Lúcia Bettencourt
Era melhor num dia assim, azul. O ar tinha uma qualidade de vidro
transparente, as pessoas pareciam recortadas em cores e gestos que se
perpetuavam, como na tela de um filme em
câmera lenta. O casal estava usando roupa nova. A dela era um vestido branco,
de alças, e ela se encolhia, friorenta, num casaco de moleton, grande,
exagerado, como estava na moda. Ele usava jeans, camisa de malha, jaqueta
aberta, numa elegância elaboradamente
descuidada.
Andavam de mãos dadas pelos corredores do
aeroporto, esperando a chamada de seu vôo. Era cedo, eles tinham chegado com
antecedência, impacientes para começarem logo sua lua de mel. Ali dentro da
sala de embarque eles não viam o dia lindo que começava a se por, preguiçoso.
Eles olhavam e viam apenas o futuro.
Era melhor num dia assim, sem movimento. O
caminho até o aeroporto tinha sido fácil, a mala costumeira acomodada no
bagageiro do carro, a pasta sobre seus joelhos e o computador protegido
pela capa. O terno não o incomodava, era de microfibra, não ficaria amarfanhado. A gravata, vermelha, estava na mala, junto com a camisa limpa, que vestiria antes mesmo de sair do avião. Tudo estava como devia ser, colocado onde deveria estar. A poltrona escolhida, o hotel reservado, as reuniões marcadas.
pela capa. O terno não o incomodava, era de microfibra, não ficaria amarfanhado. A gravata, vermelha, estava na mala, junto com a camisa limpa, que vestiria antes mesmo de sair do avião. Tudo estava como devia ser, colocado onde deveria estar. A poltrona escolhida, o hotel reservado, as reuniões marcadas.
Era a segunda viagem daquele ano. Mais uma e
seria possível descansar. Na última ele iria só para as despedidas, receberia o
relógio de praxe, daria os abraços esperados, faria seu discurso. Mais isso
pertencia ao futuro, e ele era um homem do presente. Aqui e agora. Soluções
práticas, resultados, nada de promessas.Olhando para fora do taxi, viu o céu
muito azul contrastando com uma árvore sacudida pelo vento que começava a
soprar. Desviou os olhos, incomodado pela beleza.
Era melhor num dia assim, tranqüilo. Nos
últimos meses todos os dias haviam sido de briga, discussões, intermináveis
cobranças e ressentimentos. Naquele domingo, uma brecha de paz: as crianças
acordando tarde, sem choro. O dia bonito, frio para a praia, mas bom para
brincar na pracinha. Tempo para ler o jornal e ânimo para sorrir para as
crianças. O céu muito azul, e a brisa do mar trazendo lembranças das últimas
férias, quando eles ainda eram capazes de sorrir um para o outro.
Quando ia saindo, depois de beijar as crianças
e pegar a mala de viagem, ele se aproximara. Instintivamente ela esquivara o
rosto, deslizara rápida carregando a mala que sempre lhe parecia pesada demais.
Ele tinha dito qualquer coisa, mas ela não entendera. Na portaria, olhou para o
céu, azul como num quadro infantil. Os sons revoavam ao redor de sua cabeça,
mas ela ainda não acreditava em sua combinação. O motorista do ônibus sorriu,
num cumprimento habitual. Os colegas já estavam acomodados em suas poltronas e
ela caiu na sua, impulsionada por uma freada. Desculpe?, pensou. Seria essa a
exata combinação? Mas não chegou a sorrir. O passado puxava os cantos de sua
boca para baixo, e seus olhos se fixavam
no azul da saia do uniforme.
Era melhor num dia assim, insuspeitado. As
coisas devem sempre ocorrer inesperadamente.
Uma manhã azul, uma tarde ensolarada e um por do sol sem sustos. Para
que inventar suspenses, tocar músicas de acordes misteriosos, criar efeitos
especiais? Quem ia trabalhar, juntava seus apetrechos, disfarçava suas angústias,
e saía, com calma. Quem ia passear, se agitava na expectativa da hora,
verificava duas ou três vezes se tinha todos os papéis, se o roteiro estava à
mão, se o dinheiro estava na carteira. Quem ia receber prêmio repassava o
discurso e se preocupava se o traje escolhido seria o mais adequado. Quem
voltava para a casa, já sentia a saudade diminuir, quem se despedia sentia o
coração pequeno de tanta solidão. Para alguns, nem era viagem, era apenas
trabalho. Para outros, era o tão desejado descanso.
O vento acariciou as faces de todos, entrando
pelas fendas deixadas nos encaixes imperfeitos. Secou as lágrimas da namorada,
desfez o cabelo do executivo mal humorado, obrigando-o a esquecer os relatórios
e a se concentrar em sua aparência. Depois, como uma criança, ajudou o avião a se
levantar, suspendeu-o no azul.
Quando o céu perdeu a cor, os olhos começaram a
se fechar. Abertos, só a escuridão.
Fechados, foi possível lembrar do dia tão azul.
* Lúcia Bettencourt (Rio de Janeiro,
1969) é uma escritora brasileira. Seu livro de estreia, A Secretária de Borges,
venceu o Prêmio Sesc de Literatura (categoria contos) em 2005. É doutora em
literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, tendo sido premiada
pela Academia Brasileira de Letras (categoria Ensaio, Crítica e História
Literária) pelo livro O Banquete, baseado na sua tese. (Origem: Wikipédia, a
enciclopédia livre)
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