(Virginia
Finzetto)
— ... ensaladilla
rusa, cerveza...
— ...vale,
gracias...
Enquanto sorvi o primeiro gole de caña, reparei naqueles
caixotes cheios de livros margeando a parte baixa das paredes revestidas de
espelhos até o teto. Que brega... cursi, como se diz aqui. Estranhei também a
pouca frequência naquele horário.
O que havia me
incomodado não fora exatamente os livros, complemento melhor não podia ter, mas
a feiura de sua disposição naquele espaço tão charmoso feria minha lembrança do
Café Comercial, que sempre exalara a alegria boêmia dos encontros regados a
unas copas, risos, não a paz das bibliotecas. Um ícone cultural que visitei
pela primeira vez há um século após sua inauguração em 1887. Os habitués de
então não estavam ali exatamente para ler, mas para compartilhar leituras já
feitas, saraus, um local de troca de impressões, experiências, vivências,
celebrações, brindes à vida...; e a isso eu me dediquei por um bom tempo.
A nostalgia voltara
como faca a me rasgar ao meio. Um quê de sadismo a potencializar ao máximo a
dor do efêmero, parte que em mim se recusa a morrer. Fiz questão de saborear o
mesmo prato típico, quem sabe para instigar o paladar a materializar com
precisão as lembranças que me fizeram cativa por quase trinta anos.
Através das imensas
e antigas janelas de vidro, meus pensamentos viajaram em reminiscências,
resgatando o movimento das calles, ao redor da Glorieta de Bilbao, nas frias
madrugadas de inverno,
tempo em que morei em Malasaña. Depois meus olhos
vagaram observando cada detalhe do salão. Subi devagar os degraus, um tanto
mais gastos pelo uso, da escadaria de acesso ao baño. Alisei a pilastra e o
tampo de mármore da mesa. Observei os
lustres, o balcão... Tudo permanecia igual, até a porta giratória da entrada
era a mesma. E foi por ela que o vi entrar pela primeira vez...
Juan não chamara
minha atenção apenas pelo porte magro e alto, amendoados olhos mouros
penetrantes, pela ondulada, farta e rebelde cabeleira negra. Fora repentino o
indefinível que nos uniu naquele ‘à primeira vista’. Definitivo naquilo que
qualquer ‘para sempre’ pudesse durar. Inquietante. Ele era uma versão de mim,
ao mesmo tempo máscula e inocentemente infantil.
Lembrei-me das
animadas e lotadas tertulias literárias que sempre atraíram famosos
periodistas, escritores e poetas, gente que fazia o agito cultural da cidade.
Juan viera àquela noite para recitar poemas de Antonio Machado, em homenagem ao
assíduo poeta, frequentador dos primórdios do Café:
“Fe empirista. Ni somos ni seremos.
Todo nuestro vivir es emprestado.
Nada trajimos; nada llevaremos. “
Minha primeira impressão sobre Juan mostrou que eu não me
enganara. Reconheci nele uma alma solitária se testando o tempo todo fingir
gostar de companhia. Ainda guardo o que escrevi sobre nosso surpreendente
encontro naquela noite...
Dezembro de 1987
Assim que larguei meu copo sobre a mesa, Juan pegou minhas
mãos e começou a admirá-las de uma maneira que ninguém havia feito antes. “Hace
quinze dias que tu no echas un polvo”, falou de súbito. Eu sei que essa gíria
significa ‘transar’, mas quis saber por que ele afirmou aquilo com tanta
certeza. Ele respondeu, sem expressar reação de aprovação ou reprovação: “Você
lixou suas unhas, mas não tirou o esmalte”. Enrubesci de vergonha, mas
disfarcei o embaraço com a pronta resposta: “Fiquei sem acetona”.
Que tipo de homem
botaria esse nível de reparo em uma mulher? Qualquer pessoa pensaria ser apenas
um sinal de desleixo deixar o esmalte cobrindo apenas três-quartos das unhas.
Só quem sabia muito de mim seria capaz de sacar que eu me enfeitava apenas
quando tinha alguém na mira. Ai, que vergonha... Exatamente ele, o imprevisto
que me interessou mais que tudo, e eu naquele descuido... Como conseguiu
acertar com precisão, apenas vendo a parte superior em branco das unhas, os
dias que me separaram da última trepada?!
Foi assim o nosso
início. Eu dei um passo, ele me jogou o laço. Virei sua eterna presa, da mesa à
cama. Por um bom tempo não pintei mais minhas unhas; ele detestava... [para
minha total e grata surpresa!].
Foram tantos os
nossos encontros, do Café a lugares tão distintos de Madrid, que eu não pude
escapar de seu fantasma todas as vezes em que retornei à cidade. Mas como tudo
em minha vida, veio o fim e a certeza de que ele era apenas mais um. Nômade,
beduíno, dervixe solitário em multidões. Não queria compromissos. Nunca me
confidenciou detalhes sobre sua vida. Nem eu quis saber, apenas me entreguei de
cabeça e vivi o presente daquela paixão. Veio a despedida, e nenhum contato
mais.
Juan sempre fez
questão de deixar claro que viajava sem bagagem, que se bastava a si mesmo e
que jamais caia em armadilhas que o tirassem de sua maior companhia: ele mesmo.
Prefiro pensar que sobreviveu, embora só eu saiba a dor e o tempo que gastei à
sua procura sem nenhum sucesso, em períodos distintos. Mesmo depois, pela
internet e pelas redes sociais, nenhum dos muitos homônimos pesquisados fez jus
ao que eu busquei. Juan, Juan... por
onde andarás?
- La cuenta, por
favor...
Em minha derradeira
visita ao Café Comercial fechei um ciclo junto com o cerrar de suas portas,
triste fim de mais um dos cem antigos cafés da cidade, palco de tantos
encontros e de la movida madrileña, que não pôde suportar a crise econômica que
atingira boa parte da Europa. Em minha última tentativa, ninguém ali ouvira
falar de Juan Hadi Vazquez.
Mas sei que você
não morreu, Juan... sinto aqui dentro que não.
*In La Barca, revista literária Scenarium Plural, pp. 34-40, junho de 2016
Querido Menalton, é sempre uma honra ser presenteada com sua generosidade em publicar meus escritos. Seu blog é imenso, e fico muito feliz de estar ao lado de tanta gente bacana. Muito grata.
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