sexta-feira, 6 de maio de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Vendo mato a vida inteira*


− O teu pai, este já não presta pra nada.
Um sem-fim de ladainha desafinada fazia contraponto com o vento encrespando a noite.
− Veve sempre encaramujado por aí pelos cantos. Mal de doença ele diz que não sofre. Sei lá, porque ânimo pra fazer coisa nenhuma também não tem. E eu, meu Deus, fraquejando como ando, o que que eu posso fazer? A tosse, essa, a maldita, não me larga, e é um fracasso tamanho na minha força que nem te conto nada. Até nem gosto mais de descer o morro, porque então depois, pra subir, é um caro custo! E vocês se alembram como antigamente eu dava um olho pra passear lá embaixo na varge? Pois agora só me desentoco em dia de domingo, por causa da missa.

Se parou calada ruminando o eco das próprias palavras suas, feito na espera de algum comentário. Ninguém disse nada. Chegou a cabeça bem perto do fogão e reavivou as brasas com seu fôlego arruinado. A fumaça soverteu suas cabeça e atravancou-lhe a garganta. Os olhos aguados disparavam pedidos de socorro. Era a tosse chegando outra vez, subindo do peito, espocando na boca. Os filhos se remexeram agoniados e impotentes, sem valia que pudesse ajudar: só silêncio. No quarto, Clotilde parou a costura, escutando, e esperou que o acesso passasse. Por culpa sua tudo aquilo? De não saber. Mariquinha enxugou os olhos e suspirou.
− Assim mesmo, duns tempos pra cá eu ando relaxando. Desço uma vez que outra. Na semana passada eu encontrei a Dulcina, vocês devem conhecer, a Dulcina do Viriato. Me perguntou: “− Como é, Mariquinha, não aparece mais lá em casa?” – E eu respondi: “− Olha, Dulcina, que nem pra ver o mano já quase morrendo eu saio mais. É um desacorçoo tão grande que só vendo.” – Eu acho que agora não duro por muito tempo.
Língua de vento varando a cozinha apagou a candeia. Só meia braça de chão batido, no relumeio que vinha do quarto onde Clotilde continuava costurando. Grudada no fogão, encolhida, Mariquinha se calou, matutando. De repente a cara magra reluzindo na luz vermelha do braseiro. O resto era o negrume da noite e as gargalhadas do vento. Rente à janela, Dita tremia de medo. Por qualquer fresta podia se enfiar o perigo sem explicação, porque o mato mais a noite, quando se ajuntam, só fazem criar mistérios e assombrações.
− Como é, gente, esta candeia não acende mais?
De pouca serventia as grandezas de Amâncio, mas entre o povo que vivia trepado por aqueles morros era tratado com os respeitos. Homem de pouca palavra é homem de muito tino, crença deles resumida em adágio. E em conversa não era que ele gastava a força. Prosa sua com viventes das vizinhanças, povo ralo da beira do céu, não passava de uns grunhidos de afirmação ou negação. Sons de peso, das maiores sabedorias. Por isso era procurado em precisão de conselho, sempre alguém pedindo sua orientação. Quem além dele pra saber o nome das guerras, mesmo como se tivesse comandado? Só ele, o Amâncio. Conhecia as épocas de casa coisa, dava o nome de cada vento, anunciava a chuva e o tempo de sol, sab ia a lua de qualquer plantio, conhecia remédios pra qualquer doença. Só Amâncio podia dizer a origem e o destino dos poucos aviões que sobrevoavam aqueles cafundós; o nome de generais que tinham escangalhado o sossego da humanidade, de cientistas que inventavam tudo e consertavam o que estivesse escangalhado; os segredos do mato e os mistérios da cidade, não havia o que ele não soubesse. Tamanha sabedoria desafinava com o trabalho da roça. E apesar de arruinado na pobreza, não andava de pé no chão nem usava chapéu. Além de tudo, a intimidade com o professor da varge, intimidade pra dias inteiros de conversa. Coitado, consumindo os lumes da cabeça enorme amuntado em seus cinco hectares de terra da bem ruim.
Mariquinha se levantou e foi acender o pavio da candeia.
− Vocês, lá no Rolante, decerto estão mais é bem de vida. Dizque a terra lá é muito boa e de manejo fácil. No meu pensamento é assim mesmo, porque Deus não ia fazer o mundo todo com modelo nesta ruindade daqui. Lugar do progresso, me representa. Quando vocês vão simbora, toda a vizinhança vem me dizer: “− Parecem uns doutores, os teus filhos, Mariquinha.” – Como fico contente!
− A coisa lá também não é tão boa assim, não. Mas pra bóia sempre dá.
− Nem me diz uma coisa dessas. E as roupas de grã-fino, hem?
Uns cobrinhos no bolso, muda nova de roupa e na cabeça algumas ideias, Silvério tinha chegado um dia. Chegou dizendo que ali não ficava mais. Naquele sobe e desce não findava os dias. Já tinha trabalho ajustado em Rolante. E se botou a falar. Trabalho de peão, de obediência, mas bem melhor do que passar ano inteiro cavoucando no meio de pedra e por final tirar uns quilinhos de flor de piretro que mal pagavam o sal, o fósforo e outras miudezas de consumo. Planta que prestasse, em fresta de pedra, no meio daquela pedreira, não tinha milagre que fizesse vingar. Família grande, largava o morro com tenção de desafogo. Largou.
Não demorou muito, e foi o Nilo quem se mandou atrás. Cuidar da vida. A Alzira botou na cabeça que não gostava de roça: tanto fez que acabou arrumando serviço de empregada numa casa de Porto Alegre. Nem notícia. E enquanto os filhos de maior serventia ganhavam o mundo, Amâncio nada mais fazia do que recitar nome de guerra e remexer nas glórias de seus antepassados, donos de quase aquele sertão todo. Sua terrinha... ah, sim, mas um avô com dúzia de irmãos, mais tarde filhos sem conta! O caruncho desmantelando a família e o piretro morrendo sufocado no meio das pedras.
− Quando tu saiu de casa, eu pensei cá comigo: “A gente agora vai passar mais aperto. Tanto que ajudava nosso Filho! Mas bem que ele fez. Pode ser que por lá ele se arranje na vida.” Bem assim que eu pensei. Depois foi o Nilo, mas o Nilo tu bem sabe o jeito que ele é: nem juízo, nem gosto por trabalho. Credo! É se rindo o dia inteiro, inventando bobícia, inticando com os outros, só assim. Sem pingo de juízo.
O filho relumiou a banguela, satisfeito.
− Acabou indo também. E ficou a gente com as gurias. Ai, meu Deus, como a vida começou a desandar. Então depois, a minha filhinha, que se foi pra cidade. Pra mais de ano que veio a última notícia. Quem é que sabe o que anda acontecendo com ela? O Amâncio, este só serve pra dizer: “− Deixa de ser boba, mulher.” Sonho com ela quase tudo quanto é noite. Vocês vão saindo devagarinho, se esparramando, e a gente perdendo a força. Eu bem que tinha vontade de sair deste morro infeliz, mas o teu pai é muito cabeçudo. Acha que depois de velho não é que a gente vai sair por aí rolando, feito cigano, pela casa dos outros. É morrer aqui, que pelo menos a terrinha é nossa e os vizinhos tudo gente conhecida. Dita, vai ajudar a Clotilde no quarto, minha filha! A Naíre não tem jeito pra nada, essa vivente. Anda, guria!
O minuano soprava no mato um barulho de mar, imitando. Tempo carregado, céu feio de escuridão. Mariquinha abanou as brasas com o chapéu e foi abrir a janela pra consultar a hora.
− É cedo, ainda. A lua tá recém nascendo. Mas a pobre da Clotilde tem tanta coisa pra arrumar, a coitada. Cruz credo! A gente não esperava por vocês tão de repente. E olha que isso carecia, pois a guria andava por aí bem jururu. Eu pensando que era coisa de passar logo, desimportância, aquilo, e ela sempre do mesmo jeito. A Clotilde nunca foi conversadeira, vocês sabem, mas andava muito pior, socada no silêncio dela. Um dia apareceu chorando atrás da casa. O teu pai mandou que ela calasse a boca, que onde é que já se viu uma coisa dessas: depois de grande virando manhosa, coisa e tal. Se parou xingando e ela no mesmo choro. Eu sou de burrice encruada, como diz o Amâncio, mas vi logo que aquilo não era bem assim. Então, quando eu vinha voltando da fonte, encontrei a pobrezinha com os olhos parados, uns olhos de cobra, como quem não tá vendo nada. Credo! Eu me afligi. Aquele não era o feitio dela, isso não. Assim, com cara de abobalhada. Quando eu falei pra ela dar uma espiada na vaca, ver se não tinha se enredado na soga, a pobre abriu no choro de novo, de berro solto e baba caindo. Nem gosto de me alembrar. Fiquei perto dela feito besta perguntando tudo que era coisa que me dava na cabeça, e ela sem dizer o que que tinha. Procurando remédio pra mau olhado, pra doença de mulher, foi que eu dei com o veneno de formiga. Jesus Cristo! A minha ideia ficou embaralhada. Me soltei morro a baixo bem sem rumo, subi de volta correndo, gritando vê que nem louca. Sem tino nenhum. O teu pai, com aquela calma dele, como se não tivesse acontecido nada, foi apertando, apertando, até que a Clotilde confessou tudo, que tinha arranjado o veneno ali no seu Deoclécio, que era pra matar um formigueiro, veja só, e que fazia uma semana que vinha ensaiando se matar. Pois o teu pai, que nunca se assusta nem com assombração, botou fala pra fora, tremendo como vara verde, que não conseguia parar mais. Foi bem assim. Bem assim mesmo. Então ela contou que já não aguentava mais esta vida, socada aqui em cima deste morro. E era verdade. Não querendo largar a gente, de dó, mas também não se aguentando mais nestes peraus do mundo.
Nada mais acrescentou. Já sabiam a história de cor, mesmo assim escutaram tudo calados. Calados, só, porque o espanto da primeira vez se desmanchava com a repetição. Assim o costume.
Tarde esfriando, meio pro fim, mal se apearam na frente da casa, Silvério pediu a bênção de longe sem beijar a mão do pai, ele filho agora com a solução das gravidades da família, começou falando num tom exagerado de rigor pra sua voz sem o costume.
− Ela tem de ir com a gente. Isso sim. Na fazenda do seu Oliveira tem lugar pra ela e jeito pro serviço não falta. Se viveu sempre trabalhando. Precisa é sair deste morro esquecido do mundo. Aqui, vendo mato a vida inteira, o vivente se consome.
Ali no quarto, dando trato de agulha nos panos, Clotilde sabia que falavam dela. Ouvia seu nome feito ferroada e fechava os olhos querendo não ouvir. Quase uma semana a mesma conversa, sua vergonha o assunto que ninguém conseguia esquecer da manhã à noite. Sentia os olhares, percebia os cochichos, o tratamento anormal como se fosse doente. Bem pior agora, depois de se decidir. Um queimor de culpa, agora. Deixar a mãe de peito arruinado e o pai de pouca serventia com o arrimo das duas gurias: bem que nem crime.
De repente o vento virou. Uma cantiga velha, mais pra tristonha, subiu o morro pelas veredas de bichos.

                   Rio a baixo, rio a cima,
                   cantando pra não chorar
                   i-lai-lai uí-lai-loi
                   cantando pra não chorar
                   uí-lai-loi

Silvério abriu a janela e se pôs a escutar.

                   Sentadinho numa pedra,
                   vendo os peixinhos passar
                   i-lai-lai uí-lai-loi
                   vendo os peixinhos passar
                   uí-lai-loi

Uma rabanada mais forte do vento quase apagou de novo a candeia. Silvério fechou a janela.
− Com toda pobreza daqui, o povo é mais alegre do que no Rolante. Sempre tem alguém cantando.
− Já não é tanto assim – Mariquinha discordou.
− Hum!
Amâncio concordava que não, que antes sim, o povo era mais alegre.
− A tristeza e a miséria chegaram na mesma condução – filosofou Nilo.
− Vocês bem que devem se alembrar como eu vivia cantando. Mas ai, se foi aquele tempo! Não sei mais modinha nenhuma, tudo esquecido. Cabeça pra nada, só pra me guiar um pouco. Agora é esta tristeza. Se ainda me aguento é por precisão de criar as gurias. Quem tem cria na desmama não pode se arriar. Deus que tá no céu é testemunha: não tenho mais folgo nem pra subir até o chapadão. Que dirá pra cantar. E a cabeça não funciona muito bem. Ando esquecida! Pois não é que agora não me alembro onde foi que eu botei as meias que ainda precisava cerzir pra Clotilde! Ô Dita! Vem procurar estas meias pra mim, vem. Anda guria, que eu tenho pressa! Onde se enfiou esta guria, gente?
− No quarto dormindo, mãe.
− Jesus, mas que guria tão preguiçosa! Bom, mas eu acho que já tá ficando tarde, mesmo. E vocês, tratem de se encostar um pouco, porqu3e amanhã o ônibus passa bem cedo. Amâncio, tu também, meu velho, por que não vai dormir na cama? Fica aí cochilando neste cepo! Vai te deitar, vai.
− Hum, e tu virou coruja, decerto?
− Ih, eu tenho ainda muito o que fazer.
Clotilde foi quem se levantou primeiro: cansada e zonza, com a boca amarguenta. Era cedo ainda, a luz medrando azulada, mas na cama o tempo se arrastava em lerdeza sem fim. Reuniu suas trouxas perto da porta. Silvério levava tudo no cavalo de Nilo. Conferiu tudo e saiu pro terreiro. Derradeira espiada. Vinte anos pisando por cima daquelas pedras, se roçando naquelas ervas, trilhando as mesmas sendas. Desceu até a fonte. Tinha decidido fugir dali, e agora olhando, era como se olhasse a Clotilde, a que ficava.
Vinha subindo quando ouviu a mãe.
− Minha filha, minha filhinha do coração. Tão boazinha, meu consolo, minha única valia. Que que eu vou fazer sem ela? Ai, Jesus, me diz: quem é que vai me ajudar se a minha filhinha vai simbora.
A família toda se reuniu na cozinha. Pela porta aberta entrava uma aragem fria, de madrugada. Mariquinha não parava.
− Tão obediente, meu Jesus, tão caladinha. Quando eu me levantava de manhã, ela já tinha acendido o fogo, tirado o leite, sempre sem dizer nada, sem se queixar, a pobrezinha que sofria tanto. Ai, eu não vou mais aguentar. Quem é que vai no mato tirar lenha pra mim? Eu acho que agora me acabo logo. Não, sem minha florzinha eu não me aguento mesmo.

O sol já riscava as nuvens por cima dos morros, não podiam mais demorar. Na frente dos irmãos, Clotilde descia o morro quase correndo. E se perdessem o ônibus? Se despedir de novo seria de não suportar. Bem longe de casa, já beirando a varge, ainda ouviu as lamentações da mãe. Apertou o passo.  

*(O conto consta do livro Na força de mulher, meu caderno de aprendiz)

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