Paulo Jorge
Alexandre
Nobre*
Mas aquelas crianças ali, no meio
da rua, aqueles meninos armados, o que estarão fazendo aqueles meninos? Aqueles
guris descalços, vestidos com capas e máscaras, empunhando espadas de plástico,
eram soldados? Eram guerreiros?
Uma criança igual às outras
crianças: companheira de fantasias e brincadeiras, de corpo magro e tronco nu,
mas com sotaque e sentidos diversos.
Os garotos haviam formado um
corredor e, dentro dele, Paulo Jorge se contorcia. Batiam sem piedade. E eu,
junto a eles, mais me deixava levar pelo êxtase incendiário do momento, a
alegria de fazer parte de um círculo, uma confraria de iguais, unidos para
punir um diferente. Estávamos ali reunidos naquela tarde, aqueles meninos no
meio da rua.
E coube a mim, num momento de
iluminação fortuita, a brevíssima visão de Paulo Jorge fugindo. Seus grossos
óculos escuros a se estilhaçarem contra o asfalto quente, aquela expressão
febril de medo e desespero, os olhos frígidos subitamente revelados: você já
olhou dentro dos olhos de um cego?
Paulo Jorge havia chegado há
pouco no Brasil. Sua família, vinda de Angola, fugira da guerra. (Lá havia a
guerra dos adultos, aqui encontramos a das crianças, diria mais tarde sua mãe à
minha).
Foram morar no sobrado do final da rua, em cima do bar do Ramires, uma
casa grande, confortável.
Vieram ele, o pai e a mãe: uma família inteira de
cegos. (Depois chegou uma avó que conseguia enxergar, mas a velha, já meio
louca, falava tão rápido e carregado de sotaque, que ninguém entendia).
Detestamos Paulo Jorge desde o
inicio: não o deixávamos participar dos jogos de futebol, ignorávamo-lo na
escola, e organizávamos excursões para surrá-lo todos os dias.
De todas as maldades que
aprontávamos, relembro esta, a preferida: um de nós se dispunha a ajudá-lo na
volta da escola, mas guiávamo-lo para outro lado, perto de um riacho ou um
matagal fechado, e o largávamos por lá, atrapalhado pelo ambiente hostil,
enquanto, escondidos, morríamos de dar risadas. (No auge destes momentos de
gargalhadas, por vezes eu me sentia mal. Como se já intuísse o terror que me
acompanharia, pelos próximos anos, a lembrança destes absurdos).
Mas se eu já percebia o horror da
situação, aos poucos fui entendendo também a dimensão e a firmeza de caráter de
Paulo Jorge. Cumpria, com extraordinária aceitação, a via-crúcis daqueles hediondos rituais de passagem. Necessários para
ele, mas também para toda a sua família de estrangeiros e cegos, invasores de
nossos mundos. E mesmo para nós, seus bárbaros carrascos locais.
Contudo, houve o dia em que
ocorreu uma tragédia na rua: a situação que envolvia um crime. Alguém (o pai de
um amigo?) esfaqueou outra pessoa numa briga de bar, e eu fui levado à casa de
Paulo Jorge, para passar a tarde longe da confusão. Hesitei, ante a porta de
entrada, com receio de encontrar um cenário de imundices (meus amigos e eu
imaginávamos uma casa tumultuada, cheia de porcarias e sujeiras espalhadas por
todos os cantos - no que éramos discretamente encorajados pelos risinhos
cúmplices dos adultos). Mas o que encontrei foi um lugar extraordinariamente
organizado, uma atmosfera tranqüila de paz e harmonia. Ali, ao contrário do que eu fantasiava, as
horas transcorriam serenamente, sem sustos, como água sobre um córrego manso.
Mas por esta época eu já me sentia amigo de Paulo Jorge.
Sim, por esta época eu já me sentia amigo de
Paulo Jorge. E já vão sem freios os dias desde aquela tarde quente, em que o
surrávamos no meio da rua. Os dias de
minha cegueira sem fim.
Foi num pequeníssimo momento: ele
tentava fugir, esbaforido, os óculos escuros espatifaram no asfalto da rua, e
eu vi seus olhos cegos encharcados de medo. E foi só. O suficiente. Depois,
quando todos foram para suas casas, eu voltei até a rua, peguei os óculos
destruídos do chão e segui até o sobrado de Paulo Jorge. Passei um longo tempo
(acho que o resto do dia) sentado em frente ao portão, olhando para a campainha
na parede, sem coragem para apertá-la. Então empurrei os óculos para dentro da
garagem e fui-me embora.
Eu jamais tive coragem de apertar
aquela campainha e pedir perdão, Paulo Jorge.
Mas nunca é tarde.
*Alexandre Nobre é escritor premiado. O conto "A mangueira da nossa infância", que dá nome ao seu primeiro livro, foi vencedor do Concurso Nacional Luiz Vilela 2008, em Minas Gerais.
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