Lanternas Vermelhas
(Patrícia Cicarelli*)
Desembarcava do trem naquela estação, uma vez por semana, para o curso na
universidade em que apresentaria minha tese. Ganhar uma bolsa de estudos
estimulou-me a enfrentar a distância, mesmo não conhecendo a região. O lugar recebia
turistas e estudantes vindos de vários países. Nas férias, apenas os visitantes
chegavam aos grupos, munidos de bandeirinhas de identificação, correndo as construções
históricas. Comiam as iguarias típicas, compravam de tudo. A maior parte vinha
e ia de trem.
Cheguei em cima da hora no primeiro dia de aula. Cidade vazia, vento
gelado, desembarquei na estação e subi apressada a rua principal para pegar o
elétrico rumo ao campus. Ainda no início da via, fui arrebatada por umas
lanternas vermelhas que chacoalhavam ao vento, penduradas numa porta estreita
de madeira e vidro, selada por uma cortina rendada do lado de dentro.
Terminado o período da manhã, passei a frequentar aquela portinha até o
meio da tarde quando regressava para última aula do dia, para finalmente fazer
o trajeto de volta no elétrico e depois no trem. Era uma loja bem pequena. Seu
proprietário, chinês, não pronunciava uma só palavra no idioma local ou talvez dissimulasse.
O velho vendia chás, uns enfeites de pedras e sedas,
penduricários, caixinhas, conservas e coisas assim, vindos provavelmente da sua terra natal, sem preços marcados.
penduricários, caixinhas, conservas e coisas assim, vindos provavelmente da sua terra natal, sem preços marcados.
Havia duas mesinhas no minúsculo salão e um ínfimo balcão atrás do qual o
chinês se postava. Na primeira vez que entrei na loja, ele me fez um
cumprimento, um gesto sutil, e acompanhou meu olhar de curiosidade. Apontou-me
a cadeira, sentei e fui servida de chá com biscoitos. Trouxe o que quis, porque
não havia cardápio e mesmo que houvesse, talvez não conseguisse ler.
Simpático, oferecia a cada vez um chá mais saboroso, os biscoitos e às
vezes geleia não sei de quê. Sem saber do preço, pagava a conta com uma certa
quantia de moedas, imaginando ser o suficiente. Devia ser, considerando a
inclinação da cabeça do velho em agradecimento, e talvez fosse mais que o
bastante pelo sorriso. Recebia-me sempre com cortesia e silêncio; silêncio que
me era caro nas duas ou três horas que passava naquela mesinha, lendo meus
livros, preparando minha dissertação.
Tenho na memória, o tilintar no abrir e fechar da porta, daquelas
lanternas vermelhas penduradas a me anunciarem, chegando e partindo uma vez por
semana. O ancião sempre ali, atrás do balcão, aguardando o meu olhar para
servir ou retirar o serviço. Um sorriso mínimo esboçado nos lábios, um brilho
nos olhos apertados de quem me recebia com gosto, a postos aos meus movimentos.
Não saberia dizer quantos sabores experimentei e quantos aromas aprendi a
reconhecer naquela lojinha que nem mesmo conseguia ler o nome. Nunca, naqueles tantos
meses, alguém mais entrou nela além de mim, pelo menos enquanto eu estava por lá.
Tudo era arrumadinho, bem apertado, um pedaço qualquer do Oriente trazido para
aquele lugar.
Um recanto meu, para deleite, um cheiro de jasmim no ar, o colorido das
sedas e dos pequenos objetos ornamentando as prateleiras. Rótulos ilegíveis, a
tábua de calcular sobre o balcão, quase tudo imóvel, uma música invisível que
isolava aquele espaço particular. O velho chinês parecia deslocado no tempo,
apenas para me atender, com certa felicidade, sem emitir um ruído. Um cenário
que tive de presente como se fora um altar em que se reza e se desfia um
rosário inteiro.
Conclui os créditos e me afastei por meses. Enfim, retornei à
universidade para apresentar meu trabalho. Desta vez, fui de carona pela estrada,
diretamente ao campus. Saindo de lá, peguei o elétrico que percorrera um ponto
a menos, devido ao aumento de comércio na rua principal. Desci, caminhei pelo
meio do alvoroço da rua e me deparei com um ambulante, vendendo toda espécie de
bugiganga. Chamou-me a atenção uma lanterninha vermelha. Comprei o mimo e fui
apressada tomar meu costumeiro chá e rever o chinês antes de embarcar pela
última vez.
Não mais o encontrei. No lugar da casa de chás, havia uma loja de
guarda-chuvas. A dona, austríaca, comunicava-se com dificuldade, não conseguiu
me informar o que ocorrera com a lojinha de antes nem o destino de seu antigo
proprietário. Fui para a estação ferroviária decepcionada, com a lanterninha
vermelha nas mãos e um leve aroma de jasmim na lembrança. Sob o apito do trem
que partia, através da janela, tive a impressão de avistar ao longe um velho
chinês me acenado em despedida.
*Patrícia
Cicarelli - É contista e cronista. Jornalista, pós-graduada em Jornalismo
Literário, escreve perfis, ensaios e memórias. Especializada em Jornalismo
Cultural, faz apresentações críticas para artistas e suas exposições. Divulga
eventos culturais, especialmente literários, artes e terceiro setor.
Menalton, grata pelo privilégio de participar do seu maravilhoso Blog.
ResponderExcluirO mérito é seu, Patrícia.
ResponderExcluirMuito bonito, Patricia. Parabéns.
ResponderExcluirOlá, Eliana, como vai? Fico feliz que apreciou meu conto. Um abraço!
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