ESSA COISA TOLA
DE RENASCER
Você sabe que
não vai chegar no prazo. A carga que está levando precisa chegar ao porto no
máximo em doze horas. As rodovias estão cheias; todos se arrastam à sua frente,
querem chegar, mas pelo ritmo parece que não.
Esse deserto.
Nasceu pra ser assim, uma grande mesa de sacrifícios, talvez, de onde tudo
foge, onde só restam lagartos, cobras e gaviões. Esse deserto nasceu pra ser
isso, você pensa, e quando chove é assim, uma tempestade. Devaneios. Agora, na
margem esquerda, uma carreta tombada, dezesseis rodas pro ar, isso atrasa tudo.
Polícia rodoviária tentando fazer a serpente andar em ordem. Alívio. O motor
geme de novo no asfalto. Você olha em redor, sua câmara de tédio; mas, onde
mais se sentiria em casa? Se desliga o motor por uma semana, sua mulher e os
dois filhos lembram-no, por a mais b, que seu lugar é a estrada. Maldição, você
pensa.
Os santos do painel não gostam que você fale assim. Poderia ser pior,
eles lhe dizem sempre. Se sua carreta para no acostamento agora com alguma
bronca no motor, você tá frito; poderia ser pior, os santos repetem. Você olha
os relâmpagos prateando tudo, e tudo o que deseja é parar e dormir feito gente
normal, feito um caminhoneiro maduro e metódico. Mas as coisas nunca foram assim,
ou pelo menos não se dão assim quando você toma aquela mistura inocente de seis
gotas de Benzitrat, uma dose de conhaque e uma caneca grande de café. Você
dirige com os olhos congelados por quinze horas, depois desaba por um tempo
equivalente e perde as melhores horas da estrada. Põe tudo a perder. As nuvens
se formam, a tempestade cai e você não pode mais se dar o luxo de escolher, tem
que rodar. Aí, as coisas vêm todas de novo em seus olhos.
Agora, um show
de fogos coloridos tentam acabar com o tédio. Vagalumes, fadinhas, quem sabe,
cruzam o para-brisa e descem com a chuva que açoita tudo. Não deviam estar aí,
você já dormiu o bastante e a mistura já não deveria ter mais efeito. Mas essa
coisa sempre volta na noite seguinte, é sempre Sua mulher está grávida de mais
um e só chora; e com os olhos ― só com os olhos ― pede que você fique mais uns
dias. Isso também fode com seu juízo. Ela assim, sem saber, o empurra de volta
pro asfalto com toda força, toda vez. É por isso que você tá aqui, porque sabe
que lá está ela, com dois no mundo e um na barriga e todos sob um teto que já é
seu e isso por si deveria ser uma grande vitória, mas é daí? Ela no fundo
despreza você porque seu terno e gravata de fato são jeans, boné e camiseta.
Uma pergunta o visita cada vez mais: o que ela queria de você com o passar dos
anos? Que largasse o volante e assumisse uma chefia de pessoal? Era. Mas ela
não sabe que desejar isso é o mesmo que não amar você.
Mais clarões
iluminam as serras, mais vagalumes caem do céu. Você vira a cabeça de um lado
pra outro e logo os vagalumes são minicometas riscando o ar. Agora a chuva
engrossa mais, diminuem os carros na pista, mas você não pode acelerar. Outra
vez sua mulher na mente. No que ela pensa em transformar seus filhos? Sempre
que chega da estrada, você olha nos olhos deles, não parecem com nada, não têm
expressão. São crianças sem a sua marca e isso sempre o intrigou. Com certeza,
isso é obra de sua mulher; ela não vai permitir que tenham a mesma vida que
você. Por isso, a carreta e a estrada são sua casa; elas o aceitam. Quando você
retorna por sete dias, sua mulher o recebe feliz e fantasia que você voltou pra
ficar, mas com os dias ela vai fechando a cara e ensopando os olhos pra você.
Quando ela fala ‘fique’, ela diz ‘nasça outro’. Mas não sabe que se você
ficasse nunca mais poderia chegar perto do asfalto ou de uma carreta, não
suportaria. Ficar mais uns dias é o começo do fim, ela também não sabe disso;
ou talvez torça pra isso porque acredita nessa coisa tola de renascer. Você
poderia até tentar, mas no fundo sabe que cedo ou tarde sua memória esmagaria o
sonho ingênuo e maldoso.
Mais chuva,
seus olhos não podem piscar; eles varrem a imensidão escura e sua chuva
cintilante. Querem se esconder por detrás das pálpebras, mas você não permite.
São Bento no painel, senhor dos ermitões, guarda minha solitude, atiça meus
olhos mais ainda, pra que não fechem. Você reza pra passar o tempo. São
Cristóvão, guardião dos asfaltos, segura os eixos de minha carreta. Cruzamento
com uma estadual. Agora sua mulher aparece no acostamento segurando um terno
escuro bem passado. Seus meninos estão de costas pro asfalto. O motor ronca
mais grave, você passa devagar e os vê na chuva; depois olha pelo retrovisor e
eles já não estão mais. O mundo passa debaixo de suas rodas.
Agora você está
aí, nessa bolha de fantasias, com seus santos decanos da bondade e redenção da
carne. Lá fora, seu asfalto, a noite e o desespero dos homens. Aí dentro, o
seu. Que novidade o aguarda depois daquela curva, com o raiar da primeira luz?
Os vagalumes
continuam caindo do céu, são fadinhas talvez. Você segue, ainda falta muito,
doze horas pelo menos.
*Dênisson
Padilha Filho (1971) é baiano. Escritor e roteirista de audiovisual. É
mestre em
Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. É autor de
O herói está de
folga (Kalango, 2014, contos), Menelau e os homens (Casarão
do Verbo, 2012,
contos e novelas), Carmina e os vaqueiros do pequi (2003,
romance) e
Aboios celestes (1999, contos). Participou de algumas antologias e
tem textos
publicados em diversas revistas literárias. Foi vencedor do Prêmio
Internacional
Cataratas de Contos- 2015. Mantém a coluna CONTO AFORA
em seu blog.
Em 2016 lança
Trilogia do asfalto (Editora P55, 2016, contos).
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