
Ana Paula desenvolveu o estudo no Centro Universitário Barão de Mauá, em Ribeirão Preto, como trabalho de conclusão da Especialização em Cultura e Literatura.
Transcrevemos, a seguir, as considerações finais:
"As obras literárias, valendo-se da linguagem verbal,
incorporam uma de suas propriedades – a comunicação – sendo mister, pois,
buscar o que as obras comunicam a seu leitor, interpretando o que dizem e
verificando como procedem à transmissão das ideias.
Uma das matérias desta
especialização é a Teoria dos Fundamentos Literários, que, modernamente,
pretende entender as marcas das obras do passado e do presente para verificar
em que consiste a qualidade delas, em que elas se diferenciam, porque foram
preservadas ao longo do tempo. É interpretativa, também, porque se deseja
descobrir o que ela quer dizer e o que a particulariza enquanto manifestação
artística.
Portanto, ao analisar os contos dos dois autores, Machado de
Assis e Menalton Braff, pôde-se perceber o trágico de uma maneira mais
romântica e humorística na narrativa machadiana e de uma maneira mais
dissimulada e sensual na narrativa de Braff.
Nota-se, também, que apesar de cada um fazer parte de uma
determinada época, o tema incesto ainda serve de inspiração para os escritores.
Enfim, apesar de ambos os textos serem curtos, a complexidade da linguagem e o
trabalho realizado em seus discursos, mostraram os artifícios de que necessitam
um escritor para escrever bem, seja um conto, uma novela ou um romance."
Uma tarde de Domingo (Tragédia em três episódios)
Menalton Braff
É tarde! Ele
conhece esta paixão demente,
A linha
ultrapassei do pudor exigente.
Expus minha
desonra ao meu dominador
E, em meu peito,
a esperança abriu-se em outra flor.
Joana
E,
se eu o condenei, por vossa causa o fiz.
Cruel!
Suporeis vós que estais justificada?
Teseu
Esta casa ficou escura assim tão grande, sua imensidade, depois que eles
se foram. E vazia. Não mais vazia do que eu, entretanto, que passo meus dias a
contar minutos e passos pelos corredores. Mas vazia o suficiente para que me
sinta angustiada, sabendo que não posso estar em todos os cômodos ao mesmo
tempo. Nunca sei o que acontece onde não estou, como não sei o que aconteceu em
minha casa, as causas de tanta desgraça, enquanto estive fora. À tarde,
principalmente, ao cair da tarde, ouço as vozes dos dois conversando e rindo na
cozinha, se estou na sala; ou no quarto, se estou na cozinha. Tudo acontece
onde não estou. Quando me aproximo, calam-se e mudam de lugar. Como duas
sombras silenciosas, suas asas carregadas de pretas nuvens. Às vezes chamo um
dos dois, à noite, principalmente, quando
costumávamos estar reunidos, e tenho a impressão de ouvir a resposta.
Preciso acender as lâmpadas, iluminar esta casa. Toda. Tenho necessidade
de muita luz, de luz que me ofusque e me esfole as vistas, que me jogue dentro
do espelho, com meus gestos vacilantes, mas, enfim, movimentos de meu corpo. Só
a claridade me põe para fora de mim mesma e evita esta asfixia que me atacou no
domingo passado e não me abandonou mais. O que me falta é ânimo de levantar
desta cadeira, de percorrer os lugares onde os vi nestes últimos três anos.
Amanhã de manhã, ordeno que se abram todas as janelas para expulsar suas
lembranças de meu espaço. Quero uma invasão de sol e que o ar puro fareje os
cantos mais recônditos da casa. Se não fizer isso, vou viver confinada em minha
escuridão.
Na volta do enterro, eu percebi que estava incompleta, então me fechei no quarto até que as últimas vizinhas tivessem ido embora. Não suportava mais tanta invasão. Não suporto mais a companhia das pessoas, todas elas querendo me consolar. Não é de consolo que eu preciso, é de certeza. Nem a televisão eu ligo mais porque é impossível evitar a alegria. E eu não quero me sentir alegre. Já reli aquele maldito bilhete até gastar as vistas e o papel. Inútil. Não vou além da letra nervosa de Pedro tentando aparentar uma frieza que não é dele. Me afasto desta casa por causa de sua filha, diz ele no final, antes de assinar.
Estava anoitecendo, quando entrei em casa, e nenhuma lâmpada estava ainda acesa, mas não cheguei a estranhar a escuridão: eu, toda iluminada por dentro, como vinha. Domingo à tarde, nenhuma rotina nos prendia, nada nos obrigava, cada um dono de seus afazeres. Ninguém na sala, na cozinha ou na biblioteca. Ninguém em lugar algum da casa. Os móveis, encolhidos mudos na penumbra, negavam-me a história que tinham testemunhado: sinal algum. Ao entrar no quarto, finalmente, e encontrar seu guarda-roupa aberto e vazio, foi que percebi. Sobre meu criado mudo, sua explicação: por causa de sua filha. A primeira leitura me levou ao desespero. Anita, meu Deus, Anita, por baixo da santidade! Então odiei minha filha e queria vê-la morta.
Agora releio o bilhete com os olhos nublados de dúvida. Por causa de sua
filha. Mas o que poderia ter feito minha doce Anita para ser assim culpada pelo
abandono em que Pedro me deixou? Foi o que li pela primeira vez e a expulsei de
casa sem ouvir qualquer explicação. Só agora percebo que a causa pode ser
diferente da culpa.
Cega de dor. Foi assim que ela desceu estas escadas, sabe-se lá com que
propósito. E até penso que sem propósito algum. Ela tão-somente gritava isto é
uma monstruosidade. E repetia aquilo desvairada. Como desvairada desceu
correndo as escadas. Queria, talvez, apenas atravessar a rua, afastar-se de
mim, que tão rudemente a acusava, fugir para qualquer canto do mundo onde não a
alcançasse minha maldição. Como saber? Corri até a janela, quando ouvi o
guincho dos pneus no asfalto. O trânsito estava parado e uma multidão
aglomerava-se no meio da rua. Ela tinha-me escapado definitivamente.
Meu sentimento de vitória, naquele instante, me enche agora de remorso.
Nem o pensamento de que ninguém pode escapar de uma fatalidade tem o poder de
me consolar. O bilhete não esclarece nada, mas sugere um mundo tenebroso. Entre
causa e culpa vou remoendo minhas horas, e as piores são as horas do anoitecer,
quando as sombras começam a invadir a casa, tornando o ar mais denso e
pesado.
*
Anita
Acusado de um crime atroz que me imputais
Que
amigos posso eu ter se vós me abandonais.
Hipólito
Entrei na igreja pisando com os pés, suas pontas, o respeito que me
ensinaram. O sol tornava-se festivo, atravessando os vitrais, e o ambiente
feérico, tão diferente das ruas agitadas por onde vim, pousou nos meus ombros
com suavidade, me impregnou de sua calma. Foi meu pai quem me infundiu este
respeito pelos símbolos sagrados. Desde cedo, quando ainda me era difícil entender
o mundo natural, ele já me impunha o sobrenatural, como se eu, uma
predestinada. E foi assim que eu cresci. O incenso é meu ar puro, alimento de
minha fome.
O padre chegou logo depois, como havia prometido na porta da casa
paroquial, e trazia, pendurada de seus olhos claros, a felicidade de me ver.
Aquele olhar me purificava. Estávamos apenas os dois àquela hora na imensidão
da nave, submersos em raios coloridos de sol, que reproduziam em todas as
alturas as quatorze estações da via crucis. E então, minha filha. Era assim que
ele sempre começava. Foi isso que ele me disse ao sentar-se a meu lado. O que nos traz de volta esta santinha? Desde
cedo, desde os tempos em que meu pai já muito doente me trazia junto para
rezarmos, que ele me chama de santinha. Talvez tivesse mesmo rosto de santa,
naquele tempo, às vezes acho que sim. Não acredito que hoje continue a ter
aquele ar de quem não pertence a este mundo. Principalmente depois da baba de
outros olhos com que fui coberta ainda há pouco lá em casa.
A necessidade de contar o que trazia a santinha de volta quebrou minha
calma como pedra lascada e áspera. A primeira palavra me rasgou, em
defloramento, e um choro brutal, sacudido e descontrolado, me impediu de
continuar. A tarde estava preguiçosa, não passava de umas quatro horas, quando
entrei, e meu choro convocava todo o sofrimento da Virgem, de todas as virgens,
em meu socorro. Os raios coloridos do sol em que estava mergulhada a nave
moveram-se em contorções descontroladas como holofotes em noite de ataque aéreo.
Padre Artemísio apenas colocou a mão sobre minha cabeça e deixou que eu me
esvaísse em choro. Sua mão, tão leve que mal pressentia sua presença me
protegendo. A santinha do padre Artemísio trepidava em rota de angústia.
Quando por fim meus olhos secaram, febris, presos por uma fúria quase
divina, parados, não posso continuar naquela casa, foi o que em primeiro lugar
eu disse, as palavras ainda úmidas e grossas.
Os desígnios divinos, minha filha, os desígnios divinos são insondáveis.
Aquilo me soou como hosanas de um coro de anjos, todos com a cara que eu tive
quando criança: uma verdade. Ele tomou minhas mãos nas suas, transmitindo-me
coragem. Se for de Sua vontade, podemos encontrar uma solução. Ele, o que
estava pensando, era o que eu já sabia, o que muitas vezes havia insinuado: que
a vida monacal trazia a verdadeira e única felicidade. Concordei. Que sim, já
me sentia preparada.
Sei que minha história confusa saiu ainda mais descosida por causa da
emoção. Tentava me controlar, seguir uma linha lógica, mas a memória funciona
aos arrancos e paradas bruscas. Uma vez ou outra padre Artemísio me pedia
explicações, então repetia certas passagens, emendava o descosido, procurava
coerência nas impressões que me ficaram.
Terminei meu relato com as sombras já instaladas no interior da igreja.
Ouvi a porta lateral abrir-se e vi entrar uma das beatas que, apesar da pouca
luz, consegui reconhecer. Estávamos os dois em silêncio difícil. Eu mais
aliviada, depois de compartilhar com padre Artemísio as sujeiras em que estava
envolta. Ele, entretanto, pesado, muito pesado com tudo que havia ouvido.
Agora, minha filha, preciso me preparar. Em pouco tempo meu povo deve
estar aqui, à minha espera. Seus olhos claros estavam sumidos, quase
invisíveis. Por causa das sombras que haviam ocupado a igreja, mas também, me
parece, por causa da crueza do assunto. Mesmo sem ver claramente seus claros
olhos, encarei-o à espera de meu destino. Muda. Padre Artemísio percebeu-me
firme no propósito de não sair sem uma solução. Vai, ele disse ao cabo de algum
tempo, vai, minha filha. Converse com sua mãe. Mostrei-lhe que não poderia
dizer a verdade a minha mãe, que não merecia tal decepção. Diga-lhe apenas que o chamado de sua vocação,
minha santinha, e isso, pelo que sei, não é mentira. Saí de lá quase feliz,
alegre com a resolução finalmente tomada.
Breve, muito em breve, devo abandonar estas ruas agitadas, este cheiro de
petróleo, estes ruídos diabólicos. Ainda hoje minha mãe precisa saber de minha
resolução.
*
Pedro
Cada instante, Teseu, é precioso. A culpada
Sou
eu que ao filho casto e tão respeitador
Ousei
fixar um olhar de incestuoso impudor.
Fedra
Preciso sair deste inferno. Não suporto mais o castigo das noites de
insônia a imaginar sua respiração no quarto ao lado, uma parede apenas no
caminho de meus desejos. Não posso continuar fazendo amor com a mãe usando a
filha como fantasia. Ainda hoje preciso sumir. Agora, antes que a Joana volte
do clube, antes que tenha de enfrentá-la com uma explicação impossível. Um
bilhete apenas, e ponto final.
Ela saiu tropeçando em raivas, minha enteada, seus olhos grandes e doces
num rosto desconhecido-irado. Minha mãe vai saber de tudo, ela me jogou da
porta, num grito como um jab de
direita, antes de bater a porta: um cruzado de esquerda. Os dois golpes me
atingiram e me deixaram sem reação. Sua voz estava tão irreconhecível quanto
seu rosto, sem as doçuras do convívio, aquele mel que me fluía suave pelos
ouvidos como veneno que antes de matar inunda os sentidos e concede a visão do
paraíso -
gozo inefável. Sua voz, seu olhar, os peitos empinados e pequenos, suas coxas
macias e quentes, seus lábios carnudos, fruta madura e sumarenta, tudo isso me
habitou nestes últimos três anos, dia e noite, como o prazer de uma morte. Era
impossível que Anita ainda não tivesse pelo menos pressentido o desejo que aos
poucos acabava comigo. Tanta ingenuidade não existe neste mundo, eu pensava.
Ao levantar-se da cadeira, deu dois passos para trás quase derrubando a
estante de CDs. Seus lábios tremiam e os olhos marejavam. Foi o momento em que
percebi a falsidade dos prenúncios que vinha observando desde a hora do almoço:
o destino parecia a meu favor. Eu percebi, então, entre assustado e curioso
como numa vertigem, o tamanho de sua indignação. Tinha suas mãos nas minhas e
suava por causa disso. O tesão me incendiava os olhos, minha saliva era uma
lava grossa e quente.
E ela finalmente entendeu que as carícias recebidas não
eram paternais. Um momento antes eu ainda acreditava na possibilidade daquele
amor proibido. Até o momento em que ela arrancou bruscamente suas mãos das
minhas.
A voz que eu ouvia não era minha, era pálida, era como a voz da televisão
na sala ao lado. Meus lábios se moviam à revelia de minha vontade. A cena era
de um sonho difícil e surreal. Eu sabia o que estava fazendo, mas não
controlava qualquer ação. Desde o instante em que tomei suas mãos entre as
minhas e ela sorrindo permitiu que assim ficassem, perdi completamente o
comando de mim, dessa loucura que durante tanto tempo eu vinha evitando. A
tarde juntos, eu acabava de dizer, e ela perguntou por quê. E me encarava de
olhos corajosos, o que entendi errado. Ora, por quê. E então você não percebe?
Percebe o quê?, ela voltou a perguntar, suas mãos quentes irrigadas pelo suor
incontrolável de meu tesão. Que eu quero fazer amor com você, eu disse
baixinho, como se uma coisa assim proibida pudesse marcar os móveis, as
paredes, pudesse criar um corpo com asas e evadir-se pelas janelas. Suas
pestanas enrugadas me fitaram um momento sem compreender nada, obtusas, e então
suas duas mãos fugiram assustadas.
Tanta coisa para se fazer num domingo à tarde melhor do que jogar vôlei,
minha filha. Foi tão primeira essa vez que se declarava entre nós qualquer
parentesco que a meus ouvidos soou como mentira. Um som falso. Mesmo assim,
Anita, que nestes três anos vinha evitando qualquer aproximação comigo,
entregou-me docilmente suas mãos. Ela esteve muito perto de ceder. Tenho
certeza disso. Senti que se agradava das carícias, tensa, gotículas de suor na
testa e no buço. Avancei rude, uma fome antiga
me guiando os passos. Foi a minha perdição, porque então vi a sombra de
seu pai encarando-me do fundo de seus olhos grandes e assustados. Entre nós,
quase sempre, aquele anjo da guarda que o câncer comeu, mas cuja lembrança está
em cada canto desta casa, afrontando-me com sua santidade.
Anita, em geral, usa roupas fechadas e escuras, escondendo o corpo. Não
sai da igreja e se comporta como uma noviça. E dizem que estas são as mais
quentes. Nas tardes de calor, entretanto, ou quando resolve lavar o quintal,
finge que não me vê. Talvez não me veja mesmo. Veste um shortinho muito curto e
apertado, metade da barriga aparecendo abaixo do nó nas fraldas da blusa. Uma
vez só que eu pudesse enfiar o dedo naquele umbigo orgulhoso e despudorado, uma
vez só e morreria realizado. Meu Deus do céu, são as tardes em que faço amor
sozinho.
Um ciúme assim mórbido e intenso não acreditava que um dia pudesse
sentir. O domingo quente se desmanchava na frente da televisão quando ela
passou e se despediu displicente. Desde cedo eu estivera certo de que o destino
estava a meu favor. Anita não tinha aonde ir. Foi do que se queixou na volta da
missa. Mais tarde, pouco antes do almoço, Joana me perguntou se eu não me
incomodaria de ela passar a tarde com suas amigas jogando não entendi bem o que
no clube. Sábado à noite os empregados costumam ser dispensados. Eu tinha o
jogo do Brasil a que assistir. Boa razão para estar em casa. Tudo armado e ela
parecia não entender.
Aonde vai, vestida desta maneira? Usava um agasalho esportivo e tênis.
Ela parou surpresa com essa intromissão assim tão paterna. Coisa fora de meu
feitio. E demorou algum tempo surpresa, resposta nenhuma acudindo-lhe. Foi o
tempo em que me levantei para cercá-la, conversando amistoso, chegando ao ponto
de chamá-la de filha. De minha filha. Jogar vôlei com os amigos, ela disse
finalmente, provocando sem saber o ciúme que me decidiu a não retardar aquela
abordagem.
O jogo ainda não tinha começado.
*
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