Tomás
espiou de esgueio, reespiou, o que será isso?, limpou a terra do objeto na
calça grossa e meteu-o no bolso como se, com mais alguns segundos de
observação, aquela coisa verde e cilíndrica fosse capaz de sugar seu espírito.
Deus me livreguarde! Ele não permitiu que Deus o livrasse. Antes, guardou o objeto
como se a mão esquerda fosse autônoma; escondeu-o, talvez, porque não quisesse
que os companheiros compartilhassem sua descoberta. Mas disso o jovem não desconfiava;
se semelhante sentimento existia, estava no útero da mente. Recolocou as luvas,
os óculos de acrílico, ajeitou o capacete e voltou a cavar aquele solo que não era
dado a gracejos.
O
sol parecia realçar, nos ombros dos operários, os gritos do mestre de obras. Até
o final da semana as estruturas têm que estar aterradas, ouviram bem? Tomás não
ouviu, Tomás não sentiu o sol. Tomás, com a britadeira a pular entre as mãos, lia
as ordens nos lábios do chefe. Ouvir, ouvia apenas as moedas que caíam em seu
cofre a cada metro que fazia ceder a terra.
Apontando
na prancheta, o engenheiro explicava sobre as futuras torres, prédios
comerciais. O mestre de obras escutava, não com mais atenção que Tomás, apesar
dos metros que o separavam da
conversa. Curioso pela curiosidade do operário, o engenheiro convidou-o a se aproximar. Tomás absorveu como pôde as palavras bem abraçadas daquele homem e, embora não tenha compreendido completamente o esboço no papel, ficou impressionado com os prédios que ali existiriam: o entusiasmo do menino que morava em São Paulo há menos de um mês.
conversa. Curioso pela curiosidade do operário, o engenheiro convidou-o a se aproximar. Tomás absorveu como pôde as palavras bem abraçadas daquele homem e, embora não tenha compreendido completamente o esboço no papel, ficou impressionado com os prédios que ali existiriam: o entusiasmo do menino que morava em São Paulo há menos de um mês.
Na volta para casa, rosto encostado à
janela do ônibus, ele acompanhava os feixes luminosos paridos pelos postes. Um
dia vou trabalhar num prédio como o que estou construindo. Retratos na parede, ar
gelado, poltrona preta, gravata e charuto. Alisando a calça, pensava no futuro
farto até que a mão redescobriu o objeto. Assim que o segurou, o ônibus deu um
tranco, movimento tão brusco que jogou os oito passageiros ao assoalho
aluminado. Correu para ver com o motorista, que soltava pelo para-brisa uma
carreira de palavrões. Viu isso, cabra? Tomás balançou a cabeça para os lados. O
desgraçado da van só pode ter dormido. Entrar assim na contramão! Por pouco,
muito pouco, a gente não está batendo continência pra São Pedro agora. Tomás olhou
para o objeto e apertou-o com força.
Deitado de barriga para cima, cama
estreita, quarto estreito, kitnet estreita, o jovem assuntava que devia
agradecer pelo livramento. O crucifixo na parede, o objeto sobre caixa de
frutas que se passava por criado-mudo. Respirou como se resgatasse a escolha do
assoalho do corpo: o objeto e a cruz. Olhou
novamente para a cruz, pegou o objeto, ajoelhou-se e se pôs a orar com ele
entre as mãos. Em seguida, colocou-o dentro da fronha e apagou a luz.
O sol ainda sonolento espreitou Tomás caminhando
ao orelhão. Oitenta e nove passos, ele recontou. Mãe, benção! Sonhei com a
senhora. Sonho bom, Tomás? Foi sim, mãe. A senhora se curava desta doença
maldita. Pois saiba que estou bem melhor desde a última vez que você ligou. A
quimioterapia está dando certo. Nossa, mãe, não sabe o alívio que me entrega
por este fio! As coisas estão se ajeitando, meu filho! Tomás apertou o
objeto. Vão ficar mais no jeito, mãe. Certeza.
Tenho orgulho da sua fé. A senhora ainda pensa bastante no pai? Não ouviu a
resposta de Marilsa: os quatro créditos do cartão haviam se consumado.
Ao trabalho, chegou como se o sol saísse
do rosto. À terra, cedeu a pele semi-escura e os braços longos e magros, feito
um fiel que se entrega à palavra. Cavou, cavou e, assim, passou o dia. O engenheiro
cumprimentou-o, Tomás, você tem futuro; o mestre de obras perguntou como andava
a vida em São Paulo. As palavras acolchoadas, dirigidas a um operário com nome,
despertaram olhos trincados entre os colegas, exceto em Osvaldo, tratorista que
o recebera em seu primeiro dia de obras. Tomás alcançou os cochichos, mas não se
deu às mesquinharias: agarrou o objeto (que agora vinha num cordão pendurado no
pescoço, por dentro do macacão cinza), fechou os ouvidos e continuou cavando.
Os pensamentos não desgrudavam do objeto. O objeto. Tomás, então, arrazoou que
o objeto precisava de um um modo próprio pra ser chamado. O pai e a mãe botaram
meu nome em agradecência ao santo. Franziu as sobrancelhas e cravou os olhos no
amuleto roliço. Pois vou colocar o nome dos dois. Misturado. Jomar! Repetiu
“Jomar” por quatro vezes e julgou o som truncado. Parece caminhão freando.
Josemara! Ouvindo a criação a sair pela boca, envergonhou-se pelo desjeito em
juntar sílabas. Após certa quietude das ideias, chegou em Majô. Majô? Avaliou
outras possibilidades, mas deu-se por satisfeito com o batismo. Isso, Majô!
Na manhã seguinte, trabalhava sem
companhia num pedaço considerável de terra, quando viu algo reluzir no fundo do
buraco. Com a pá, coração empurrando os braços, apanhou a pedra de aproximadamente
quatro centímetros de diâmetro. Por minutos, ficou com ela a meio palmo da
vista. Respiração aos solavancos. Mordeu a pedra, olhou de novo, cheirou. Ouro,
porra! Observou em volta, ninguém por perto. Ouro, caralho! Meteu a pepita no
porta-níquel e beijou Majô várias vezes.
Passados dois dias, foi convidado para o
bingo que aconteceria naquela noite. Mas é igreja católica, Osvaldo! E qual o
problema? Você não tem que se ajoelhar diante de santo, homem! O evento é no
salão vizinho. E vai ter um bocado de prêmio bom! Tomás sorriu com o corpo
inteiro ao pensar no não-acidente, nas palavras do engenheiro, na melhora da
mãe e na pepita de ouro.
Começaram a bingar assim que entraram no
galpão. Uma hora e meia depois, doze cartelas rabiscadas sobre a mesa, um
frango assado era a única coisa que tinham ganhado. Eis que foi anunciado o
prêmio máximo: um celular, destes em que se fala mais com os dedos que com a
boca. Tomás apertou Majô por baixo da camisa polo. A cada número cantado, os
dedos friccionavam o amuleto. Cinquenta e oito. Vinte. Quarenta e nove. Faltam
só dois, Tomás! Bota fé. Vinte e oito. Caralho, só um, agora! Tomás tirou o
patuá do pescoço e, feito um rosário, enrolou o cordão entre os dedos. Sessenta
e dois. Trinta e três. Bingo! Ganhei! Ele pulou da cadeira e beijou Majô como
se ali habitasse uma das moiras.
No caminho de volta para casa, motorista,
cobrador e os dois colegas no ônibus. Osvaldo, uma vista no celular e outra no amuleto,
arremessou: Sorte pouca é bobagem. Pois a sorte não mora no acaso! Tomás guardou
o celular e apertou Majô que dançava no peito conforme os sacolejos do ônibus.
Osvaldo continuou lambendo o patuá com os olhos. Não sabia que você era tão
acriançado, Tomás. Então veja o que a criança aqui encontrou. Osvaldo retesou.
Não pediu para segurar a pepita, apenas aproximou os olhos dos dedos de Tomás
que se precavia em mostrar a pedra usando como biombo o encosto da cadeira da
frente. Rapaz, será que é ouro de verdade? Ora, é claro. Reconheço ouro até de
longe. Então você está rico, Tomás! Osvaldo abraçou o colega, primeiro abraço de
homem que Tomás sentia em seus vinte e um anos de vida. Mas, se quiser
confirmar se é ouro mesmo, conheço um senhor que mexe com isso há muito tempo. Não,
não precisa!
Dormiu mal. Acordou quarenta minutos
antes do necessário. Logo que chegou à obra, encontrou Osvaldo. Pensou em puxar
assunto, perguntar qualquer coisa sobre a pepita, queria uma resposta que maquiasse
sua aflição, mas apenas cumprimentou-o com um gesto emprestado. Na pausa do
almoço, correu a habilitar o celular. Ainda dentro da loja, telefonou para o número
dado pelo colega. Em seguida, telefonou para Marilsa. Como a senhora está?
Estou ótima, até fiz caminhada hoje de manhã. Tomás soltou um suspiro. Tenho
uma novidade: ganhei um celular no bingo ontem. Sério, juro! Agora, a senhora
consegue falar comigo quando quiser. É só ligar a cobrar neste número. Anota
aí.
A tarde escorreu áspera. Tomás estava
decidido a desmarcar a visita ao ourives, mas foi maior a vontade de rebater
com provas a pergunta cética de Osvaldo. É claro que é ouro de verdade!
O relógio da praça batia vinte horas
pouco antes de Tomás pressionar a campainha. Boa noite, falei com o senhor no
almoço. Tomás entrou, observou a saleta penumbrosa e, olhos nos olhos do velho,
arrancou a pedra da carteira. Quanto o senhor dá? O ourives acendeu o abajour
sobre o balcão, botou o monóculo e deitou o rosto sobre a pepita. Ouvia-se o
ventilador chiando no teto, nada mais. O homem, então, pôs-se a falar
lentamente. As palavras sussurradas vincaram o rosto de Tomás e ele, de súbito,
arrancou a pedra da mão enrugada. Rebateu a sentença do avaliador com tanta
veemência que não escutou o toque do celular. Ouviria, horas mais tarde, a mensagem
na secretária eletrônica: Tomás, é a vizinha da Marilsa, vi seu celular anotado
num pedaço de papel, pregado na geladeira. Não tenho
boas notícias. Retorne neste número o mais rápido que puder.
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