sexta-feira, 4 de agosto de 2017

CONTOS CORRENTES

Majô      
(Matheus Arcaro)                                                          

Tomás espiou de esgueio, reespiou, o que será isso?, limpou a terra do objeto na calça grossa e meteu-o no bolso como se, com mais alguns segundos de observação, aquela coisa verde e cilíndrica fosse capaz de sugar seu espírito. Deus me livreguarde! Ele não permitiu que Deus o livrasse. Antes, guardou o objeto como se a mão esquerda fosse autônoma; escondeu-o, talvez, porque não quisesse que os companheiros compartilhassem sua descoberta. Mas disso o jovem não desconfiava; se semelhante sentimento existia, estava no útero da mente. Recolocou as luvas, os óculos de acrílico, ajeitou o capacete e voltou a cavar aquele solo que não era dado a gracejos.
O sol parecia realçar, nos ombros dos operários, os gritos do mestre de obras. Até o final da semana as estruturas têm que estar aterradas, ouviram bem? Tomás não ouviu, Tomás não sentiu o sol. Tomás, com a britadeira a pular entre as mãos, lia as ordens nos lábios do chefe. Ouvir, ouvia apenas as moedas que caíam em seu cofre a cada metro que fazia ceder a terra. 
Apontando na prancheta, o engenheiro explicava sobre as futuras torres, prédios comerciais. O mestre de obras escutava, não com mais atenção que Tomás, apesar dos metros que o separavam da
conversa. Curioso pela curiosidade do operário, o engenheiro convidou-o a se aproximar. Tomás absorveu como pôde as palavras bem abraçadas daquele homem e, embora não tenha compreendido completamente o esboço no papel, ficou impressionado com os prédios que ali existiriam: o entusiasmo do menino que morava em São Paulo há menos de um mês.
Na volta para casa, rosto encostado à janela do ônibus, ele acompanhava os feixes luminosos paridos pelos postes. Um dia vou trabalhar num prédio como o que estou construindo. Retratos na parede, ar gelado, poltrona preta, gravata e charuto. Alisando a calça, pensava no futuro farto até que a mão redescobriu o objeto. Assim que o segurou, o ônibus deu um tranco, movimento tão brusco que jogou os oito passageiros ao assoalho aluminado. Correu para ver com o motorista, que soltava pelo para-brisa uma carreira de palavrões. Viu isso, cabra? Tomás balançou a cabeça para os lados. O desgraçado da van só pode ter dormido. Entrar assim na contramão! Por pouco, muito pouco, a gente não está batendo continência pra São Pedro agora. Tomás olhou para o objeto e apertou-o com força.
Deitado de barriga para cima, cama estreita, quarto estreito, kitnet estreita, o jovem assuntava que devia agradecer pelo livramento. O crucifixo na parede, o objeto sobre caixa de frutas que se passava por criado-mudo. Respirou como se resgatasse a escolha do assoalho do corpo:  o objeto e a cruz. Olhou novamente para a cruz, pegou o objeto, ajoelhou-se e se pôs a orar com ele entre as mãos. Em seguida, colocou-o dentro da fronha e apagou a luz.
O sol ainda sonolento espreitou Tomás caminhando ao orelhão. Oitenta e nove passos, ele recontou. Mãe, benção! Sonhei com a senhora. Sonho bom, Tomás? Foi sim, mãe. A senhora se curava desta doença maldita. Pois saiba que estou bem melhor desde a última vez que você ligou. A quimioterapia está dando certo. Nossa, mãe, não sabe o alívio que me entrega por este fio! As coisas estão se ajeitando, meu filho! Tomás apertou o objeto.  Vão ficar mais no jeito, mãe. Certeza. Tenho orgulho da sua fé. A senhora ainda pensa bastante no pai? Não ouviu a resposta de Marilsa: os quatro créditos do cartão haviam se consumado.
Ao trabalho, chegou como se o sol saísse do rosto. À terra, cedeu a pele semi-escura e os braços longos e magros, feito um fiel que se entrega à palavra. Cavou, cavou e, assim, passou o dia. O engenheiro cumprimentou-o, Tomás, você tem futuro; o mestre de obras perguntou como andava a vida em São Paulo. As palavras acolchoadas, dirigidas a um operário com nome, despertaram olhos trincados entre os colegas, exceto em Osvaldo, tratorista que o recebera em seu primeiro dia de obras. Tomás alcançou os cochichos, mas não se deu às mesquinharias: agarrou o objeto (que agora vinha num cordão pendurado no pescoço, por dentro do macacão cinza), fechou os ouvidos e continuou cavando. Os pensamentos não desgrudavam do objeto. O objeto. Tomás, então, arrazoou que o objeto precisava de um um modo próprio pra ser chamado. O pai e a mãe botaram meu nome em agradecência ao santo. Franziu as sobrancelhas e cravou os olhos no amuleto roliço. Pois vou colocar o nome dos dois. Misturado. Jomar! Repetiu “Jomar” por quatro vezes e julgou o som truncado. Parece caminhão freando. Josemara! Ouvindo a criação a sair pela boca, envergonhou-se pelo desjeito em juntar sílabas. Após certa quietude das ideias, chegou em Majô. Majô? Avaliou outras possibilidades, mas deu-se por satisfeito com o batismo. Isso, Majô!
Na manhã seguinte, trabalhava sem companhia num pedaço considerável de terra, quando viu algo reluzir no fundo do buraco. Com a pá, coração empurrando os braços, apanhou a pedra de aproximadamente quatro centímetros de diâmetro. Por minutos, ficou com ela a meio palmo da vista. Respiração aos solavancos. Mordeu a pedra, olhou de novo, cheirou. Ouro, porra! Observou em volta, ninguém por perto. Ouro, caralho! Meteu a pepita no porta-níquel e beijou Majô várias vezes.
Passados dois dias, foi convidado para o bingo que aconteceria naquela noite. Mas é igreja católica, Osvaldo! E qual o problema? Você não tem que se ajoelhar diante de santo, homem! O evento é no salão vizinho. E vai ter um bocado de prêmio bom! Tomás sorriu com o corpo inteiro ao pensar no não-acidente, nas palavras do engenheiro, na melhora da mãe e na pepita de ouro.
Começaram a bingar assim que entraram no galpão. Uma hora e meia depois, doze cartelas rabiscadas sobre a mesa, um frango assado era a única coisa que tinham ganhado. Eis que foi anunciado o prêmio máximo: um celular, destes em que se fala mais com os dedos que com a boca. Tomás apertou Majô por baixo da camisa polo. A cada número cantado, os dedos friccionavam o amuleto. Cinquenta e oito. Vinte. Quarenta e nove. Faltam só dois, Tomás! Bota fé. Vinte e oito. Caralho, só um, agora! Tomás tirou o patuá do pescoço e, feito um rosário, enrolou o cordão entre os dedos. Sessenta e dois. Trinta e três. Bingo! Ganhei! Ele pulou da cadeira e beijou Majô como se ali habitasse uma das moiras.
No caminho de volta para casa, motorista, cobrador e os dois colegas no ônibus. Osvaldo, uma vista no celular e outra no amuleto, arremessou: Sorte pouca é bobagem. Pois a sorte não mora no acaso! Tomás guardou o celular e apertou Majô que dançava no peito conforme os sacolejos do ônibus. Osvaldo continuou lambendo o patuá com os olhos. Não sabia que você era tão acriançado, Tomás. Então veja o que a criança aqui encontrou. Osvaldo retesou. Não pediu para segurar a pepita, apenas aproximou os olhos dos dedos de Tomás que se precavia em mostrar a pedra usando como biombo o encosto da cadeira da frente. Rapaz, será que é ouro de verdade? Ora, é claro. Reconheço ouro até de longe. Então você está rico, Tomás! Osvaldo abraçou o colega, primeiro abraço de homem que Tomás sentia em seus vinte e um anos de vida. Mas, se quiser confirmar se é ouro mesmo, conheço um senhor que mexe com isso há muito tempo. Não, não precisa!
Dormiu mal. Acordou quarenta minutos antes do necessário. Logo que chegou à obra, encontrou Osvaldo. Pensou em puxar assunto, perguntar qualquer coisa sobre a pepita, queria uma resposta que maquiasse sua aflição, mas apenas cumprimentou-o com um gesto emprestado. Na pausa do almoço, correu a habilitar o celular. Ainda dentro da loja, telefonou para o número dado pelo colega. Em seguida, telefonou para Marilsa. Como a senhora está? Estou ótima, até fiz caminhada hoje de manhã. Tomás soltou um suspiro. Tenho uma novidade: ganhei um celular no bingo ontem. Sério, juro! Agora, a senhora consegue falar comigo quando quiser. É só ligar a cobrar neste número. Anota aí.
A tarde escorreu áspera. Tomás estava decidido a desmarcar a visita ao ourives, mas foi maior a vontade de rebater com provas a pergunta cética de Osvaldo. É claro que é ouro de verdade!

O relógio da praça batia vinte horas pouco antes de Tomás pressionar a campainha. Boa noite, falei com o senhor no almoço. Tomás entrou, observou a saleta penumbrosa e, olhos nos olhos do velho, arrancou a pedra da carteira. Quanto o senhor dá? O ourives acendeu o abajour sobre o balcão, botou o monóculo e deitou o rosto sobre a pepita. Ouvia-se o ventilador chiando no teto, nada mais. O homem, então, pôs-se a falar lentamente. As palavras sussurradas vincaram o rosto de Tomás e ele, de súbito, arrancou a pedra da mão enrugada. Rebateu a sentença do avaliador com tanta veemência que não escutou o toque do celular. Ouviria, horas mais tarde, a mensagem na secretária eletrônica: Tomás, é a vizinha da Marilsa, vi seu celular anotado num pedaço de papel, pregado na geladeira. Não tenho boas notícias. Retorne neste número o mais rápido que puder. 

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