O início daquele jogo foi uma frase que me incendiou. O
nosso jogo. No fim da peça, passei pela frente de seu camarim, e ela me disse
não vivo sem você. Seu riso quente, então, invadiu minhas veias, ocupou cada
célula do meu corpo. Não vivo sem você. Sem coragem para entrar, fiquei parado
no limiar da porta fruindo até a última gota do olhar com que ela me amarrava
ali. Tentei dizer alguma coisa para dar a entender que tinha ouvido sua frase e
que seu riso já ocupava muitas de minhas noites, mas não consegui mover os
lábios, como não conseguia mover os pés.
Só bem mais tarde descobri ter entrado em um jogo julgando
tratar-se da vida.
Meses depois, quando Diana disse hoje você me salvou mais
uma vez, percebi que fora para mim, e só para mim, que a tinha salvado.
Esbarrava em minha consciência um sentimento de posse até então desconhecido.
Diana era uma pertença a meu alcance. Sem minha voz, que só ela ouvia, a peça
teria desandado. Foi a primeira vez que fingi estar jogando, mas o fingimento
era apenas dos lábios, porque eu fingia que estava fingindo. Enquanto eu
estiver por perto, foi minha resposta, você está salva. Nós dois misturamos
nossos risos, e pensei que misturávamos nossas vidas. Até então, eu era uma
estátua para seus ditos graciosos. E com que encanto, então, Diana os proferia,
sabendo que me embaraçava − um vegetal em combustão.
Diana me amava, eu aparecia em seus sonhos, ela não podia
viver sem mim. Quantas vezes ouvi tudo isso, meu sangue a ebulir, caudal de que
mal dava conta o coração. Os outros integrantes da companhia sorriam para mim
ao se referirem àquele caso entre nós dois. E eu, com a voz clara de um riacho
entre pedras, e a dicção pura que jamais perdeu um só fonema, me encolhia sem
nada dizer a meu favor. Sorvia tão-somente com extremo gosto aquelas alusões
cheias de malícia e que a meu ver justificavam minhas esperanças.
Houve meses em que era sacrifício imenso ficar na gaiola do
ponto até tarde da noite. Mas era um sacrifício a que me dedicava sem
relutância, pois era dele que emanava minha certeza de estar vivo. Minhas
vistas se desgastaram na obscuridade em que era forçado a participar do
espetáculo. Caí em desespero à simples idéia de me separar do palco. Um par de
óculos foi que me restituiu a confiança em mim mesmo.
Restabelecida a rotina, meu único sofrimento acontecia nos
dias de folga da companhia. Ficava em casa perdido, sem saber como passar o
tempo vazio da espera, sem interesse por nada que não fosse a contagem de cada
minuto que me separava de Diana. Da sala para a cozinha, da cozinha para a
varanda, me movia num mundo descolorido, nem frio nem quente, um mundo de tempo
feito de uma pasta viscosa e grossa, caldo lento e pesado.
Cheguei a desconfiar, por algum tempo, da sinceridade
daqueles sorrisos. Como imaginar que todos, atores e atrizes, tivessem entrado
em um jogo, ainda que como meros coadjuvantes? Para mim era mais conveniente
acreditar na pureza da alegria com que me cumprimentavam piscando olhos
maliciosos.
Na semana passada nos cruzamos nos bastidores depois de uma
noite infeliz de Diana. Ela não conseguia se concentrar e pelo menos umas cinco
vezes se pendurou em meus lábios, de olhos e ouvidos abertos. Desconheço suas
razões, como não sei quase nada de sua vida. O que vivíamos debaixo dos spots
já me satisfazia. Naquela noite estávamos todos cansados por causa da tensão
provocada por um desempenho apenas medíocre. Diana, suada e de olheiras roxas,
me disse assim na minha cara você é o homem da minha vida. Disse e continuou
andando na direção do camarim. Voltei e segui atrás dela. Ninguém diz
impunemente uma coisa dessas, foi o que pensei.
Ela mal tinha entrado, a porta ainda aberta, e mergulhei no
gesto mais ousado de minha vida. Sim, mergulhei, pois foi como se meu corpo
todo, meus sentidos, estivessem naquele momento penetrando em um elemento denso
e perigoso, do qual nem sempre se pode sair com vida. Eu não conseguia respirar
direito e achei que fosse morrer sufocado. Entrei também e tranquei a porta.
Seu olhar de espanto me abalou, mas não me fez desistir. Peguei-a pelos dois
braços e, mais perto de seu rosto do que jamais conseguira chegar, disse com a
voz distorcida pela emoção, apesar da articulação perfeita de todas as sílabas,
como eu sempre soube fazer, que queria casar com ela.
O que se seguiu, oh suor que não larga mais minhas mãos, oh
nuvem que escureceu meu céu e minha vida, o que se seguiu não consigo lembrar
claramente. As palavras e os gestos, a expressão de seu rosto, tudo me fez
perder a noção de onde estava e o que fazia. Na luz mais forte do camarim, nos
espelhos que nos rodeavam, nas flores murchas que tresandavam a cemitério, em
tudo só consegui mergulhar como arrastado por um vórtice a que não se pode
resistir. Eu me afogava. Você não se enxerga?, foi o último grito que ainda
ouvi com alguma clareza. Seus olhos aterrorizados me enlamearam de ódio de alto
a baixo.
Não sei como nem quando cheguei em casa. Ruas noturnas e
silenciosas testemunharam meus passos incertos, recolheram muitas de minhas
lágrimas. Eu queria morrer, mas não sabia como se faz isso. Também não sei se
era mesmo morrer que eu queria. Às vezes, ao cobrar uma esquina, mudando a
paisagem, me ocorriam idéias sinistras e me parecia que matar seria muito
melhor do que morrer. Cheguei sujo e cansado, e do jeito que cheguei me atirei
na cama. E dormi como quem acaba de morrer: um sono escuro e vazio.
Também não sei a que horas acordei no dia seguinte. O céu
estava encoberto, as árvores da minha rua tinham adquirido esta cor de palha
seca das coisas que morrem. Nenhum som dos muitos que sempre amei da cidade me
ligavam ao mundo. A dor que andei derramando pelas ruas à noite transformou-se
num clarão do ódio inventado pela desilusão.
Tomei um copo de água gelada e sentei numa cadeira perto da
mesa da cozinha. Olhava minhas mãos imóveis sobre a tampa da mesa e não
entendia que elas fizessem parte de mim. Que utilidade teria comer, seguir a
velha rotina de anos, indo à padaria logo depois de levantar, botar água a
ferver para passar um café, ler os jornais, repassar os textos da noite?
O sol bateu na janela e atravessou a cortina. Foi um raio
dele que me atingiu os olhos e o cérebro. Tomei outro copo de água e corri à
sala, onde me aguardava uma cópia da Casa das bonecas, cuja estréia se daria no
próximo fim de semana. Como geralmente fraco, tinha acompanhado os últimos
ensaios para observar os principais obstáculos encontrados pela memória dos
artistas. Minha cópia estava rabiscada, com anotações que me ajudassem nos
momentos de maior necessidade. Sem medo de mentir, eu já sabia a peça quase
toda de cor. Mas resolvi estudá-la em cada fala e foi o que fiz até a chegada
da noite.
Nos dias seguintes, tive um só pensamento: restaurar meu
amor próprio abalado.
Ontem foi a estréia. E lá estava eu, naquela posição
incômoda, o texto à minha frente, com todas as anotações que tinha feito
durante os ensaios e mais algumas que durante a semana eu fora acrescentando.
Ali, a bem poucos passos de distância, quando abre o pano,
Diana/Nora exercita sua generosidade e diz ao entregador que não precisa
devolver o troco. Meu único temor é de ter os olhos inundados e não poder
exercer minha função ou falhar nos meus planos. Quantas e quantas vezes,
fascinado pela imagem da minha deusa, eu passaria semanas sem comer, sem
dormir, dentro da minha concha, contemplando o semblante do ser amado. Pela
primeira vez me soa extremamente falsa a bondade de Nora e estou para eleger
Helmer como a personagem empática.
O primeiro ato transcorre sem novidades. Nora troca a deixa
no final de uma de suas falas e diz: Então os médicos declararam que ele
precisava ir aos banhos. Quando deveria ter dito ir para o sul. É isso, tenho
certeza, que desorienta a Senhora Linde, que me olha desesperada. É verdade:
vocês passaram um ano inteiro na Itália. E Nora se reencontra com as falas e
vai em frente.
Logo nos primeiros minutos do segundo ato, começo a suar,
porque meu momento se aproxima.
É uma das falas mais fáceis, mas sei que Diana,
principalmente porque está desconcentrada, como desde o início venho
observando, não vai conseguir lembrar.
Com sua conhecida arrogância, Helmer se dirige à esposa.
HELMER – (afagando-lhe o queixo) Gentil por obedecer ao seu
marido? Vamos, minha tontinha, bem sei que não foi isso que você quis dizer.
Mas não vou importuná-la. Sei que você está querendo experimentar a roupa.
Neste ponto ela se aproxima, pois também sabe que nunca
lembra a fala seguinte. Alguma coisa em sua memória se rebela contra a
continuação, e ela depende de mim. Me mantenho um instante mudo, olhando para o
texto, adivinhando apenas o desespero de Diana. Então ergo a cabeça, tudo isso
em fração de segundo, um tempo que a platéia não chega a perceber. Ela agora
está inteiramente em minhas mãos. E sabe disso. Eu não sou o homem de sua vida?
Os tapinhas que recebia nas costas, o sorriso escarninho com que me
cumprimentavam, tudo isso não era porque ela não vivia sem mim e tudo o mais
que durante muito tempo ouvi, sim, com estes ouvidos sensíveis a todos os sons
da voz humana, ouvi embalado por um caudal de esperança?
Diana faz um gesto de nervosismo, gira sobre seu próprio
corpo e passa a mão direita no rosto, como se assim vá lembrar-se do texto. Ah,
mas aí mesmo é que não se lembra. Depois de levantar a cabeça, eu posso ver
nitidamente os bagos de suor logo acima de seus lábios. Mário, que faz Helmer,
também se angustia, tentando inventar alguma saída, quando concluo ter chegado
minha hora. Mas reluto. É tal o pânico que percebo no olhar de Diana que me
comovo. Seu rosto está desfigurado, com feições que se desmancham. Tento
desistir de meu plano, o que não é mais possível. Há dentro de mim um demônio
que me guia contra minha vontade. Nora, neste momento, deve dizer apenas: E
você, vai trabalhar? Apenas isso para que Helmer responda: Vou. E depois de
mostrar uns papéis a Norma, continua seu discurso.
Então minha voz, que a mim mesmo assombra pela clareza
inusitada, sai nítida como lâmina de adaga para introduzir uma fala do terceiro
ato, já perto do final.
NORA – Durante esses três dias eu vivi um conflito terrível.
Não é a deixa esperada e Mário me olha perplexo. O que está
acontecendo, justo numa estréia para um público convidado, atores de outros
grupos, críticos e resenhistas de toda a cidade, professores e estudantes de
artes cênicas? Tudo isso deve estar passando por sua cabeça, quando decido
ajudar e insisto na fala com que Helmer deve assumir o erro: E chegou a se
desesperar;... Ele parece não me ouvir, os olhos relampejando, e insisto na deixa
de Nora, repetindo cada vez mais alto, para ocupar seu cérebro. Sem escolha,
finalmente ele repete.
HELMER – E chegou a se desesperar;...
Mário pega minha ajuda e continua, como se tudo estivesse
transcorrendo normalmente.
Dali até a interrupção, não vi mais o que aconteceu.
Abandonei o ponto e saí rapidamente por um corredor pouco
usado, porque ia dar na porta dos fundos, que se abria apenas para carga e
descarga. Eu trazia a chave no bolso.
Do corredor ainda ouvi o diretor gritando para que se
fechasse o pano de boca, sua voz abafada por vaias ruidosas.
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