sexta-feira, 27 de maio de 2016

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Na força de mulher
                                     

Se falo demais, me arreleva, não é do meu feitio, nem sistema aqui do sertão, mas quando eu penso nas labutas por que passei, nas peleias todas, minha cabeça destrambelha. Tudo quanto foi coisa. Acho que tomo seu tempo, relatando assim por miúdo. Se tomo, é só avisar que eu paro. Não tomo? Então prossigo, porque o doutor carece de conhecer muito bem o que foi a minha vida com o Dinarte e, com seus entendimentos, me dar resposta: se ele pode fazer uma coisa dessas comigo. Não é assim mesmo? Pois é.
Cambista nasce cambista, costumava ensinar meu finado pai. É uma sina da pessoa, que ela tem de cumprir, pois nem viver de outro modo, com maneiras diferentes, ela aprende. Difícil de saber os tais fenômenos. Pra mim, me representa que alguns adotam a sina pra disfarçar vadiação. Não tou certa? Então.

Do negócio que abrimos já lhe falei, não falei? Foi logo depois que eu pari o meu terceiro filho. O que eu não disse, foi como aconteceu. A terrinha de nossa propriedade era a mesma esta aí na frente, que o doutor enxerga pela porta. Noventa braças: de campo, de mato, mais aquele banhadinho ali embaixo, de esguelha, onde a gente semeava arroz. Coisa levada comigo no casamento. Vigia só: o Dinarte, mesmo dele, entrou com o corpo bem formado e uma cabeça carregada de invenções. Só isso. 
Lá pelo início, recém-casado, ele era um tinhoso na roça, tal qual ninguém acreditava que pudesse ser, sendo ele filho de quem era. A raça dos Macedos vivia de teimosa nas grimpas do morro aquele lá, excomungando qualquer serviço, em jornada pro sustento quando a comida acabava. Mesmo assim. Nem pense que eu digo isso por despeito, pelos mal-sucedidos que eu vivi. Querendo, é só sair por aí, perguntando pra este povo todo do sertão. Nenhum me desmente. Pois era um sucesso, o modo como ele trabalhava. Agora, já de longe, me palpita que aquilo era uma birra dele.
A Lucinda, sabe, a minha comadre mais amiga de todas e que desde guria já se acolherava comigo, uma vez me disse: “− Olha, Angelita, tu botou mas foi um cabresto curto no Dinarte.” E era? Eu, pra mim, penso que não. Ninguém nunca vai botar cabresto naquele homem. Fazia o que fazia, só por conta dele, quem duvida que por se-mostração ou pra rebater a má fama.
Pros gastos ia dando e até sobrando. Com a venda das colhetas, de alguma criação, com os negócios que ele ia fazendo, um dinheirinho sempre se ajuntava. Muito balaqueiro e avoado, o gaudério, mas ladino pra negócio como só ele.
Numa tarde de setembro, ele me chegou de lá do outro lado de ideia escondida no porongo. Chegou desfazendo das terras, que eram pura maçaroca de macega, inferno de toco e pedra, que isso, que aquilo, bem como não querendo mais ficar por aqui. Presumi: andou vendo coisa, lá do outro lado. Remexeu o corpo a noite inteira na cama e de manhã se declarou. Então, como eu achava que uma casa de comércio, aqui nesta biboca, nas lonjuras de outros viventes, era um destempero, ele deu de fracassar no serviço. Saía tarde, voltava cedo, sem dia que não desse queixa de qualquer coisa. Assim a vida da gente começava a desandar. Me sujeitei. Ele fizesse o que quisesse, eu disse. E sabe o que foi que ele fez? Vendeu trinta braças de campo, do melhor, lá naquela ponta que o doutor tá vendo, entre o umbuzeiro na beira da estrada, até a curva do rio. Vê só aquela fumaça. Me reponta uma dor, vendo aquilo. Era terra nossa de plantação, da melhor, e agora tem gente de dono, uns teatinos que apareceram com algum dinheiro na guaiaca. Vendeu. Vendeu pra comprar uma nesga de nada, terreninho pouco mais que um caíco lá na estrada real. Me sujeitei. Quem sabe até se não podia dar certo, não é mesmo? Era de gosto, e cabeça pra negócio, como eu já disse, não faltava. Assinei papel no cartório, morrendo de medo, porém quem manda é marido. O senhor, que sabe de tudo, me desmente? Claro que não. Aqui nesta casa, botamos agregado, plantando às meias, e se fomos pro outro lado do rio. Lá, onde que é, que tem mais gente vivendo.
Sem vaidade nenhuma, doutor, mas acho que me acertei muito bem detrás do balcão. Por que o Dinarte, sabe, pra princípio de conversa, foi dizendo que ele tomava conta era mais de negócio grosso, de compras, sortimentos. O resto ele deixou aqui comigo. Com três piás me puxando a barra do vestido, eu cuidava da casa e ainda dava conta da venda. Não posso me queixar daquele tempo: era tudo muito bem bom. A gente tendo saúde e preparo, não tem o que não faz. O doutor pode não me acreditar, mas até ler em livro eu já li. Como eu ia dizendo, pra roça tava provado que ele não tinha nascido. Tratei de me evoluir na lide nova.
Mas aquilo foi passando. Com três anos de comércio, o Dinarte deu pra ficar sorumbático. Me afligi. Cinco filhos, me acredita? Cinco filhos. Mesmo no dia que me nasceu a Nêla, ou a Clara, já nem sei mais, eu trabalhei. Cinco filhos e chegadinha do sexto. Quando foram buscar a parteira, eu ainda atendi o resto da freguesia. Me alembro como se fosse hoje. Parto, pra mim, era um caso de simplicidades, nunca dei fiasco, e a parteira chegando foi me encontrar medindo uma quarta de farinha.
Eu aflita, pensando: meu Deus do céu, o que é que este homem tem, agora? A casa tinha aumentado muito, a mais sortida por todo este sertão. O Dinarte, o senhor não conhece ele, conhece? Decerto que não. Ele é um homem de fazer qualquer um gostar dele. Fala formoso, com ideias, e é muito alegre. Do Matão, da Pedras Brancas, de todos estes cafundós descia povo pra negociar com a gente. Levantamos um barracão do lado da venda, e aquilo vivia cheio de fardos, de sacos, de quanta coisa é colhida por estas bandas. Que mais que ele queria? Questão comigo não haverá de ser, pois sempre me sujeitei com tudo, me debulhando em trabalho e sem dizer um ai. Eu, ia me queixar? Eu não. Tava uma vida nos conformes, bem montada. Até inveja duns e outros, que não iam pra frente, eu sofri. Coisa que não contava, mas sofri. Tanto foi, tanto que foi, e um dia ele falou: Queria um caminhão que fosse nosso, pra colocar as mercadorias na porta dos atacadistas e pra trazer de lá da cidade de um tudo por preço mais baixo.   
A ideia do caminhão, no princípio, me tirou um pouco do sossego. Uma coisa como aquela eu nem nunca tinha imaginado. Meu sistema é de fazer o que conheço, com as certezas. Podia botar tropeço? Eu não, que mal entrei umas vezes na escola e das modernidades nem desconfiava. O Dinarte ali, falando e falando. Notei que de tanto falar naquilo até mais animado ele andava. Então garrei e disse: “− Se tem que ser, tem que ser. Tu decerto sabe o que de dinheiro quanto é que precisa. Se a gente já ajuntou bastante, vai lá e compra.”
O doutor me acredita? O que eu digo é a pura verdade. No outro dia de madrugada ele se tocou de a-pé até o Cará, pegou um ônibus pra cidade e dois dias depois me apareceu guiando as reluzências de um caminhão. Não pense que o Dinarte seja homem de muitos lumes. Xobrega! O banco da escola não fez calo na bunda dele. Mas nunca vi cabeça que nem aquela que ele tem. Só sei dizer que um mês mais tarde, já tinha licença pra guiar e tudo o mais. Nem me preocupei com a venda do banhadinho, ali de baixo, onde a gente plantava arroz, pra completar o pagamento.
Me acreditando, pode até se rir do que eu conto, não me importa. Ainda não nasceu vivente capaz de garantir que nunca fez uma coisinha, uminha só, pelo menos, que por causa dela ele não encabula até só de pensar. Foi como aconteceu. Era quase todo dia aquele caminhão pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo, o Dinarte, eu e as crianças no desfrute, uma felicidade. O Dinarte buzinava em cima de carreta, dava susto em cavalo, com as faceirices de gritaria. Pra buscar uma cuia de mel na minha comadre Lucinda, pensa que eu ia de a-pé e com roupa caseira? Quisperança! Me enfeitava toda e pedia pro Dinarte pra me levar. Não era mesmo uma bobícia nossa? Foi assim no início, o espalhafato. Depois comecei a ver o mau costume, o nosso, em comentário na boca dos outros. Que onde é que já se viu. Me amoitei. Também, já tinha gozado o meu bastante, podia dizer que era uma coisa como qualquer outra. Para o doutor não interessa detalhe como esse, eu sei, porém, digo os tantos pra mostrar que nem tudo na nossa vida foi sempre como ficou sendo. Se fosse, eu era de aturar? Eu não. Tem gente com as excelências, assim que nem o doutor, instruído nas sabedorias, dizendo que um pedaço bom, se passado, carece de paga de mau pedaço. Sei lá, eu já vi de tudo nesta minha vida. Uns começam pagando o mau, e pagando o mau vão até a cova. Outros nunca se frontearam com maldade nenhuma. De tudo existe. Comigo, o que aconteceu não interpreto.
Pois olha, a gente se combinou de parar, nem me alembro se foi com a Nêla ou com a Clara, que já era uma enfiada de seis filhos, eu acho. Com a história do caminhão se deu o descontrole, e, quando eu vi, tava prenha da Clara, ou da Nêla. Uma das duas. Não, espera aí: a Clara casou primeiro e era a mais nova, me alembro direitinho. Pois então foi com ela, a Clara, que ficamos de parar. Não, minto, neste tempo a Clara já era nascida. Depois dela veio o Nem, isso mesmo, que é logo abaixo da Clara. Assim, como assim, decorria pelo melhor, a nossa vida. Deus dá, Deus sustenta, não é mesmo? Que viesse. Mais um não fazia grande diferença, pra quem já tinha seis.
Sucinto, tudo o que eu sei, é que mal nasceu o guri, o Dinarte carregou o caminhão até as grimpas e se tocou pra cidade. Viajada igual àquela, muitas ele tinha feito. Mas desta vez eu não posso me esquecer. Nunca mais. Foi o primeiro susto bem grande que eu tomei, a nossa reviravolta. Disse que vinha carregado de batata, negócio tratado com plantador das bandas de Camaquã. O doutor decerto sabe pra que lado fica isso, não sabe? Bem no exato, pra onde que é, desconheço. Tenho cisma de que é pra muito longe, mais longe do que Porto Alegre. Não é assim mesmo? Aprendi eitos de conhecimentos nos anos, estes. Nem de nome eu conhecia aquilo, como agora eu sei, por motivo que depois eu conto. Pois bem: ele saiu dizendo vou ali já volto já; descarrego, carrego e tou de novo em casa. Nem me bateu a passarinha, quando vi o caminhão se sumindo. Era coisa de se ver toda hora. Completou semana fora, e só daí que eu garrei medo. Soma de sete dias é tempo que dá pra varar o Brasil de ponta a ponta, eu acho. E eu solita com as crianças. Bati pra casa do meu pai, bem da zonza, querendo ajuda dele. Que saísse campeando, que fizesse alguma coisa. Uma semana, já pensou? O doutor, com perdão do meu desrespeito, garanto que tanto tempo fora de casa não é capaz de passar. Pois é. Fui pra um, fui pra outro, e todos diziam o mesmo, assim, que nos lugares, os tantos, quem é que vai achar um Dinarte com seu caminhão? Só tinha era de ficar quieta no meu canto, esperando enquanto esperasse. Esperei. Deu quinze dias quando o maldito apareceu de volta. Delambido, como se tivesse acabado de fazer a coisa mais comum. Eu tava que era um caveirame, de sofrida, de preocupação. Nem dormir eu dormia, por ideias que a minha cabeça ia remoendo. Com o guri novinho ainda, eu carecia de ajuda e descanso, não é mesmo? Olha, até o leite me secou nas tetas. Pois e sabe o que foi que o lampreio veio me dizendo? Que um tal de rio, nem sei dizer o nome, teve enchente que não deu passo, e ele ficou preso do lado de lá. Chorei feito uma condenada. Como chorei! Isto é, me representa que chorei muito, mas nem me alembro se foi bem assim. E quer saber de uma coisa? Só de contente porque ele tinha voltado. Acreditei em tudo que ele me disse, desde a primeira letra. Desandando uns anos, com mais vida na cacunda, ruminei por dentro e por fora os pontos todos, aqueles, e então foi que eu vi: que grande lorpa que eu era. Por quê? Já lhe conto o resto.   
Por uns dez dias, desque ele chegou, se pôs fuçando nestes morros, tudo quanto era biboca, arranjando carga pro caminhão. Me dizia assim: “− É, com a temporada que eu fiquei lá preso, perdi bastante dinheiro. Carece de recuperar.” Concordei que sim, coitado. A Lucinda, bem que eu via o jeito dela, meio arressabiada, cara de quem não quer dizer algum segredo. Não puxei pela comadre. Só me ocupava de ajudar o Dinarte no apronto da carga. Era um tempo ruim de inverno, paiol tudo nos assoalhos. O que foi, naquela carga, nem dá pra contar. Capoeira de galinha, fardo de alfafa, saco de feijão, rolo de fumo, saco de milho, caroço de mamona, flor de piretro, caixa com queijo, rapadura: tanta coisa, mas tanta coisa, que a gente até se riu quando ele ia saindo. Assim ele se foi. Mas antes me preveniu: Que era um carregamento desconforme, de colocação difícil, coisa e tal, e podia demorar um pouco. Demorou. Desta vez, doze dias. Em compensação, voltou tão faceiro com os negócios, os que tinha feito, que eu também fiquei contente,. E a sacarama de batata. No dizer dele, o melhor lucro era com batata, que o povo daqui, não tendo muita noção de plantio, prefere comprar fora. De Camaquã, que ele trazia, sempre de lá, cada vez.
Aí, por um mês ou dois, ele passou puxando carguinha pequena pra Santo Antônio. Daqui pra lá, de lá pra cá. Uma que outra vez, dependendo, pousava na vila. Pra quem já tinha passado o que eu passei, me sentia feito num céu.
Se durasse assim, a vida inteira, o meu destino mais das crianças havera de ser bem diferente. Garanto que sim. Pois e eu não tinha reza que não fizesse, com força e com fé, pra durar.
Hoje, o que me deixa desenxabida e com raiva, é me alembrar como eu acreditava em qualquer conversa, como se tudo fosse uma sinceridade. Me custou muito até aprender. Penei bastante. Imagina o doutor que por aquele tempo, mais ou menos agosto, o caminhão ficava o tempo quase todo parado. Era uma escassez, compreende? Eu, bom, eu achando que lá grande coisa não era, aquilo de puxar carguinha duas por mês pra vila, carguinha da competência de carreta. Mais gasto do que outra coisa, quando o movimento andava bem fraco. E eu ali, o dia todo detrás do balcão ou no trato de comércio por atacado, aquelas compras, todas contas. Decerto uma vez que outra reclamei, nem me alembro, pois vivente seja este ou aquele, de fortalezas, um dia também se cansa, não é mesmo? Só sei dizer é que o Dinarte começou a se coçar, e comichão no Dinarte bom resultado nunca trouxe. Eu sabia? Nada, era muito tonta pra saber. Um dia ele chegou e me disse assim que a temporada por aqui não era de leva e traz, com tanta falta de serviço. Que o caminhão, só no transporte do nosso negócio, sobejava em capacidade, e que parado era um desperdício. Calcula que aquilo, como ele me dizia, era bem como eu pensava. Pois então, e fazer o quê? Parece que já tinha tudo engatilhado, conforme ele falou de vez, de vereda. Que puxando carga por frete tratado, de uns para os outros, os que precisam e pagam pelo serviço, aí sim, podia ajuntar muito dinheiro. Coisa vista nas viagens, que ele tinha visto. E quem sabe se não é mesmo? Eu pensei.
O vagabundo era só disso que precisava. Botou a roupa na mala, disse que não esperassem tão logo por ele porque serviço dos outros tem governo diferente, que o destino é o algum qualquer um, pra onde for mandado. O Nem vingava direito, crescidinho, já em idade que os mais velhos podiam cuidar dele pra mim. Concordei.
Contando, ninguém me acredita. O Dinarte passou sessenta e três dias sem voltar pra casa. Sim senhor. Sessenta e três. É de espanto? Qual nada, isso foi só o começo. O meu finado pai caçoava comigo, me tratando de viúva. Viúva de marido vivo. Uma troça assim não calhava bem, e se ele dizia aquilo, é porque nunca tinha engolido o Dinarte. No princípio sofri muito a falta dele, e com ninguém podia me consolar. Nem com a Lucinda, que só sabia dizer ofensa contra o meu marido. Sete filhos pra cuidar, e o negócio todo por minha conta. Descaía na saúde e nas forças. Uma tristeza trancada na goela, um desconsolo. Até que quando a gente nem esperava, ele apareceu de novo. Eu tava pesando uns quilos de batata na balança do balcão e ouvi o rumor conhecido. Me fingi que nem ouvia, palpitando o coração, enquanto uma porção de gente saiu correndo lomba a cima, pra de lá ver se era ele mesmo. Eu, pelo barulho sabia. E fingindo que não, atendendo o freguês bem que nem, bem que nem. Ele parou no terreiro, povaréu de em-volta, e se sorrindo entrou na venda. Só o freguês comprando e eu vendendo, ali dentro. Sem parar de se rir, o Dinarte disse assim: “− Então bom dia, não é.” Ai, que vontade de chorar, de moer a cabeça dele a pau, de me abraçar com ele mesmo na frente dos outros. Uma saudade tão doída, seu doutor, de tanto sofrimento, que por mais que eu fizesse, me descontrolei. Se embaralhou tudo na minha cabeça. Disparei pra dentro de casa chorando, gemendo uns gritos de aflição, por causa daquela dor tamanha. Alguém saiu espalhando que eu tinha endoidado, com a cabeça gira de só ver o meu marido. Bobagem, aquilo foi das emoções, o descontrole. Ele botou os guris pra dentro de casa, fechou tudo quanto foi porta e janela, trancou a venda, e naquele resto de dia não saiu mais de perto da gente. Pela cara dele, de olhos baixos, se via que também tinha sofrido. Só de noite, quando já se podia conversar na calma como antigamente, ele desamarrou os pacotes de presentes, abriu a mala e mostrou o dinheiro, montanha de tanto. Ah, que noite! Nem é bom falar nisso.  
Então foi mais de uma semana, o Dinarte falando destrambelado, recontando pra cada um que aparecia, sobre as cidades que ele viu, os tatus na estrada, os ganhos, tudo, tudo, as muitas dificuldades. Já lhe contei como o Dinarte é um conversador de muita sustentação, não é mesmo? Dava gosto se parar escutando, se sorrindo, e era um tempo bom, a família toda completa em casa. Mas foi só isso. Tomou folgozinho de descanso, curtinho como descanso de cusco em sombra na beira da estrada. Só o tempinho. Arrumou a mala e ganhou de novo o rumo do mundo.  
Dizer que me acostumei, não é o bem certo de dizer, com os sumiços que ele tomava  cada vez mais. Tendo de aturar, por ser o meu marido, aturava, uma coisa que não era por gosto nem do meu agrado. Tinha noite que eu, dormindo sozinha, este destino meu, me acordava a hora que fosse e não segurava mais a cabeça de pensar que ter por marido um cigano que nem era o Dinarte, parecia castigo. Então jurava pra mim e perante Deus que na minha cama ele não se deitava mais, e, se não atiçava os cachorros nele, quando aparecesse, era por ser o pai daquelas crianças. Aceita um chimarrão? Mando aquentar água num instante. O doutor veio pela estrada real? Pois então passou pela casa de comércio que foi nossa. Uma largona pintada de azul, pouco antes do passo. Ali que eu ia me finando. O Dinarte fez tudo aquilo da imaginação dele, como ele queria. Até se amigar com o caminhão, como dizia o meu finado pai, porque depois, não se interessou por mais nada. Nem perguntar como é que iam as coisas perguntava mais. Vinha pra casa quando não andava bem, meio acabado, meio murcho, como bicho acuado, e ficava aqui só o tempo de me botar mais um filho na barriga. Quinze dias, um mês, e se apinchava pra onde que ninguém sabia.
Hoje eu tenho treze filhos, doutor, que eu criei sozinha, e que ele nem de nome conhece todos. Os que já tinham vindo depois daquela mania, se botavam no mato feito bugres, de só ver o pai. Eu achava que era um bem-feito, mas ficava triste de ver tudo assim: eles nem sabendo quem o Dinarte era. Porque o dinheiro, os presentes e os agrados, foi como aconteceu no início. Com dois, três anos, ele ficou demudado que nem parecia o mesmo. Dava a bênção que os mais velhos pediam e não olhava na cara deles. O Dinarte conversador e alegre, o que eu tinha conhecido, nunca mais voltou.
Agora eu tenho sete comigo, sendo o Modesto este aqui, o caçula. Completa em agosto quatro anos. Os outros seis se casaram e andam por aí no trabalho de peão, que pra todos a terra não dava sustento. Por isso, outros filhos não quis. O doutor me vendo assim pode pensar que já sou velha acabada. Não precisa encabular, que eu conheço como são as coisas. Mas garanto que pra velha ainda não sirvo. Ando é na força de mulher. Se não quis mais filhos, foi porque a vida empiorou muito. A casa de comércio eu vendi pra não quebrar. De em-volta com a filharada, lidando com doença de tudo quanto é tipo, os gastos, e sem notícia do Dinarte, que até ano e meio passou sem aparecer. Despachei os agregados, vendi o comércio e vim de muda pra cá. Muito tempo mantive a esperança de que o Dinarte se cansasse da vida cigana e ficasse de vez com a gente. Perguntava pra ele se não era assim, que um dia se acomodava, e o gaudério fazia cara de boi manso, olhar fugitivo, sem dizer que sim nem que não. Aquilo me esperançava.   
Uma vez eu me decidi e arrochei com ele. Perguntei até quando que ele pensava em viver sem morada certa. Ele garrou coragem e me disse que morada certa já tinha desde o princípio, que ficava mesmo em Camaquã. Ela, a outra mulher dele, era uma viúva ainda nova, mãe de cinco filhos, todos cinco do marido finado. Ai, doutor, ouvindo aquilo me desamparei. A Lucinda me dizia que eu deixasse de ser boba, que homem nenhum se sujeita sem mulher por tanto tempo, mas eu não querendo acreditar. Depois o próprio chega e confirma. Passei uma temporada pensando que o único remédio era me afogar no rio, e só de pensar nisso eu me botava a chorar como se já tivesse acontecido. Foi aí que o negócio começou a decair. Mantinha força pra aguentar tudo? Eu não.
Quando fiquei sabendo que o doutor ia passar por aqui, fiquei muito contente, porque tinha uma pergunta pra lhe fazer. Por isso mandei o recado. É uma pergunta que me vem remoendo faz um bom tempo, um meio ano.
Veja bem o doutor que esta terrinha é o meu único sustento, com o adjutório que os guris me dão na roça. Pois não é que o Dinarte me apareceu por aqui um dia, dizendo que tinha perdido tudo, que andava mas era arruinado, carecendo de ajuda pra se recompor? Bem assim como tou lhe contando. Queria voltar comigo. Uma tentação. Eu, já meio ressuquida por dentro, na falta de uso da minha força de mulher, quase concordei. Mas, pensando bem, eu disse que não. Que ele agora fosse procurar ajuda com quem ele tinha amparado todo esse tempo. Me respondeu que por lá já não tinha mais jeito, que na pobreza que ele andava nem a roupa dele a tal viúva queria mais lavar. Me deu pena, pois de maldade e de vinganças não sou de tenção. Me deu muita pena, pois era o meu homem que eu tava enxotando. Aí eu disse que precisava me dar o respeito perante os meus filhos, que aquilo já tinha prometido a eles. O Dinarte só disse assim: “− Se eles te botam coisa na cabeça, e tu dá ouvido pra eles, muito que bem. Mas tu ainda vai te arrepender.” Então eu retruquei:”− Só me arrependo é de ter casado contigo.”
Depois disso, volta e meia ele vem rondar a casa, aparece por aqui conversando direito, dentro das leis, querendo saber como é que vão as crianças, como é que vai a minha saúde, tudo coisas que nunca mais se alembrava de perguntar. Posso atiçar os cachorros num homem que foi o pai de treze filhos que eu tenho? Claro que não.

Acontece que, agora por fim, o Dinarte anda falando muito que este ermo aqui não é lugar de se viver, que ele já se aprumou na cidade e quer levar a gente pra morar com ele. É livre e sem compromisso, outra vez, mas sente falta de uma família que é a dele. Bom, falta do Dinarte eu também sinto, e acabei dando resposta que sim. Daí ele pegou e me disse assim que então se vendia tudo isto aqui, mor de aumentar o negócio que ele tem em Santo Antônio. Ah, não, aí não, foi o que eu respondi. Saiu daqui feito um tinhoso de brabo, dizendo que era só querer ele vendia tudo, me botava pra fora, que até comprador tava arranjado. Nada disso ele fez até agora, nem por aqui voltou, mas me deixou preocupada. Muitos dizem que não, outros dizem que sim. Agora o senhor, que é doutor, me arresponde: Ele pode fazer isso comigo?

(Conto do meu caderno de aprendiz Na força de mulher) 

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