Conto não escrito
(Matheus Arcaro)

– Trivial, muito
trivial, folha. Você já deve ter recebido inúmeras histórias desse gênero. Digo....
Você, literalmente, não, porque se assim fosse, não seria mais papel em branco.
Mas como representante da espécie...
– Quando você se presta
a explicar algo, parece o planeta Terra: fica girando, girando, sem sair do
lugar. Seja mais objetivo, velho. Mais sucinto. Faça jus a essas barbas grisalhas
– Sim, claro! Meu bom
senso grita pra que eu leve em consideração os conselhos de uma ex-árvore.
– O que você deve levar
em consideração, nobre escritor, é uma equação muito simples: história que
muita gente quer ler, sinônimo de visibilidade e fama. Pra que muita gente leia,
você não pode mergulhar em assuntos complexos. Navegue à superfície, vai aonde o
vento te levar.
– Obscenidade! Não há
outra palavra que defina um autor que subestime a inteligência do leitor
escrevendo o que este espera ler.
escrevendo o que este espera ler.
– Obsceno é pensar que
você tenha apenas um livro publicado, com uma tiragem que beira o risível.
– Qualidade literária
não se mede por exemplares vendidos, caríssima.
– Aposto que seu
estômago vazio não compartilha desta convicção.
– Que conhecimento tem
você pra falar de estômagos e afins? Limite-se ao seu papel!
– Escritores e suas frases
de efeito! O que sei, companheiro letrado, é que estou nesta gaveta há muito
tempo esperando pra ser preenchida. Agora que chegou a minha vez, deixe de lado
esse idealismo de botequim e escreva uma história que valha a pena. Ah! Será
que daqui a alguns séculos eu, o manuscrito original, serei venerado em museus
parisienses ou londrinos?
– E um escritor faminto
te proporcionará isso?
– Desde que siga minhas
recomendações, evidentemente. Antes de chegar à sua escrivaninha, estive com
grandes originais. “O alquimista” é um deles. Só de pensar que eu fecharia o
romance me deixa amarelada, note! Paulo escreveu a última linha toda apertadinha,
na folha que estava acima de mim.
– Sair da mesa do
escritor mais vendido do Brasil e parar aqui?
– Coisas do destino, amigo
erudito. Coisas do destino!
– Como isso aconteceu?
– Anos atrás, Paulo se
mudou pra Suíça. Quando foram limpar o apartamento, jogaram o pacote no qual eu
estava ao lado da lixeira. Foi onde você me encontrou.
– O trágico destino de
uma folha de papel! Isso sim daria uma grande história.
– Com ironias deste
tipo você não vai muito longe, contista. E se você não for, eu também não vou. Quero
ser uma estória que entre pra história.
– Com trocadilhos
fonéticos deste nível, você serviria muito bem ao ramo publicitário!
– Não temos tempo pra
orientações vocacionais. Diga-me, no que você pensava antes que eu te interrompesse?
– Uma história de
época. Itália, baixa Idade Média. Imagina que num mosteiro beneditino,
estranhas mortes começam a ocorrer e as vítimas aparecem com marcas pelo corpo.
A resposta a estes crimes está na biblioteca que guarda grandes obras da
humanidade, sacras e profanas. Eu poderia explorar a dicotomia ciência-religião;
a santa inquisição; as transformações econômicas e políticas na transição da
medievalidade pra a modernidade...
– Ai, ai, ai! Quem,
além de você, compraria um livro assim?
– Quem gosta de uma
história consistente; quem gosta de enredos excitantes; quem gosta de
personagens bem construídas.
– Você deveria dar uma
olhada na lista dos mais vendidos. Pense em algo como “um mago que aconselha as
pessoas a não desistirem dos seus sonhos” ou “um vampiro que se apaixona por
uma mulher e o amor deles, durante toda a trama, é dificultado por inúmeros
problemas, até que, na última página, eles se encontram, se beijam loucamente e
juram amor eterno”.
– Não sou adepto dos
contos fantásticos!
– Que tal, então, um
factual que gire em torno de coisas do cotidiano humilde? Acompanhe: o pai de
uma criança pequena é abandonado pela mulher que o enxerga como fracassado. Ele,
então, depois de muita luta, consegue um ótimo emprego e mostra que valeu a
pena o sofrimento à procura da felicidade. Você pode explorar cada obstáculo
superado; cada adversidade vencida pelo homem. Isso fisga o leitor pelo coração!
– As pessoas estão
cansadas de ver histórias com este apelo no cinema e nos programas religiosos
na madrugada da TV.
– Cansadas não estão,
senão autores e produtores não insistiriam nesse nicho. E uma história de suspense,
o que me diz? Uma menina de aproximadamente oito anos se perde na mata fechada.
De repente, depara-se com uma cabana velha, abandonada. Curiosa, ela entra e...
– E encontra objetos
que lhe parecem familiares? Já escreveram algo parecido, querida folha.
– Faz o seguinte, então:
vai prestar um concurso público. Você daria um ótimo bancário; um assistente
administrativo brilhante!
– Quero escrever algo
grandioso. Não pros outros, mas pra mim.
– De qualquer forma, sua
autobiografia está descartada.
– Ah.... Não
necessariamente. Levando parte do seu sarcasmo a sério, imagine a história de
um escritor e suas divagações perante a temível folha em branco; os
subterfúgios que este homem usa pra chegar à grande ideia...
– Até que enfim, velhote.
– É sério que vocês vão
se conformar com esse enredo Déjà Vu?
– Não escute esta
caneta, escritor. Deita tinta!
Muito bom. Sensacional.Gostei muito do desenrolar do diálogo citando obras conhecidas sem revelar-lhes o nome.
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