sexta-feira, 22 de julho de 2016

CONTOS CORRENTES

CONVEXO E CÔNCAVO
(Edmar Monteiro Filho)
                                                                                               
Ordem.                                                                  
A saúde ruim, umas dores que ninguém acha. Problema sério no trabalho. Até se gostam, mas o namoro não se acerta. Comprou carro: bichado. Cansou de discutir com a mãe antes de aceitar a ideia da rezadeira.
Seu lugar.
A mulher é simpática. Manda entrar, oferece bolo. Presta atenção na história como se escutasse bem. Diz que reza espinhela caída, vento virado, ventre derrubado, cobreiro, olhado, fogo selvagem, mas o caso dele é outra coisa. Foi mulher que chorou por ele em cemitério. Sem querer, coitada, mas alma vadia ouviu e pegou a dor pra ela. Agora judia dele.
Sem rir.
Mariana é bonita, mais que bonita; mulher inteligente, como gosta. Mas a coisa não ia bem na cama e aí não há amor que aguente. Veio outra Mariana, um ano mais velha e essa sim. Então, se tudo ia bem, por que de repente não ia? Não era saudades da outra, não era enjoo da uma. Era nada, mas era alguma coisa. Pensou em ir ao enterro do avô da primeira, para dar pêsames, ver outra vez o que sentia, mas preferiu não arriscar.
Sem falar.
Mariana esperou que sim. Por isso a decepção, mais a tristeza da perda. Duas saudades: uma pronta, outra por fazer. Durante o sepultamento, chorou à vontade, um olho para cada uma.
Mão direita.
O avô extraordinário: velho robusto, falador, bom de copo. Barqueiro no Japurá, nos anos 70. Daí, histórias da floresta, de contrabandistas, tribos perdidas. Morreu de teimosia, que médico nenhum prestava, melhor sua reza, ervas.
A outra.
Contou sobre a índia Suigue, na fronteira com a Colômbia. Velha, de uns sessenta, setenta, idade escondida como todo índio. Chegamos debaixo de aguaceiro: até aí, nada de mais. Deixamos o barco, furamos uns restos de mata derrubada, no abandono, até a aldeia. Nem isso, um barraco só, onde viviam os quatro que a varíola perdoara: a mulher, um sobrinho doido, um casal de irmãos de uns dez anos. Mais uns bichos murchos, uma roça boa e as coisas que os missionários deixavam. Nem FUNAI e governo, nem grileiros, nem missionários mais. Só os “Indianas”, de bloquinho, máquina fotográfica e maleta. É que os quatro últimos de uma raça lá. Queriam levar os meninos, cuidar e depois cruzar, feito bicho. Até eu sabia que aquilo não ia prestar: primo com primo já é doença, imagine irmão. Fora o pecado daquilo. O Indiana chefe gravou Suigue falando as coisas na língua dela, que o sobrinho não entendia – nem nada – e os meninos não sabiam falar. Quando ela ouviu a voz dela gravada, chorou de alegria: era alguém para conversar.
Pé esquerdo.
Faz lembrar a história de outro avô, o avô de alguém, que foi batizado com o mesmo nome de um irmão mais velho, morto durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918. O homem viveu por oitenta anos, mas passou a vida toda falando no espelho com o irmão morto.
O outro.
Os espelhos são colocados nos elevadores para diminuir a sensação de espaço fechado. O espelho expande, faz esquecer que é um caixote, puxado para cima e para baixo por cabos, enquanto se ajeita o cabelo, examina a roupa ou conta os buracos no rosto.
Bate palmas.
Certos edifícios têm ascensoristas. Há aqueles ensimesmados em suas caixas pessoais. Há os polidos. Há os conversadores: térreo, bom dia; primeiro, o tempo; quinto, daqui não se sabe se é dia ou noite; vigésimo oitavo, a saúde; décimo primeiro, fulano que sumiu; vigésimo quinto, fulana promovida; quarto, sicrano casou; décimo quarto, acidente; terceiro, férias; nono, o melhor jogo do ano. Térreo. E há os conversadores que contam histórias. Em princípio para o advogado, que ouve por quatro andares o caso da enfermeira que trabalha no hospital ao lado e cuidou de um morador de rua, diagnosticado com meningite bacteriana, estado grave, encostado no isolamento, ninguém queria saber, faltava traje, luva. Ela fez juramento, tinha que cuidar. Improvisou equipamento de proteção, engajou os médicos, insistiu, deu carinho. Desce o advogado, mas a moça da contabilidade é só atenção. Atender essas pessoas sem os paramentos é risco demais, enfermeira não ganha pra isso. É verdade. Ela precisou pedir ao diretor clínico. Mas na troca de plantão o paciente ficava largado, sujo. Veja que implicavam com o coitado por causa da atitude dela. Entra o chefe do RH e pergunta se pode encomendar duas bandejas de nhoque recheado para o domingo. A mulher dele faz um nhoque que vocês não vão acreditar. Não provaram? Melhor anotar, não vai esquecer? Desce. A moça da contabilidade continua ali. A enfermeira não desistiu. O paciente fraco demais, não reagindo ao tratamento. Não conversava. Parecia que não queria mais viver. Mas ela firme. Chega o andar da moça. Depois você me conta o resto, que agora fiquei curiosa. O elevador segue cheio. Prossegue a história em respeito aos demais. E ela se dedicou demais, até fora dos seus plantões, levar uma coisinha ou outra, ler para os ouvidos dele, atenção para o ânimo caído, implorar para o orgulho dos antibióticos. Até que surgiram uns primeiros sinais de reação. Entram dois falando alto. Ele levanta a voz para continuar. Daí a coisa foi depressa. Parece que ele resolveu querer. O office-boy quer saber se o cara não tinha família. Não, ninguém. Ficou no hospital mais de mês, no morre-não-morre. Daí foi sarando, graças a ela. A moça da copa pergunta o nome da enfermeira, que ela conhece quase todo mundo ali no hospital. Ele não sabe. Desce uma porção no setor jurídico. O office-boy fica no elevador para ouvir o resto da história. Ele se curou, mas não tinha para onde ir. Ela não queria que ele voltasse para a rua, pegou afeição. Arranjou um lugar para ele morar, mas logo, com umas duas semanas, ele foi morar com ela. Boa história. Mas a gratidão estragou tudo. Como é que a gratidão estraga? Ele responde para os dois da manutenção que ela descobriu depressa que tinha cometido um erro, levando para morar com ela um paciente sem família, que ela mal conhecia e tinha cuidado no hospital. Claro. Claro o quê? Que é erro. Ela gostava dele, mas ele só queria saber de agradecer, de retribuir. Ela salvou a vida dele e ele queria salvar a dela. Salvar como? Pois é. Descem os dois da manutenção, sentenciando. Desce o office-boy e os três engravatados que ele não conhece. Para salvar uma vida, ela tem que ser ameaçada, é o que ele diz para o elevador vazio. Isso é fácil de conseguir.  
Pirueta.
Quem vê ameaça em tudo, até num presente de amigo. O bonsai com a mensagem enterrada entre as raízes, que deve permanecer exatamente ali, desconhecida. Mas o vaso com a arvorezinha plantada na janela da curiosidade, depois da desconfiança e, por fim, do receio. Foi descuidando, como que sem querer. Seco, tentou salvar, como se quisesse. Não havia mais porque não cavoucar o vaso, arrancar o pacote em plástico mínimo. Dentro, um origami, pássaro perfeito. Desmontado, as palavras no verso do papel brilhante: “A vida é frágil.”
Trás para frente.
Um susto, um pé de vento, um malquerer de inimigo ou amor mal resolvido, um azedo e um quente misturados, uma inveja, um descuido de si basta.
Queda.
Mas quando acomete o mal da saúde e o mal da vida, do amor e do dinheiro, não convém buscar a medicina para o corpo e contar com a paciência para o resto. Se tudo vem junto, a origem é uma. Então, convém buscar a cura una, só, para tudo. Mas vá convencer o menino de que só uma boa rezadeira resolve.
Ordem...

Edmar Monteiro Filho nasceu em São Paulo, em 1959. Formou-se em Ciências Biomédicas pela Escola Paulista de Medicina em 1980, ano em que começou a escrever regularmente. 
Publicou seus trabalhos em inúmeros jornais, revistas literárias e antologias de concursos, tendo sido premiado por diversas vezes nos gêneros conto e poesia. Em 1993 lançou Este lado para cima , livro de poemas, edição do autor. Atualmente reside em Amparo/SP.
 Da segunda orelha de seu livro Halma Húmida



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