HILDA
Lúcia
Bettencourt*
Um nome assim,
enganador, começado por uma letra muda, só para atrapalhar na hora de aprender
a escrever. Uma letra tão cheia de volutas, arabescos, que demorava a ser
desenhada e exigia uma pontinha de língua entre os lábios, mãos segurando firme
o lápis, com cuidado para não quebrar a ponta, nem deixar que ela perfurasse o
papel. Qualquer movimento em falso e a letra perdia seu arredondado,
angulava-se feia e agressiva, denunciando sua incapacidade.
Era tão difícil!
Depois do H, um i
agudo, assustado com aquele pingo de chuva que lhe caía sobre a cabeça, apesar
de se refugiar na marquise exagerada do h, Hi, faltava agora um l, que era quase uma versão agigantada do i, e que era preciso dosar bem para não
ser confundido com seu antecessor. Hil.
Acontecia, porém, que as letras se reuniam e juntavam a seu revés. Não era sua
intenção unir as consoantes e formar uma casinha para sua escassa vogal. Nem
ela gostava que, unido ao H,
seu l quase se transformasse num t. Será que conseguiriam distinguir?
Seguia-se o
remanso do d. Gorducho, ele podia
se destacar e parecer honestamente consigo mesmo. Uma letra com seu próprio
som, seu espaço bem delimitado, a mãozinha se estendendo para segurar seu irmão
menor, o a, que nunca o
alcançaria, mas que o seguia tão fiel quanto um cachorrinho. Hilda!
Depois de tanto
esforço, era preciso ainda caprichar no sobrenome. E todo o cabeçalho. Nome,
data, matéria, colégio e série.
Uma a uma
surgiam as palavras e os números, cada qual em seu lugar, separados por vírgulas
e pontos. As letras maiúsculas davam mais trabalho, mas, em verdade, eram as
mais bonitas. A, B, C, D, E, F, G, H…
Quando as comparava, até que sua inicial era das mais simples, embora fosse a
mais enganadora, pois aparecia só para constar, não sendo soprada nem aspirada,
nem vibrada de modo algum. Depois o I, e o J,
tão iguais que ficava difícil distingui-los.
O K era usado em abreviaturas, em
alguns poucos nomes, era uma letra em extinção. O L
se mostrava orgulhoso como um caracol que carregasse sua casa, assim como o M e o N, que
pareciam querer ocupar mais espaço do que mereciam. O O,
coitado, não tinha jeito. Era sempre aquela carinha de espanto, principalmente
quando vinha seguido do mudinho, o pequeno h
arrepiado de medo que o gordo companheiro perdesse o equilíbrio e, tombando
para a esquerda, o esmagasse.
P, Q, R, S, T, procuravam solenemente se fazerem
mais importantes que os pequeninos p, q, r, s, t,
que se confundiam com facilidade com letras irmãs.
U,,V,W,X,Y eZ
eram desenhos abstratos, usados como realces de palavras cotidianas,
tais como “uma” e “vovó”, ou serviam para complicar outros nomes próprios Wilson, Xavier, Yeda e Zaíra,
todos da família, apreciadora de iniciais rebuscadas.
Cabeçalho
terminado, podia começar a fazer os deveres de casa. Era preciso copiar os
problemas do livro, armar as contas, escrever as respostas por extenso. Seu
colégio era como os outros da época: não facilitava nada para os alunos. As
lições de casa demoravam horas para serem feitas, e roubavam o tempo das
brincadeiras que eram todas lá fora, se o tempo estivesse bom: queimado, pique,
pular corda ou fazer roda, quando havia companhia. Se não houvesse, gostava de
andar de balanço, fingindo que estava voando.
Nos dias de
chuva, ficava dentro de casa, desenhando. Ou lia algum dos livros com gravuras,
soletrando devagar até compreender o que as letras iam representando. Ajudada
pela gravura, a-v-e se transformava numa beleza de um pavão, que conhecia de
ver no jardim zoológico e que sabia ser uma ave porque assim lhe tinham
informado. No entanto, ela não compreendia, ainda, o que é que a ave-pavão
podia ter em comum com as aves-galinhas de pescoço pelado que eram trazidas
para a casa para serem transformadas em comidas cheirosas e deliciosas.
Cansada das tarefas,
jantava com apetite a ave-refeição, conversando com o padrinho, sério, bondoso,
que não se importava de lhe dar comida na boca. E, depois do banho morno, que
tinha de ser “rápido, menina, para não se resfriar”, vestia a camisola cheirosa
e se deitava na cama, para escutar a história que a Dindinha contava, sempre a
mesma, sempre igual, repetindo palavras e entoações, até que seus olhos se
fechassem e as letras e gravuras passassem a dançar em seus sonhos, os quais,
pela manhã, mastigando o pão com manteiga e bebendo o café com leite com duas
conchas de açúcar, fazia questão de contar.
Sonhava com uma
vida grandiosa, de passeios e de vestidos bonitos, de bonecas vestidas de
princesas, de circos que provocavam risadas e sustos. Mas sua vida ficou num
remanso quieto, banal. Os filmes que passou a ver lhe sustentaram a fantasia
por mais algum tempo. As lembranças, muitas vezes evocadas, tomaram um colorido
dourado. Nos quadros que pintava,
realizava as viagens sonhadas. E ia contando as histórias que lembrava,
enquanto bordava toalhas, vestidos, enxovais.
Nas fronhas,
bordava com capricho as iniciais, a cada nascimento: H,
I, L, D…
Faltou tempo
para terminar o alfabeto.
*Lúcia Bettencourt é doutora em literatura comparada pela
Universidade Federal Fluminense, dá aulas e promove oficinas de contos no
Brasil e exterior. É autora de A secretária de Borges (Prêmio SESC de
Literatura 2005 – Contos) e Linha de Sombra (2008), ambos publicados pela
Editora Record. Seus contos também foram premiados no I Concurso Osman Lins de
Contos e no 10º Premio Josué Guimarães, da Jornada de Literatura de Passo
Fundo. Seu primeiro livro infantil, A cobra e a corda (Escrita Fina Edições),
foi escolhido para o Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE 2011. Lúcia
colabora com jornais e revistas brasileiros e estrangeiros, e mantém o
blog: www.nadanonada.blogspot.com
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