sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

CONTOS CORRENTES

Sina

(Roniwalter Jatobá)

1952 -- A minha pele refletia a mocidade. Quem via dizia: tão novo, tão moço ainda. Tinha: um sonho antigo, passado de pai para filho, que era partir pelo mundo. Pai, que passou a vida inteira atrás de sustento, vendo os filhos que nasciam em todo ano, só sonhou em um dia ir embora. 
E: mãe enrodilhada na cama, no resguardo de filho novo, na mesma pequenez quanto as palavras dela, relutando:meu filho, pra que ir tão longe? Eu: ali, sempre vendo aquela velhice que vinha ano após ano, trazida quem sabe por quem, que ia entrando nas pessoas. Como ser tão parado no viver? Esperando pai morrer, mãe morrer, aqui, tudo miúdo, até a vida.

1953 -- O caminhão não esperou a claridade despontar. Dormindo, uns. Maldizendo, chorando, outros. Calado, eu. A lona marrom cobrindo as pessoas da chuva, do sol, e guardando poeira. A Bahia, grande. Minas: serras, lama, ladeiras, o caminhão lotado de gente, pneus levantando poeira, voando areia, pedra, por esses caminhos pobres. São Paulo: como nos velhos sonhos de pai, vermelho tal São Miguel, onde aportei em janeiro de tarde, com um sol miúdo. A grande fábrica de química me acenando pelos dias seguintes, chamando. Fichado fui. Perto do ano findar, voltei à Bahia, em dias de folga. Trouxe Adelina: ela preencheu o vazio de uma mulher.

1954 -- Comprei um terreno no Jardim Helena. Em oito domingos seguidos, fiz um quarto e uma cozinha, fiz moradia desse começo de casa. Nas noites, como uma roça, sapos
cantavam longe, na vargem do Tietê. Adelina, sempre dizendo: sinto saudade. Nasceu Reinaldo. O presidente Getúlio Vargas morreu.

1955 -- Não nasceu João Batista, que já tinha nome e quase leva pra cova a fraca Adelina, que muito sofreu nesse ano. Por mão própria, demorosa, a notícia assim veio: pai morreu afogado, tentando salvar um bezerro do coronel Gercílio Batista nas profundezas do rio Bananeiras.

1956 -- Nasceu um menino: Getúlio.

1957 -- Nasceu uma menina: Maria Aparecida.

1958 -- Puxei mais um quarto. Adelina ajudando, Reinaldo se lambuzando de barro, a casa tomando outra forma. Outras casas começavam a se levantar em volta. Adelina no entrar de setembro foi operada. Me apressei: cuidava da casa, saía cedo pra fábrica, voltava no rastro, pedi ajuda, os poucos vizinhos favoreceram.

1959 -- Apertou saudade, viajei pra Bahia. Adelina ficou. Vi: Bananeiras tinha a mesma cara, tudo igual, tudo mais velho, só a água que descia daquele rio, que sempre me banhava, vinha mudada nas corredeiras.

1960 -- No começo desse ano: nasceu Roberto. No fim: Adelina caiu perto do poço d'água, escorregou carregando um balde cheio, perdeu um menino que desabrochava nela. Ela definhou, a pele se colou aos ossos; no chegar, toda tarde, via Adelina viva pelas graças de Deus.

1961 -- Comprei uma bicicleta.

1962 -- Reinaldo começou a trabalhar no Brás, engraxando sapatos num ponto da estação de trem, levantava bem cedo, todo dia, escuro ainda. Quase no fim do ano compramos uma televisão, fazendo sacrifício.

1963 -- Adelina acordou numa noite, soltando gritos pela escuridão, sonhando uma história triste, como se mil homens lhe estivessem estrangulando, amedrontou a casa inteira e ela pariu, morto e minguado, um ente, nem homem nem mulher, de três meses.

1964 -- Chegou uma carta, dizendo: mãe morreu. Soube tempos depois que, dias antes, viva ainda, mandou fazer um vestido com o pano vermelho que lhe enviei de presente, e pediu à costureira, como se adivinhasse a morte que logo apontaria, que lhe vestisse como mortalha. Assim foi feito. 

1965 -Getúlio morreu na primeira rua de asfalto, aqui, debaixo dum carro ligeiro, que sumiu pra sempre nas ruas de poeira.

1966 -- Adelina entristeceu. Andava pelas tardes de domingo, comparando: miséria aqui, miséria lá, aqui é cativeiro.

1967 -- A mãe de Adelina morreu. Ela botou luto fechado por seis meses e dias, batendo com as palavras sempre dizia: minha sina é viver aqui nesse cativeiro.

1968 -- Vieram uns soldados. Bateram na porta, abri. Iam me levar. Adelina me segurou, um soldado machucou ela com o fuzil. Me levaram algemado. Voltei, livre, era engano, mas por meses não encarei frente a frente nos olhos baixos de Adelina.

1969 -- Adelina morreu. Sina mais triste pra quem fica, sina de todo vivente. Ano inteiro, em juízo: solidão pesando, filhos crescendo, Jardim Helena inchando de gente.

1970 -- Maria Aparecida chorava sempre no negar das coisas que nunca, ninguém aqui, podia nem ter. Pedia a ela que ela esperasse, se botasse mais moça, até poder trabalhar. Num dia não amanheceu em casa. Sumiu na sua sina.

1971 -- Reinaldo se apaixonou, quis casar. Trouxe a mulher pra morar aqui. Construí um quarto pra eles no fundo da casa.

1972 -- Maria Aparecida tinha sumido de verdade. Nunca ninguém mais ouviu falar dela. Cada dia mais apertava a falta de Adelina. Um ano triste.

1973 -- Me ofertaram uma medalha pelos vinte anos de trabalho. Reinaldo brincou: o que vale isso, pai?

Respondi: não brinca com as coisas do governo. Guardei a medalha num malote. Outro dia, vi: enferrujada.

1974 – Sol ou chuva, na fábrica todo dia. Folgava aos domingos. A carteira profissional se esfiapava no passar do tempo, sempre guardada no bolso traseiro da calça.

1975 -- Fiz um acordo na fábrica. Saí de lá. Abri esse bar que aqui se vê. Pequeno, freguesia pouca por enquanto, mas vai melhorar. Sei.

1976 -- Fico nesse bar de noite a dia, de dia a noite, como se procurasse um alento para viver tão só. Rita, mulher de Reinaldo, quem imaginava aquele corpo fraco, se tornou mãe: esperança deste corpo, sonho novamente começado em fim de vida. Vem pena de Reinaldo: esperançoso ele. Dou fé.

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