tapete, abandonaram-se à desesperança.
Subitamente obstaculizada, a formiga parou. Mas como o
retorno sempre fosse uma impossibilidade, retomou seu rumo irreversível e
escalou as dobras ínfimas da barra de um negro vestido de seda. De dor.
Em ridícula pose de garnisé, Juarez aguardava o primeiro
golpe: alçara os punhos cerrados, protegendo a cabeça.
O abismado olhar de Eva deixara de captar as significações
ilógicas, onde o fim era princípio e o tempo um acessório dispensável:
transcorrer de angústias.
Tornava-se vã toda palavra, pois o vácuo do recém-viúvo à
beira do desvario, nem as palavras de encorajamento de padre Anselmo conseguiam
preencher.
Ainda pálida, sua Ritinha. Ainda bela. O cabelo arranjado
como o usara: escorrendo livre para os ombros. O corpo em postura rígida, é bem
verdade, quem sabe incômoda, mas necessária ao ritual. Eva enxugou as lágrimas
e tentou reter a fisionomia da filha, de louça fria, mas era como se estivesse
tentando fixar o tempo: o agora, mera vertigem – ou tendo já sido ou estando
para ser. Somente do movimento a constatação possível. A sala repleta de gente
que sofria sem nenhum ensaio ou fingimento, sofrimento improvisado.
Rui deixou por um momento as cunhadas, às quais consolava,
e, amaciando os passos, carregou o filho para junto da janela e distante do
sobrinho, o Juarez.
Em maio, a tarde continuará indecisa, mas não tardará o
inverno. O verde das árvores atingirá a plenitude, e seus frutos serão maduros.
Os primeiros tons esmaecidos do outono serão o sinal tão almejado de que entre si
as estações são sucessíveis.
Sentada numa ponta do sofá, Eva poderá perceber num
vislumbre que os netos sempre voltam às mesmas disputas, que observará sem
compreender. Juarez derrubará o primo, não por ser o mais forte, mas por uma
espécie de malévola determinação. Ela pedirá, então, que alguém abra a janela,
pois o perfume das magnólias será excessivo e nauseante. Estará um pouco
aborrecida, sonolenta, porque terá de suportar passivamente a frivolidade dos
genros e das filhas.
Será maio.
E quando padre Anselmo chegar, sorriso enorme, os primos
virão correndo disputar a bênção, e Isaura sairá do quarto com o precioso
embrulho cor-de-rosa nos braços. Orgulhoso, Rui anunciará que, além de seu
virtuosismo ao volante, o nome de Rita, da cunhada, foi escolha sua. Por isso
receberá muitos cumprimentos.
Um tanto pálida, sua Ritinha, quem sabe o leite. Olhará para
as mãos irrequietas e descobrirá o mundo no mesmo instante em que padre Anselmo
estiver espargindo-lhe os sacros pingos e proferindo em nome de quem eu te
batizo, Rita. De pé, no meio da sala, no meio da tarde, Isaura e Rui aceitarão
a responsabilidade de ampará-la sempre e sentirão ternura de pais e se
comoverão.
Hesitante, sobre o joelho de Eva, a formiga por fim
escolherá um caminho que jamais será percorrido… Gesto irrisório de um dedo
distraído derrubá-la-á para o tapete.
*
O conto acima está no livro Na força de mulher, publicado em 1984 sob o pseudônimo de Salvador dos Passos.
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