sexta-feira, 11 de março de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Vento nas bananeiras                                       
 
Colher de pedreiro na mão, Arlindo namorava sua obra: trabalho feito com esmero, seu trecho de calçada o mais liso, medidas de conhecedor. Tarde mole de sol quente dorminhando a rua quieta. Sossego. No quintal, bem no fundo, bananeiras paradas pedindo socorro. Tarde sem pressa, de férias pela metade. Arlindo alagou com os olhos um céu todo azul: tão cedo não chove, tempo de secar o cimento.
No começo da rua apareceu Marcão. Como nuvem que se aproxima. Ao chegar da feira, o vizinho parava sempre no bar da esquina: campeão de bilhar. Subiu lento, crescente e sonado, plantou-se no meio da rua e falou.
− Olha aqui, avisa a dona Idalina que se ela não larga mão de se meter com a vida da minha mulher eu acabo com vocês dois.
Arlindo perplexo. O gosto de ainda há pouco, escorrendo sarjeta a baixo, só deixava tremor de frio, tonteira descendo pelo corpo todo. Seus olhos nublados mal retinham a figura enorme.
− O senhor me desculpe, mas da minha mulher eu não sei. A vida pra mim se resume em trabalho, que pra outra coisa não tenho tempo.
− Pois arranja um jeito qualquer e toma conta daquela língua. Eu gosto de avisar primeiro.
Nas janelas do sobrado, a mulher e as filhas de Marcão.
− Amarrar dentro de casa eu não posso!
Marcão aproximou-se, olhou a calçada nova e pisou fundo, pesado de corpo inteiro. E riu.
− Pode sim.
Arlindo se afastou. A tarde escurecia.
− Isso não precisava, Marcão.
Aluvião de gargalhadas despejaram-se desde o sobrado. O vizinho afundou mais o pé: o rosto iluminado de ferocidade atávica.
− Não é direito!
− Você cala esta boca, velho safado. Você não é homem.
Mães e filhos surgiram nos portões. O pé pesado de cimento, Marcão avançou na direção de Arlindo. Rubro, suado, ar de furiosa felicidade. Arlindo afastou-se, fechou atrás de si o portão de madeira, frágil símbolo de proteção.
− Você é um bêbado irresponsável.
− Bêbado, velho cornudo, eu já te mostro quem é.
Sem largar a colher de pedreiro, Arlindo retrocedeu tropeçando nos degraus. Na porta da sala virou-se. Marcão mantinha as mãos presas no alto do portão, os braços cabeludos formando um arco possante, escurecendo a tarde.
− Isso não é coisa que se faça, Marcão. Você não deve mexer com quem está quieto no seu canto.
− Aqui eu faço o que eu quero.
Dois moleques, depois de apreciarem de longe, saíram correndo para o fim da rua.
− Tem briga hoje, minha gente!
O alarma ricocheteava nos quintais.
− No sobrado do Marcão!
Os gritos acordaram a tarde. Um leve sopro de morte agitou as folhas das bananeiras. Idalina chegou da cozinha enxugando as mãos.
− O que é isso, Arlindo?
Melhor nem tivesse tirado férias, como fazia outros anos.
− O Marcão, esse bêbado sem-vergonha.
− Vem aqui pra fora que eu te mostro quem é que é bêbado sem-vergonha. Vem, velho safado. Você não é homem pra mim. Vem! Cai aqui pra baixo que eu acabo com a tua raça!
Dois companheiros de bilhar engrossaram a multidão.
− Se precisar de ajuda conta com a gente, Marcão!
Ninguém riu mais da brincadeira que as mulheres do sobrado.
− O senhor vá cuidar da sua vida!
− Ollha só, a velha, como é corajosa. Manda o traste do teu marido descer daí! Vem pra rua, vem! Se é homem desce daí.
Arlindo ensaiou desaforo maior, e seus lábios tremeram. Não, melhor fechar a porta e deixar o Marcão gritando sozinho. Idalina, porém, não permitiu. Estava furiosa.
− Vai cuidar da tua mulher, cafajeste. Vai! Vai perguntar pra ela com quem que ela dorme tudo que é madrugada.
Os podres, ah! Como são divertidos os podres familiares! A rua toda estrugiu em gargalhada satisfeita. Animada, Idalina teve um gesto de ousadia masculina, mas retrocedeu.
− Cala esta boca imunda, velha cadela. Penso que eu não te passo também na lenha? Velha puta. Manda o veado do teu marido até aqui que eu te mostro quem é o corno. Velha fedida!
Idalina desceu dois degraus.
− Tá vendo, Arlindo. Ele tá dizendo que você não é homem.
− Deixa esse bêbado sem-vergonha, Dalina. Vem pra dentro e fecha a porta.
− Ele chamou você de veado, Arlindo. Bota este cachorro a correr daí da frente.
− Pra dentro, Dalina!
− Você não é homem mesmo. Você é um corno manso. Se é homem, vai lá e bota aquele cafajeste pra correr.
A tarde era um melado quente a escorrer, escorrer: pegajosa, irremediável.
− Se é homem, desce aqui! – o convite persistente.
Arlindo foi até o quarto e se armou. E esta colher? Jogou-a sobre a colcha florida. Hesitou. Saída nenhuma? Um susto já estava bom. Atravessava a sala, na mão trêmula, a pistolinha antiga de dois canos, traste inútil jamais utilizado. Deus do céu, disfarçando, pelo menos, até o meio da rua. Por que férias? Calasse a boca, chegava. Uma tarde azul, grudada num céu azul. Tanto tempo. Se nem chuva. Fecho a porta, resto do dia. Ver ninguém. Tanta gente, por quê? Tropeçou na mesa. Densa nuvem, imensa, escondendo a tarde. Se um milagre, ao menos: um raio, uma rádio-patrulha.
Chegou à porta ostentando o artefato avoengo, ridículo arremedo de segurança. Deus do céu, será que vendo, pelo menos.
Marcão riu. Dentes enormes, brancos demais. A ruiva bigodeira bateu asas.
− Quem não é homem? – vagido a custo arrancado dos intestinos, vontade pânico de que o outro se afastasse para o meio da rua.
− Você tá se borrando de medo, velho cagão. Vem pra cá que eu mijo no cano desta bosta.
Pernas sem governo, Arlindo desceu alguns degraus. Amargor na boca. Tentou o equilíbrio num mundo oscilante, oscilou também e parou.
− Vai! – ordenou Idalina.
E era um dado real, uma voz conhecida. Ele desceu mais dois degraus. Pelo amor de Deus, o mundo tem de se acabar? Melhor não tivesse bala. Será que não? Um homem nunca na vida sente medo, nem apontando? Uma falha: a vida sem conserto.
− Vem, velho cagão!
Deu mais um passo e atirou.
Sem parar de rir, Marcão encolheu o corpo, a cabeça pendeu, e caindo arrancou um pedaço do portão. Ora, mas o que foi que me aconteceu?
No fundo do quintal, as bananeiras agitavam os braços na direção do céu. Sacola cheia de roupa, Arlindo procurava o buraco na cerca. Idalina chegou correndo e o segurou pela manga, mas os olhos que viu eram de fundo de caverna: um vazio negro luminoso. Arlindo conseguiu desprender-se e sumiu no mato.
− Você desgraçou a nossa vida! – ela ainda gritou.

(Conto do meu "caderno de aprendiz" Na força de mulher, publicado em 1984 pela Seiva Difusão Cultural e publicado no nº 35 da coleção Para gostar de ler - Gente em conflito - da Editora Ática)

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