
Felicidade
clandestina
A gente
tenta resistir, se esforça, mas a literatura é um grande diálogo em que se tem
de enfrentar vozes, muitas vozes, remotas ou recentes, um emaranhado de vozes
onde tentamos distinguir alguns dos interlocutores. Os temas nos chegam da vida
e dos livros. Capitulamos para acabar refazendo o que está feito. Não é a
primeira vez que a realidade me traz de volta a ficção como se fora esta cópia
daquela. A Clarice Lispector tomava muito cuidado com as palavras porque ela
sabia que as palavras engendram vidas. Mas a Clarice era maga, ela fabricava
coisas.
Confesso que
a princípio me assustei. Chegou aquele bando em revoada, invadindo tudo,
expulsando-nos dali. Um dos meninos era da cor da terra, trajava uma camiseta
parda e usava uma bermudinha sem cor. me parece que era meio igual aos outros
todos.
Escolhi um
ponto estratégico, de onde pude observar aquela batalha, que, apesar do susto,
me interessava. De onde me abriguei, pude ver os vendedores do estande, o
cabelo de
alguns
literalmente em pé (que agora é moda), o cabelo de todos eletrizado assim como
seus olhos.
Tinham ordens para não interferir, a não ser que o prejuízo se
tornasse iminente. Durante uns quinze minutos, não tiveram sossego.
Uns quinze
minutos. Esse foi o tempo necessário para que o bando chegasse, olhasse, visse
e saísse. Em seu rastro, sinal de destruição nenhum.
Além dos
vendedores, consegui focalizar um dos meninos que acabavam de chegar.Foi direto
a uma prateleira, não levou mais de quinze segundos para escolher um livro,
sentou-se ali mesmo, no chão, pois não dava mais para esperar. Abriu o livro,
com aquelas duas mãozinhas quase impossíveis, e se pôs a ler a história, ver as
figuras, não sei. De onde estava, apenas via que seus lábios se moviam e que
seus olhos brilhavam. Um brilho tão intenso que tudo em volta começou a flutuar
ao ritmo de uma sintonia ilimitada. O rostinho terroso, então, começou a se
transfigurar, assumindo uma feição gloriosa.
Eu estava
com pressa pois havia uma multidão de duas ou três pessoas à espera de um autógrafo
dois ou três estandes adiante. Quem disse que eu conseguia sair do lugar?
Naquele instante, o mundo em volta perdeu inteiramente o seu significado: só
aquele menino e seu livro pulsavam em meus sentidos. Ele ria, me parece que
falava, não sei se lambia ou cheirava o livro. De repente ele o fechou e olhou
para cima cismarento. Tentei acompanhar seu olhar. Para onde estaria ele
viajando agora?
Quando o
menino reabriu o livro, percebi em seu rosto sinais de concentração. Voltou à
leitura com o cuidado de um soldado estudando o terreno. Acho que havia,
finalmente, resolvido algum mistério, ou, pelo menos, havia-se deparado com
algum, que era preciso desvendar.
Seus colegas
dispersaram-se pelos estandes vizinhos, onde outros vendedores puseram cabelos
e olhos de pé, mas sem interferir, como lhes fora ensinado. Relanceei o olhar
pelo recinto da feira e imaginei o Brasil todo ali dentro e achei que aquilo
era uma luz ... vá que seja... no fim do túnel.
Olhei de
volta para onde estivera o menino e vi apenas um livro aberto com as folhas
movendo-se. Se não me engano, ouvi uma voz de criança que vinha lá de dentro. O
menino resolvera penetrar em seu mistério.
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