sábado, 30 de abril de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Crispação

Farelos de pão, duas xícaras sujas de café, as flores verdes da toalha branca. Pela porta aberta da cozinha, penetrava o cheiro furtivo e fresco de um mundo encharcado, a débil e obsedante melopeia do céu em final debulha no chuvisqueiro nascido com o princípio dos tempos. O relógio, o elefante azul de gesso, o guardanapo, a pilha de pratos por trás da vidraça. Há mais de duas horas a vã procura do que se dizerem. A vida comum em descomunhão. Em dez anos atingiram a solidão, feriram de morte o sortilégio dos desvendamentos.


Cacilda foi quem primeiro percebeu os sentidos opostos, a distância aumentando na proporção das mútuas descobertas. E em seu desentendimento foi gerada a angústia das sendas irreversíveis. Rodolfo era contemplativo: devia ter vida interior suficiente para suportar longas jornadas sem um gesto, sem mover os lábios. Como admitir uma existência a não ser através de suas atividades, suas realizações?

Amaram-se, outrora, com ardor bastante para que ela julgasse o futuro um tranquilo desfiar do tempo. Projetavam ainda, exaltavam-se com pequenas satisfações, gastavam as horas conversando. Um dia
surpreendeu-se a monologar ao lado de um homem ausente. Companhia de corpo apenas. Há quanto
tempo acontecera a transformação?

Irritava-se, no início, com a inatividade tamanha e com os monólogos incomunicantes. Sofria os minutos vazios, as horas de compacto silencia. Então brigava, cortava com violência os liames de Rodolfo com sua interioridade inacessível, arrastava-o para a superfície do acontecer, tudo na esperança de que aquilo não passasse de algum contratempo. Tentou alterar-lhe os hábitos, vestiu-se como se vestiam as meninas na idade da conquista, leu, informou-se, consultou conselheiros de revistas mensais, invocou, voltou a brigar sem outro resultado que o distanciamento cada vez
maior. Percebeu a tempo que a prática de provocar Rodolfo desencaminhava suas relações para o impasse. Por isso, e depois de muito exercício, atingiu também aquela espécie de nirvana. Tornava-se melancólica, impacientava-se com o transcorrer dos dias perdidos.

Há mais de duas horas Rodolfo olhava para as mãos espalmadas sobre a mesa. De repente levantou a cabeça e olhou-a nos olhos.

− Sabe – disse ele simplesmente – estou doido pra tomar um cafezinho.

Cacilda estremeceu. Estava justamente a pensar que dali a pouco teria de sair sob o chuvisqueiro para comprar alguns gêneros que lhe estavam faltando. A voz de Rodolfo em clara concreção soara-lhe como punção aguda penetrando por fissuras de seu pensamento.

− Mas ...

O que era mesmo que precisava dizer? As mãos soltas no regaço reagiram à momentânea crispação e quedaram-se novamente a descansar, esquecidas dos tempos em que eram hábeis e capazes de mil realizações. Mas teria, então, em verdade, alguma coisa a dizer? Rodolfo continuava de olhos fixos nos seus, e eram dois olhos azuis que aguardavam, e era-lhe difícil agora saber exatamente o que, num reduzido instante, parecera-lhe forçoso dizer.

− É que me deu vontade de fumar um cigarro, sabe.

De nítido, apenas o desconforto da ideia inconclusa e da inutilidade das palavras.

− Pois é, mas não tem pó de café em casa.

O sorriso de Rodolfo transpareceu tão-somente no brilho dos olhos, que se tornaram mais claros.

− Não faz mal. Eu posso muito bem deixar o cigarro para outra hora.

Encolheu os braços, recolheu as mãos.

− Se você quiser...

− Não, não, nem pense mais nisso.

Rodolfo fixou-se então nas flores verdes da toalha branca, enquanto, pelo vão da porta, Cacilda podia ver os pintos do chuvisqueiro que encrespavam o cimento do quintal. E o chuvisqueiro por certo não passaria antes que se acabasse o mundo.

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