sexta-feira, 20 de maio de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O insuportável ar quente da sala
                                                       
− Pronto – ela disse ao chegarmos de volta do hospital – agora vamos ver o que podemos fazer com as nossas vidas.
Preciso abrir esta porta. Assim fechada a sala me sufoca. Não suporto mais este ar quente e parado com cheiro de ausência. O que podemos fazer com as nossas vidas. Ela disse. Mancha pequena de sol no meu caderno. Dois sóis azuis por trás das lentes: O quadrado da hipotenusa é igual. Com as nossas vidas. Não consegui olhar para o rosto dela. Androide equilibrado em catetos e quadrados. Muito natural, naturalmente. E a fraqueza na boca do meu estômago. Esta ânsia. E a sufocação da sala fechada. Gostaria de saber se ela não sente. Eu vazio, na sala vazia com o cheiro de um tempo irremediável. Um tempo sem eco. Capaz de pensar nas nossas vidas e na soma dos quadrados.

No guichê aquele questionário. Tudo da vida, suas qualificações. Desde quando e as quantidades: valores imponderáveis e até mesmo ínfimos detalhes. Dados importantes, comprovações da real existência – o pai, a mãe, o filho e o espírito santo. E o número do telefone de recados. Dona Francisca envolvida sem consulta prévia. Meus dedos rígidos mergulhando em suor frio e pegajoso. É seu filho? A máscara do sorriso querendo ser simpático. Tudo em ordem, pode assinar aqui. Minha mãe não fraqueja, não treme, não esquece. Gostaria de saber se ela não sente.
Se pelo menos a porta fosse aberta. Por favor, por aqui.
O médico anotando tudo. Até certas coisas, intimidade deles. Profissionalmente. Meus olhos arranhando aqueles tacos, meu corpo tenso de tanto ódio pelo mundo. Médico é profissional e não vive de simpatias. A enfermeira ri e baba, mas decerto é de tanto lidar. Seu Lourenço, qual a hipotenusa do seu triângulo? Não respondi. Fossem perguntar à minha mãe, se quisessem saber. Eu querendo chorar. Me segurando com força na poltrona pra não chorar. Ela escreveu sem tremer, guardou os óculos no estojo e se despediu cortesmente. Imitando médico. Falou as palavras certas, de praxe. Tudo muito limpo. Serviço rápido e eficiente. Pois não, sim senhor. Mandaremos avisá-la. Ah, sim. Tudo depende da evolução do paciente. Os sintomas, a senhora deve saber, e assim por diante. Temos de considerar que ninguém se cura de esquizofrenia em quarenta e cinco minutos. Meus olhos afogados na vergonha de tanta fraqueza, esta minha. É seu filho? Como se eu estivesse ali. Bom passeio e feliz regresso. Odeio a minha fraqueza.
Odeio a segurança dela.
Meu Deus do céu, quanto a odeio! Se ao menos conseguisse abrir a porta.
Depois aqueles corredores. Os corredores. Corredores brancos, altos, bem mais altos. E o eco de seus passos salto luís quinze. A firmeza de seus passos. Sozinho eu não teria conseguido sair de lá. É uma merda, mas o riso da enfermeira não descola dos meus olhos, dos meus ouvidos. E a sala, vai continuar por muito tempo assim vazia? Se eu gritasse, quem sabe? Se eu conseguisse gritar. É seu filho?
Depois o sol, o céu. Aragem morna. Eu livre sem asas. Sem querer estar livre. Seu Lourenço, pode ficar de pé, por favor? Diga-nos o que sabe sobre os catetos. O cabelo na testa, escondendo. No dia de sol e de céu azul. Meu pai na sombra, na jaula, sem compreender onde estava. Sozinho contra os perigos. Sua fraqueza. Sem força de olhar para trás, não olhei. Pois muito bem, seu Lourenço, então se a hipotenusa.
No táxi no banco de trás. Rolasse até o fim da vida. Bem melhor. Isentos de culpas e de pensamentos. Mas ela é exata como um teorema. Entrando pela Teodoro Sampaio, a quinta travessa à esquerda, por favor. É seu filho? Dizer que não, que ela veio de longe, que nunca perde o controle, nunca deixa o feijão queimar. Exausto, a camisa colando nas costas, os dedos agredindo-se inutilmente. A senhora pode aguardar a chamada, por favor? Querendo e não querendo chorar. Há quanto tempo, minha senhora? Todos os detalhes são valiosos. Tudo, tudo sem falha. E o marido. Daqui a pouco minha cabeça estoura. Voltou como se voltasse da missa ou da feira. Quinta travessa à esquerda, por favor.
Esquizofrênico. Mas por que, como acontece uma coisa dessas? O que pode levar uma pessoa de aparência saudável a se desregular a tal ponto?
Esforço-me na busca de alguma lembrança. Eles dois, como casal, se eram normais. Desde quando? Não sei de nada. E me sufoco. Certos detalhes só conheci no consultório. O relacionamento. O inesperado me desnorteava, as raras vezes surpreendidos em idílio. Ficha mais sem fim, o médico talvez tenha anotado: relações normais. Minha mãe disse: relações normais. O médico inquiriu: Como normais? Ora, normais! Até certo ponto, certo tempo. Depois ficou sendo um pouco assim e outro pouco diferente. As desconfianças. Eu de nada sabedor. Criança, achava que não se amavam. As discrições. Minha vida entre eles, mais ninguém. Um certo frio, como um desamparo.
De seu trabalho fiquei sabendo por acaso. Extravio de palavras sem intenção. Assunto de adultos. Me poupavam? Agora ela chega e diz: Pronto, vamos ver o que podemos fazer com as nossas vidas. Serviço terminado, bate as mãos limpando-as. Corretamente. E eu lá entendo alguma coisa da vida?
Neste instante ela se move na cozinha. Ouço. Não é uma coisa monstruosa? Como sempre, como todos os dias. Método e rotina: eficiência. Eu continuo aqui, com o medo a me formigar nas pernas, a me subir pelo corpo todo. O medo e o vazio. Estou oco e ouço o eco da vertigem. É horrível, mas estou completamente oco. Nem a doença de meu pai consigo lastimar quanto queria, de pessoa normal, pelo menos. Minha cabeça é um balão. E o susto que levei. Os olhos que não eram os dele, alucinados, e ele dizendo que a comida estava envenenada. Ali na cozinha. Acho que nunca mais vou ter coragem de entrar ali. É o ponto final, o lugar onde ele estava alucinado. Será que a enfermeira zombava? Me pegou no queixo, riu, babou, disse alguma coisa que não entendi. Sou bobo, afinal? O meu cérebro todo tem registro da voz que não era a dele, dizendo que a comida estava envenenada. Preciso de ar fresco. Gostaria tanto de sair e andar pela rua. Até o fim dos passos e dos pesadelos. O calor desta sala está insuportável. Ela me pediu que eu fosse. Insistiu. Não saí do lugar. Precisava chamar o médico, mas temia deixar-me sozinho com ele. Pressenti na forma como me olhou. Queria que eu fosse. É seu filho? Apesar do temor, trocou-se e subiu até a padaria para telefonar. Será que me recrimina por esta falta de coragem? Mas eu juro que não saberia ao menos discar um número.
Movimento quase imperceptível da cortina. Veio espiar-me. Estou quieto e isso a inquieta. Deve pensar que não a vi. De avental, como convém. Tudo nela conveniente. Já trocou de roupa. E eu não consegui mover os pés desde que entrei apesar da vontade de abrir a porta. Fora também deve estar fazendo muito calor. Não sei. Eu sinto frio. Ver o que podemos fazer com as nossas vidas. E como? Todos muito amáveis: o médico, a enfermeira, a funcionária da secretaria. O médico escolhendo as palavras para dizer monstruosidades. Nossas vidas. Minha mãe e eu. Ele era representante comercial autônomo. Vaga noção. Falou de economia, se por em dia com o INPS. Aí vem ele. Pouco fiquei sabendo. Ainda bem. A senhora pode aguardar a chamada, por favor? No guichê ficara o dinheiro guardado para o INPS. Não chegou a se por em dia. Quanto? Deus nos livre de médicos e de ladrões. Particular? Um sol de dezembro, Lazinha longe.
A sala ontem não estava assim vazia. Lazinha e eu sentados no tapete, um disco de rock volume total. Você é um cara ligado, sabe das coisas. Até parece. Depois da moto 750 o vestibular: engenharia na USP. Legal. Mundo sólido, estrutura familiar. Nós três e Lazinha nos planos. Pode até ser a prestação, não quero nem saber. Sem moto não fico. Ela maravilhada como um dia de sol. Não sei o que fazer. Não tenho a menor ideia do que fazer. Isso me apavora.
Sinto que aos poucos minhas ligações com o ambiente se fazem mais nítidas. O desconforto aumenta. A sala, a sala aqui em volta, com a porta fechada, tem qualquer coisa de terrivelmente estável, de eterno. A mesa coberta pela toalha de linho; a tevê com a tela verde-cinza; meus livros mudos na estante, mirando-se imóveis o sofá e as poltronas. Como não via ontem esta pátina corrosiva que tudo cobre? Desde que eu me conheço por gente, esta parte da casa foi sempre igual a si própria. E continua igual, mas hoje, por ser tão igual, apesar de tudo, está patética. Os meus pés. Agora eles. Latejam sobre o soalho, meu peso é enorme. Tudo coberto de poeira, uma poeira morna e escura que vai aumentando, escondendo as silhuetas. Acho que anoitece. Não sei há quanto tempo estou aqui parado. Quando entrei, sentia ânsias de vômito. Desde a hora do almoço a mesma ânsia, a comida envenenada, os olhos desamparados, aquele medo. Pensei que fosse vomitar no táxi, depois aqui. Preciso abrir a porta, urgente, senão sufoco. Quando que eu pensava, meu Deus, quando poderia imaginar. E as batidas do coração, aqui no pescoço, na cabeça.
Passos que vêm da cozinha. Minha mãe arreda a cortina. Miúda, limpa, silenciosa. Regendo ordem.
− Lourenço, a mesa está posta. Vem jantar, meu filho.
Sua voz tremeu? A sua voz? Ah, ela não sabe quanto me aquece esta tremura. Sinto frio. Sua voz não é medida e certa. Percebi claramente. Conheço.
Movo os pés, o corpo, e me sinto preso dentro de uma armadura. Cavaleiro da Távola Redonda. King Arthur. Meu pai lá e eu com estes pensamentos ridículos. Será que um dia também fico insensível? Não, não janto. Sei que não posso jantar. No entanto atendo ao chamado. Ninguém controla os pensamentos, isso não é insensibilidade. Ando, forço os pés. É necessário acontecer alguma coisa para que eu não me transforme numa estátua.
A luz. No primeiro instante a luz da cozinha me cega. Mil sóis de claridade. Afugento imagens. Com as mãos e o pensamento. Uma bola vermelha arde dentro do meu crânio. Poucos segundos e a vista já está habituada. Além de hipotenusa e catetos, aprendi que o homem possui, felizmente, grande poder de adaptação. Não posso deixar de pensar. Mesmo querendo, não deixo. Somos o resultado do meio, que estamos permanentemente procurando transformar para que seja menor o esforço de adaptação.
Sobre a mesa dois pratos apenas. Apenas dois que se defrontam, se confrontam. O meu e o dela. Nos lugares de costume. Gostaria de dizer-lhe que não sinto fome e que é um absurdo este jantar com apenas dois pratos. Se tivesse coragem, diria. Sinto uma extrema necessidade de agredi-la por ter pensado em comida. Não vou além da vontade.
Minha mãe levanta a cabeça e me fita. Nunca tinha reparado em seus olhos. São bonitos, quando tristes. Agora os vejo pousados em mim. Ela me encara sem esconder o rosto, por onde escorre o brilho das lágrimas.
Já sei que esta noite não vamos jantar.


  (Este conto faz parte do livro Na força de mulher, meu caderno de aprendiz)

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