Chove. Às vezes, muito forte. E tem o vento, que vai e
volta, e corre pela rua, por todos os cantos, e se molha, e quer arrancar dos
fios do poste o esqueleto da pipa que virou uma estrela desengonçada feita de
varetas tortas de bambu e um resto de rabiola com fiapos de plásticos coloridos
que ondula no ar e brilha com os clarões dos relâmpagos.
De repente,
chuva fina. Ela cai flutuando levemente sobre a cidade, ao sabor da brisa, que
parece tonta, perdida. O vento foi embora. Está longe, do outro lado da grande
avenida. Dá para vê-lo brincando com o eucalipto em frente ao restaurante que
está fechado, mas com os piscas de Natal acesos.
A fresta é
estreita, comprida, na horizontal. Fina, de não passar o dedinho. Ele até
tenta. Quando o vento vai para longe, as abas da caixa param de bater e a
estreita abertura se acalma, fica mais fina
ainda. Mesmo assim, através dela dá
para ver muita coisa enquanto ele fica esperando o sono, se distraindo com a
cidade lá fora. Mas nessa noite o sono vai demorar a chegar. Ele sorri. Abre a
mão esquerda e olha a bala 7Belo, sabor framboesa, embrulhada no papel azul e
rosa, iluminada pelo fio de luz encardido com as cores que piscam lá fora.
A mão é pequena.
Ele é pequeno. A bala é pequenina. Mas a felicidade é imensa. Ele suspira,
fecha a mão e volta a olhar pela fresta a cidade grande, as ruas vazias.
Choveu o dia
todo. É véspera de Natal. Se não tivesse despencado tanta água do céu, ele
teria ganhado até panetone, como nos outros natais. Mas ninguém se atreveu a
abrir o vidro do carro, nem para comprar o saquinho com seis balas 7Belo, nem
para ler a sua mensagem: Feliz Natal!
A chuva parou de
repente, como fez algumas vezes em todo o tempo que ele a observava, encolhido
dentro da caixa. Levantou a aba de cima e a fresta se ampliou, de passar até a
mão. Era quase meia-noite. Viu no relógio sobre o prédio. E segurou firme a
bala 7Belo. Ele ainda estava molhado, mas a bala continuava seca. Dentro da
caixa, ele se sentia quentinho e feliz por ela ser nova. Fechou os olhos e
respirou fundo.
Caixa de papelão
da fábrica de leite ninho. Ele gostava do tamanho e do cheiro que ela tinha. Às
vezes tinha a sorte de pegar uma na qual uma lata se abrira e esparramara o
leite em pó. Era gostoso passar o dedo molhado de saliva no pó amarelinho e
lamber, enquanto o sono não chegava. Caixa boa, forte, de papelão grosso. Ele
cabia encaixadinho, dobrado, como se estivesse na barriga da mãe.
E se encolhia
mais ainda; e o corpo, a bermuda, a camiseta, os pés descalços iam se aquecendo
por causa do motor da geladeira do outro lado da porta de aço do bar, bem
encostado nela, fazendo um bafo quente cada vez que ligava.
A chuva voltou
forte. E o vento também, de cismar com a caixa no canto do bar, de golpear a
porta de aço e fazer barulho, de sacudir o toldo. Mas podia fazer o barulho que
fosse que ninguém escutaria. Não havia ninguém em lugar algum por ali. Ninguém.
Ele estava só. Não tinha outra noite no ano que o deixava tão só.
A cidade, quando
a chuva ficava fraca e o vento ficava quieto, parecia uma árvore de Natal
acesa. Estava linda. Em todos os prédios, janelas e janelas acesas emoldurando
árvores de Natal piscando cores e mais cores. Gente e mais gente em todas as
infinitas janelas acesas. Felizes na Noite Feliz. E ele não se sentia infeliz.
Estava só, naquela noite fria, ainda molhado dentro de sua caixa de papelão
favorita, segurando uma bala 7Belo, sabor framboesa, esperando aquela imensa
árvore de Natal, feita de incontáveis janelas, anunciar a meia-noite.
O dia todo no
farol da esquina, debaixo de chuva, pendurando nos espelhos retrovisores dos
carros o saquinho de plástico com balas e a mensagem natalina que copiou da
faixa estendida na porta da padaria. Não vendeu nenhum dos dez saquinhos. Sob a
chuva, ninguém quis abrir o vidro do carro. E teve quem foi embora derrubando
no chão molhado o pacotinho para os outros carros passarem com as rodas por
cima. Também às vezes a chuva ficava tão forte que ele não conseguia nem ver os
saquinhos para pegar de volta e tampouco chegar perto porque o vento também não
deixava. Ele era tão leve como aquele saquinho com balas que ele pendurava nos
retrovisores dos carros.
Mas ele
conseguiu salvar uma bala de ser atropelada. E como não tinha bolso seco na
bermuda, guardou-a na mão esquerda, protegida da chuva e do vento. A sua
pequenina ceia de Natal. E sorriu com a possibilidade de uma Noite Feliz sabor
framboesa. E ali, dentro da caixa, sorriu novamente ao abrir a mão e o fio de
luz iluminar a bala, seca e cheirosa.
E a noite seria
feliz porque depois dela viria um dia feliz, o mesmo dia feliz de sempre, no
mesmo lugar feliz de sempre, com as mesmas pessoas felizes de sempre: o
segurança do supermercado que lhe guardava a melhor caixa vazia de papelão de
latas de leite ninho; o dono da padaria que sempre caprichava um pingado com
pão com manteiga na chapa; a dona do restaurante da esquina que sempre lhe dava
o prato do dia, água e um doce, às vezes, um picolé e até um refrigerante; o
zelador do prédio que o deixava entrar para tomar banho e toda segunda e quinta
deixava uma muda de roupa lavada e passada junto com a toalha e o sabonete
perfumado; o velho cego que ele ajudava a atravessar a rua para levá-lo até a
barbearia, ou ao sebo, ou à praça, e que sempre lhe contava as mais belas
histórias que se lembrava dos livros e lhe pagava pastéis na feira às quartas;
do Sol que nascia bonito e alegre e às cinco da tarde se escondia atrás da
árvore da esquina para fazer sombra para ele contar os trocados do dia
amontoando as moedas na sarjeta; e da noite, que sempre chegava com o sono que
não o deixava sonhar, de tão cansado, mas feliz por viver na rua de um lugar
feliz que um dia o acolheu quando a sua mãe o esqueceu na porta do Metrô.
E tinha aquele
casal que morava no prédio e sempre lhe dava um bom-dia, boa-tarde e boa-noite,
e comprava o pacotinho de balas mesmo sem ter carro, mesmo sem parar no
farol... E naquela noite de chuva forte, de vento para todos os lados, de
trovões barulhentos e relâmpagos de trincar o céu escuro, de repente ele viu os
pés deles, os sapatos molhados. Sim, eram eles. E viu a mão do homem levantar a
aba de cima da caixa e seu corpo se dobrar para enxergá-lo todo encolhido, todo
o pequenino corpo encaixado na caixa de papelão; e aí viu a mão da mulher se
abrir para ele, luminosa de tão alva, e dizer o seu nome de uma maneira tão
clara e límpida que parecia ter sido lavado pela chuva. E ele então colocou na
mão dela a bala 7Belo, sabor framboesa, que guardara para a sua pequenina Ceia
de Natal.
Capa
— Posso comer
essa bala? – perguntou o amigo, arrancando o pequeno pote de vidro da mão de
Ri, com uma bala 7Belo, sabor framboesa, dentro.
Ele riu, pois
sabia que o amigo já conhecia de cor e salteado a história daquela bala que
todo Natal ele recontava para os amigos do prédio que iam visitá-lo em seu
quarto, pois para eles, e até para o cão deles, era a mais bela história de Natal
do mundo.
E ele contava
com as mesmas palavras de sempre, com a mesma memória molhada de chuva que
sempre deixava escorrer água pelos cantos dos olhos, descer pelo rosto e passar
pelo sorriso que se abria cada vez que olhava no reflexo da janela o seu
quarto, os seus amigos, a sua casa, a sua árvore de Natal, se misturando à
visão da cidade lá fora.
* Alonso Alvarez já foi torneiro-mecânico e projetista de máquinas. Um dia resolveu fazer faculdade de Hstória e se envolveu com o movimento estudantil. Depois que concluiu o curso abriu a antiga livraria artepaubrasil, com duas lojas em São Paulo. Logo começou a escrever. e criou a Ficções Editora.
Menalton, oi. Obrigado pelo carinho e pela divulgação do conto. Abraço
ResponderExcluir