Na casa de minha avó
Alexandre Nobre
Na casa de minha avó, havia um quintal
antigo e comprido, salpicado por uma constelação infinita de árvores.
Chamava-se casa de minha avó porque meu avô tinha morrido faz tempo, quando eu
ainda não me lembrava das coisas.
À direita, a casa estendia-se até quase a
metade do terreno. Depois, havia o quartinho de guardar ferramentas e uma
goiabeira quase esquecida, lá no canto, longe de tudo. Mais para o fundo,
ficava o rancho dos empregados e um cercado onde moravam galinhas, marrecos,
patos, e um papagaio trepado num camarote de galhos. O papagaio tinha uma
correntinha que o prendia à árvore. No quartinho de guardar ferramentas eu não
entrava nunca, pois vivia com medo do barulho dos bichos e das coisas que se
moviam por lá. Do outro lado, à esquerda, havia um universo híbrido e
multicolorido de árvores: pés de laranja, mexerica, manga, goiaba, jabuticaba e
uma outra com a cara carregadinha de amoras. Entre esses dois corredores
contínuos, abria-se um caminho de terra batida, coberto por cascalhos, onde
agora dormiam os carros, mas antes havia os cavalos e a charrete de meu
avô.
Na frente da casa, uma varanda e um jardim
de flores. Duas cadeiras de ferro, dessas de fitilho plástico, estavam sempre
prontas para o descanso após o almoço ou o jantar. Uma cadeira era verde; e a
outra, vermelha. Eu estava sentado numa das cadeiras, as mãos em V, apoiando a
cabeça, olhando para a rua vazia. Era um desses dias quentes, de início de
verão, perto das duas horas da tarde. Tudo estava muito quieto, as janelas
estavam fechadas, e não havia ninguém andando pelas ruas. Até os cachorros
pareciam ter desaparecido. Eu devia ter seis ou sete anos de idade e costumava
olhar para a rua deserta, sem nenhum pensamento certo, como se adivinhasse que
qualquer coisa importante ainda iria demorar muito a acontecer. O sol forte
castigava o telhado das casas, e do asfalto subia uma fumacinha quente, mas não
havia nada que eu observava em particular. Apenas olhava para a lentidão
daquela tarde silenciosa.
Então, vindo de uma das esquinas, começou
a crescer um som arrastado, de borracha grudando no asfalto pegajoso. Logo
apareceu um menino, pedalando uma bicicleta. Era um menino forte, um pouco
maior do que eu, e vinha pedalando muito lentamente a bicicleta, parecendo
derreter sob o duro sol de começo de verão. Vestia short, estava descalço e sem camisa, e muito, muito sujo. Mesmo o short que usava era velho e cheio de
furos. Ele veio passando pela rua devagar, observando-me com os olhos firmes,
enquanto atravessava em frente a casa. Não sei bem por que, levantei-me e me
aproximei do portão olhando por cima do muro baixo. O menino pedalou por mais
uns dez metros e então parou. Fiquei olhando para ele e ele também olhava para
mim. Não havia nada de especial a ser visto, apenas dois meninos encarando-se
numa tarde quieta e tranquila. Então ele se abaixou, pegou uma pedra e
disparou-a lá de longe, em minha direção. Fiquei imóvel, vendo o movimento da
pedra no ar. A distância era muito grande, mas a pedra veio voando bem alto,
fez um meio círculo para baixo e caiu com toda a força sobre minha cabeça.
Levei a mão até onde a pedra havia batido, perplexo, sentindo muita dor. O
menino permaneceu me olhando de onde estava. Quando percebeu que não haveria
contra-ataque, calmamente montou em sua bicicleta e continuou pedalando pela
rua.
Permaneci ainda alguns minutos parado no
portão da casa, sem entender direito o que havia acontecido. Depois atravessei
o jardim e a varanda, entrei pelo corredor comprido, e fui me trancar dentro do
banheiro para chorar sem que ninguém percebesse.
Quando saí, o
mundo tinha mudado.
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