sexta-feira, 12 de maio de 2017

CONTOS CORRENTES


Excepcionalmente, publicamos hoje, neste espaço reservado aos contos, um relato pessoal em tom de ensaio, seguido de poema, que nos foi enviado pela escritora Raquel Naveira.

Cantiga de amigo

(Raquel Naveira)

É bom beber das águas puras da inspiração lírica nas cantigas trovadorescas portuguesas!

A primeira época da Literatura Portuguesa inicia-se em 1198 (ou 1189), quando o poeta trovador Paio Soares de Taveirós dedica uma cantiga de amor a Maria Pais Ribeiro, cognominada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I – e finda em 1418, quando Dom Duarte nomeia Fernão Lopes para o cargo de Guarda-Mor da torre do Tombo, ou seja, conservador do arquivo do Reino. Durante esses duzentos anos de atividade literária, cultivaram-se a poesia, a novela de cavalaria e livros de linhagens.

De origem obscura, o lirismo trovadoresco instalou-se na Península Ibérica por influência provençal, isto é originada da Provença, região sul da França. Na transladação, sofreu o impacto do novo ambiente e alterou algumas de suas características. A principal modificação foi o fortalecimento do aspecto platonizante da confidência amorosa: dentro do trovadorismo
português, o ponto mais alto do processo sentimental situava-se antes de a dama atender os apelos do apaixonado. Duas eram as espécies de poesia trovadoresca: a lírico-amorosa, expressa em duas formas, a cantiga de amor e a cantiga de amigo; e a satírica, expressa na cantiga de escárnio e maldizer. O poema recebia o nome de “cantiga” pelo fato de o lirismo medieval estar associado à música: a poesia era cantada, entoada, instrumentada. Letra e pauta andavam juntas.

A cantiga de amigo possuía um eu lírico feminino, pois se tratava do ponto de vista de uma mulher solteira e não submetida às convenções matrimoniais. Essa mulher do povo (pastora, camponesa) se dirigia ao amigo, à mãe, às irmãs e amigas ou a algum elemento da natureza. Era uma mulher ora ingênua, ora experimentada, ora compassiva, ora calculista. O amor físico tinha importância relativa , pois o clima era de amor cortês, de emoções vivenciadas com a presença dos ciúmes e ressentimentos, de reivindicações da liberdade de amar perante a intervenção materna. Os cenários eram os campos, as fontes, os rios, árvores e flores, ou ainda ambientes domésticos e da corte. A mulher vivia em intimidade afetiva com a natureza, muitas vezes conversando com ela, como se ela fosse sua confidente.

É interessante que o poeta era um homem, um trovador, dando voz a uma personagem-mulher, aos interesses femininos. Quem escreveu lindas canções com um eu lírico feminino, como Valsinha, foi Chico Buarque, demonstrando sensibilidade, delicadeza, capacidade de se colocar na pele do outro e formação lírica calcada na mais tradicional poesia portuguesa.

Lembrei-me de uma antiga canção de carnaval que diz: “Linda pastora/ Morena da cor de Madalena...” A pastora é personagem saído das páginas da poesia trovadoresca portuguesa.
Meu avô português comentava que em sua aldeia, Figueira da Foz, era comum deparar-se, até os dias de hoje, com pastorinhas de ovelhas e de gansos pelas ruas.

A cantiga de amigo respirava realismo em toda sua extensão, em contraste com o idealismo da cantiga de amor. O vocábulo amigo significava namorado e amante. Conforme o lugar ou as circunstâncias em que transcorre o episódio sentimental, a cantiga recebe o título de cantiga de romaria, serranilha, pastorela, marinha ou barcarola, bailada ou bailia, alba ou alvorada. Essas configurações da cantiga de amigo traduzem os vários momentos do namoro, desde a alegria da espera ou do diálogo entre moças acerca de seus amores, até a tristeza pelo abandono ou a separação forçada.


Recebi em 2004 o convite para escrever um poema que abrisse o livro de fotografias Flores do Cerrado, do engenheiro agrônomo Luciano Bassan, publicado em parceria da Bayer com a SEMA (Secretaria de Estado do Meio Ambiente ) e Governo Popular de Mato Grosso do Sul. Um livro que ressalta a beleza e exuberância das espécies nativas do cerrado brasileiro: flores de cores e formas surpreendentes com seus nomes populares e científicos. Folheando o livro que está dividido em duas partes: solo úmido e solo seco, tive a ideia: uma cantiga de amigo, uma camponesa colhendo flores, uma melancólica alma portuguesa em terras do cerrado e assim nasceu o poema Flores do Cerrado, que transcrevo, depois de trechos em epígrafe de uma bailada medieval do trovador J. J. Nunes:

“_Ai flores, ai flores do verde pino,

Se sabedes novas de meu amigo?

Ai, Deus, e u é?”

“Bailemos nós já todas três, ai amigas

So aquestas avelaneiras frolidas.”

(J. J. Nunes, Cantigas d`Amigo- cantigas medievais portuguesas)


Vamos, amigas,

Colher flores do cerrado,

Levemos uma cesta

Para os galhos aveludados,

Formemos um ramalhete

Para o noivado.


Vamos, amigas,

Pelo campo fechado,

Entre nuvens e névoas,

Seguindo a trilha

Do arado

À flor da terra.

Entremos nessa mata de planalto,

Nesse horto tortuoso,

Desçamos as encostas

Ao longo do rio.


Aqui,

Onde o jardim é denso

E o caminho apertado,

Colhamos as mais belas flores do cerrado,

Dádivas divinas

De essência e sopro,

De água e fogo matizado.


Vamos, amigas,

Colhamos essas taças de orvalho,

Essas criaturas instáveis

E perfumadas

Como os prazeres

E as bebidas.


Vamos, amigas,

Coloquem na cesta

Malvas brancas,

Helicônias alaranjadas,

Pêndulos de mamona,

Juremas e douradinhas,

Juquiris e mimosas,

Carobinhas violetas,

Algodão do campo,

Amores lilases,

Pétalas azuis de alcaçuz,

Ciganinhas amarelas,

Estames longos

Como plumas voadeiras;

Salpiquemos as flores


Com chuva de primavera,

Raios de aurora,

Cantos de juventude;

Borrifemos sobre todas

Gotas preciosas de virtude.


Vamos, amigas,

Nesta cesta

Está nossa alma,

Nosso peito de amor carregado,

Perfeita floração

Deste campo de cerrado.


Sou mesmo menina, camponesa antiga, com séculos de poesia nas veias, entre as flores do cerrado.


BIBLIOGRAFIA

-BASSAN, Luciano. Flores do Cerrado. Campo Grande/MS: Editora, 2004.

-MOISÈS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 29ª ed. São Paulo: Cultrix., 2004.

-OLIVEIRA, Gizelda Maria Almeida de. Sínteses Literárias- Literatura Portuguesa. Andradina/SP: Estrela Gráfica, 2001.

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