sexta-feira, 25 de agosto de 2017

CONTOS CORRENTES

Incidente na academia de ginástica
(Regina Baptista)                                               

A malhação atrasou um pouco porque a professora estivera reunida com a direção da academia de ginástica e com a equipe de televisão que fazia uma visita. Era coisa simples: a equipe queria entrevistar alguns alunos com duas ou três perguntinhas e fazer algumas imagens do grupo fazendo ginástica. A professora Cybele, aquela mulherzinha elétrica e dinâmica, chegou à sala com o mesmo alto astral de sempre, ligou o aparelho de som, cumprimentou os alunos e colocou todo mundo para movimentar. É verdade que em meio à improvisada e rápida reunião, Cybele não viu esclarecido afinal qual o momento em que a equipe de TV entraria na sala para a reportagem. Mas não estava preocupada com detalhes, presumia que ela esperaria terminar a aula para só então fazer as entrevistas e filmar os alunos simulando os exercícios, especialmente para a reportagem. Não cogitou a hipótese de a câmera entrar para registrar o momento real e por isso não avisou nada aos alunos sobre a visita da TV. Pretendia fazer isto no final da aula, ocasião em que também deixaria os alunos livres para participar da matéria ou ir embora. Só quando a equipe entrou de repente na sala foi que Cybele percebeu que não prestara a devida atenção no que ficou combinado durante a reunião, mas a surpresa não era nada que lhe tirasse a concentração. Animada, a professora anunciou rapidamente a presença da equipe e instruiu:
_ Aí, pessoal, vamos dar uma paradinha enquanto a TV entrevista vocês, OK?
A presença repentina de uma equipe de reportagem ou mesmo de um camera-man sozinho, em qualquer ambiente, sempre causa um sentimento constrangedor no início. Só depois é que vai-se acostumando com a ideia e se soltando devagarzinho. Mas se o período de adaptação é muito curto, se a equipe está com uma certa pressa em fazer o trabalho e não oferece chance dos entrevistados meditarem... então há aí um risco sério. Pois não é que os alunos não tiveram tempo nem de recuperar
o fôlego dos exercícios?! Gilberto, a princípio, como a maioria dos colegas, só se preocupou de imediato com a possibilidade de estar suado e despenteado para aparecer na televisão. A preocupação aumentou quando percebeu que a repórter Lúcia Tornado, depois de um breve rastreamento com os olhos vivos, saiu em sua direção, arrastando consigo o câmera e um outro assistente.
Quando o corpo está exausto, a cabeça naturalmente se precipita a seguir os impulsos porque não dispõe de muita energia. E além disso quando a exaustão física está aliada à surpresa, como foi o caso de Gilberto, a reflexão se torna ainda mais difícil. Ainda que a entrevista fosse antecipada por um protocolo rápido em que Lúcia Tornado se apresentava e perguntava o nome completo e a idade de seu entrevistado... ainda que ela parecesse a ele bem simpática e ainda que ele não se lembrasse de nenhum ato seu que tornasse imprudente a sua aparição pública, ele não se preparou... ou melhor, ele não imaginou que a questão levada a ele pela repórter fosse tão delicada.
_ Por que você malha, Gilberto? – perguntou Lúcia, sem nenhum ensaio.
_ Por quê? - disse Gilberto, sentindo um bambear de pernas apenas pelo fato de estar na mira da câmera. – Porque... Pra... Porque.... É... pra conseguir sair com mulheres saradas, ora! Quem não quer ter uma mulher com tudo em cima? Não é mesmo? Mas pra isso, o homem também tem que se cuidar...
Lúcia ainda permaneceu com o microfone à disposição de Gilberto por alguns segundos mas a resposta parecia encerrar-se ali. Ela fez um gesto de agradecimento e passou o microfone para uma aluna do lado. Gilberto, aliviado pelo fim do confronto, ainda notou que a pergunta se repetia aos seus colegas, só não prestou atenção nas respostas porque já estava mais preocupado com o tempo que aquele imprevisto tomaria e o consequente atraso que ele acarretaria à aula. Se não tivesse compromisso depois dali, não se importaria, mas justo naquele dia tinha que chegar ao escritório mais cedo para um despacho urgente.
Felizmente o trabalho todo não demorou mais do que dez minutos. Lúcia e sua equipe agradeceram a todos, se despediram e saíram, deixando Gilberto com a sensação boa de volta à normalidade e de que a rápida passagem da jornalista pela sua vida não interferiria nos seus compromissos do dia.
Depois da aula, já de corpo lavado, a circulação desacelerada, enquanto se dirigia para o escritório, Gilberto deixou vir-lhe à cabeça um pensamentozinho incômodo. Sem entender o porquê, se via obrigado a relembrar a pergunta de Lúcia Tornado e sua resposta na sequência. Essa recordação involuntária o perseguiu até o escritório. Era de se esperar que assumindo os afazeres do dia, aquele incômodo desapareceria. Mas não. Gilberto continuou entregue à lembrança da entrevista como se sentisse a necessidade de dizer à Lúcia: “Corta, corta, não era bem isto que eu ia dizer”. Mas porque esta necessidade parecia tão urgente sendo que não havia mais como “cortar”? E se houvesse tal possibilidade, se a sensação incômoda tivesse se manifestado antes e ele tivesse mudado a sua resposta a tempo, o que diria então?
O contínuo estava de papo com a secretária de Gilberto, enquanto aguardava o despacho e seu chefe parecia até um iniciante; não conseguia encerrar o relatório que deveria enviar para a matriz da sua firma.
_ Pronto, seu Gilberto? – perguntou o contínuo alertado pela secretária que sabia da emergência da entrega e além disso, queria se ver livre do contínuo.
_ Calma aí. – fez Gilberto, caindo em si sobre a passagem do tempo e a dificuldade de concluir o relatório. - Que coisa! Onde é que eu estava mesmo? – perguntou a si próprio.
_ Quer ajuda? – perguntou a secretária.
_ Não. É só terminar isso e pronto.
_ Não está faltando nada? – insistiu a moça.
_ Não. Está tudo aqui. Eu já estou acabando. – respondeu ele assustado com a surpreendente ausência de espírito. Seus olhos liam repetidamente os dados dos gráficos que serviam de base para o relatório, cuja maior parte já havia escrito no dia anterior e com muita tranquilidade; mas sua mente teimava em absorver sua concentração para a sala de ginástica da academia e o impedia de concluir a ideia do texto. Faltava pouca coisa, uma frase de umas dez linhas talvez e estaria tudo pronto para ser despachado. Gilberto chegava a ensaiar a frase mas logo via, em pensamento, Lúcia Tornado e sua equipe ali plantados diante de si, arrancando da sua boca palavras que até então estavam abstraídas na sua consciência: “Pra sair com mulheres saradas...”, pensava confuso, “Que diabos foi isso? O que eu quis dizer com isso?”
_Quer que eu vá guardando os papéis no envelope, seu Gilberto? - se prontificou o contínuo, querendo adiantar o serviço.           
_ Não, obrigado. Eu preciso deles em cima da mesa para conferir os dados e encerrar o relatório. Depois eu mesmo guardo.
_ Tudo bem.
Os gráficos começavam a parecer turvos diante dos olhos insistentes que se esforçavam para transmitir ao cérebro uma conclusão segura no relatório. Por outro lado, as frases ditas na academia eram tão vivas que se confundiam com o som real das vozes do contínuo e da secretária, que mantinham a conversa a três passos da mesa de Gilberto.
“... o homem tem que se cuidar... para sair com mulheres saradas...” – as frases batiam como tambores na cabeça de Gilberto.
_ Meu Deus eu não consigo encerrar essa merda!
A secretária e o contínuo tomaram a frase como um pedido de silêncio mas logo perceberam que não eram os únicos culpados pela dificuldade de concentração do chefe. Gilberto olhava para eles, não com um olhar de repreensão, mas de pedido de socorro.
_ Eu não sei o que está acontecendo comigo. Ontem à noite eu escrevi praticamente o relatório todo, só ficou faltando uma conclusão. Ela já estava na minha cabeça mas como eu estava cansado resolvi deixar para escrever hoje... Só que agora eu não consigo pensar...
_O senhor esqueceu o que ia escrever? – perguntou o contínuo.
_ Eu acho que não deveria ter dito aquilo. – assoprou Gilberto sem perceber que seus pensamentos estavam saindo pela boca. A secretária ficou confusa:
_ Quer dizer que não deveria ter escrito aquilo, não é? Mas, aquilo, o quê?
_Eu não estou falando do relatório. É outra coisa. – respondeu o rapaz, percebendo enfim o grau da sua desconcentração. – Façam silêncio, por favor, eu vou reler o texto pela quarta vez e ver se encontro o que está faltando.
Os dois funcionários cerraram os lábios; motivados por uma espécie de compaixão, fizeram uma torcida silenciosa para que os neurônios do chefe cumprissem sua vontade, sem saberem porém que a vontade de Gilberto de encerrar o relatório estava disputando com sua vontade de voltar no tempo, pelo menos duas horas atrás, para desfazer um feito. A cada frase relida do texto, a cada nova comparação dos gráficos, a voz imponente de Lúcia Tornado invadia sua cabeça como que acionada por um sino e este sino nada mais era do que o final da cada frase lida. Gilberto se desesperou e desabafou para os subalternos:
_ Não adianta, meu cérebro está me traindo. Eu leio e é como lesse em língua estrangeira, não entendo nada. Em cada final de frase eu me perco, não consigo juntar à frase anterior. Não consigo ler como uma coisa só.
_ Credo, seu Gil! – se assustou o contínuo. – O senhor precisa ir ao médico.
_ Médico! – repetiu Gilberto. – Será que eu preciso de médico!?... Não. Eu preciso ir à academia. – disse, como se lhe aparecesse uma luz e tivesse que segui-la antes que ela se apagasse ou fosse ofuscada pela neblina de suas preocupações com o trabalho.
Desviou o olhar da papelada para o telefone e imediatamente se apossou dele. Enquanto discava apreensivo, o contínuo e a secretária assistiam pasmos à repentina expressão de ansiedade do homem que sempre se apresentou como o mais tranquilo e seguro de todos os chefes da empresa. A menção da palavra academia dita por Gilberto fez aumentar a expectativa dos dois funcionários em torno da aparente amnésia ou fosse lá o que estivesse atrapalhando a cabeça do chefe. A espera pelo atendimento do outro lado da linha fazia Gilberto movimentar os olhos como a vasculhar-se por dentro, à procura das palavras que pretendia usar para se fazer entender, em meio a uma situação que a ele próprio não estava clara. Os funcionários se entreolharam por duas vezes antes que o chefe fosse atendido:
_ Alô, é da academia Movimente? Eu posso falar com a Cybele? Eu preciso muito falar com ela.... Ah! Está ocupada... Não, não, não precisa anotar recado. Eu vou até aí e espero ela terminar. Está bem? Obrigado. Por favor, se ela terminar antes de eu chegar, avise que estou a caminho. Obrigado.
Com a mesma determinação que anunciou a visita, Gilberto juntou os papéis que se espalhavam pela mesa, guardou tudo numa gaveta e antes que os dois funcionários perguntassem, respondeu:
_ Sinto muito, mas o relatório vai ter que ficar para depois. Se ligarem da matriz cobrando, digam que eu precisei resolver uma emergência pessoal.
Quando um executivo promissor abandona a mesa de trabalho dizendo que foi resolver uma emergência pessoal, é de se acreditar que a coisa seja definitivamente grave. Gilberto, para quem bem o conhecia, jamais tomaria tal atitude se não estivesse mesmo prestes a sofrer um desastre; e ainda que dissesse se tratar de uma emergência pessoal, seus patrões deveriam considerar que há certas ocasiões em que um simples transtorno na vida íntima de um talentoso executivo pode comprometer o seu desempenho profissional. Gilberto sabia que os patrões, surpresos com sua atitude, investigariam com a secretária, o que acontecera afinal. Ela então contaria que seu chefe tivera uma repentina amnésia ou coisa parecida; e que ele se ausentara justamente para chegar à fonte do problema, pois pelo menos a sua capacidade de avaliar o súbito problema de saúde não havia se comprometido, ao que tudo levava a crer. A preocupação dos superiores seria então substituída por admiração pela tamanha presença de espírito do rapaz. Por isso ele saiu do escritório bastante seguro com relação à possível acolhida dos superiores à sua fuga, e ao mesmo tempo, com um grande sentimento de ansiedade e medo... medo de algo que na verdade ainda não se revelava com clareza, mas anunciava, por um eco, que ele estava a um passo de morrer de arrependimento.
Durante a espera por Cybele, enquanto Gilberto andava de um lado para outro na recepção da academia, um mal-estar que lhe consumia foi finalmente ganhando nitidez em sua cabeça. Ele percebia enfim que o que sua consciência queria lhe mostrar é que a frase dita à repórter Lúcia Tornado na entrevista pela manhã, tinha um efeito forte demais e oferecia chances de interpretações que poderiam causar diversas reações no público, desde as mais simpáticas, que com certeza seriam apresentadas pelo público feminino vaidoso, até as de repúdio, que caberiam aos homens que ainda conservam um machismo arcaico – e não se intimidam por serem em menor número do que em séculos anteriores – passando pelas reações eufóricas dos milhares que prazerosamente ririam até deslocar o maxilar. E ainda haveria a reação dividida do público feminino emancipado em que uma parte sentiria talvez culpa e a outra, um gosto melado de triunfo. Isto tudo sem falar naqueles que viriam em Gilberto um homem sem qualquer personalidade, um pobre coitado que, desesperado, declara à Televisão que se envergonha de seu corpo, que sente medo da rejeição e que não vê outra alternativa para seus tormentos senão escravizar-se num aparelho de ginástica.
A constatação desse quadro explosivo fez Gilberto suar frio. Agora a emergência pessoal realmente fazia sentido. E Cybele continuava na sala, trabalhando, alheia à sua aflição; logo ela que foi, mesmo sem perceber, meio cúmplice do incidente, estava lá, enérgica, forte e indiferente ao orgulho ferido de um macho. Gilberto se levanta, anda pra lá e pra cá, estala os dedos e finalmente decide ir à sala de aula pedir licença e interromper Cybele.
_ Gil, você aqui!
_Cybele, o que eu quero com você é rapidinho. – diz ele aflito. – Eu só preciso saber sobre a reportagem que fizeram hoje aqui.
_ O que você quer saber?
_ Sobre o que tratava a matéria?
_ Eu acho que era sobre... Eu sei lá! Por quê?
_ Cybele, você sabia que a Lúcia Tornado iria nos entrevistar...
_Sim, sabia.
_ Então você deve saber para que assunto era a entrevista. Do que se tratava?
_ Gil, eu confesso que não sei ao certo. Quando a Lúcia foi apresentada a mim, ela já tinha falado com a administração da academia; a reportagem já estava acertada. Eu não tomei conhecimento sobre detalhes. Quando me pediram permissão para filmar a turma, eu simplesmente concordei.
Gilberto queria brigar com a professora pelo que ele achava uma grande irresponsabilidade, mas se continha acreditando que o mais desastroso de todos era ele próprio. Mesmo assim, só para se livrar um pouco da ansiedade, despejou sobre Cybele uma espécie de fúria:
_ Como você concordou com um negócio desses sem nem ao menos nos avisar?! Como é que você expõe a gente assim, Cybele?            
_ Eu ia falar sobre a equipe quando terminasse a sessão, só que eles entraram antes dela terminar. Mas afinal, Gil, que mal há nisso? Eles não filmaram vocês pelados. O que tem de errado em fazer ginástica?
_Não tem nada de errado em fazer ginástica, não tem nada de errado em aparecer malhando na televisão; só que eu queria ser avisado. Droga!
_ Me desculpe! Foi mal! Olha, se você acha tão importante assim saber em que sua imagem vai ser usada, pergunte ao pessoal da administração da academia. A equipe deve ter dito a eles...
Gilberto saiu em disparada até o andar da administração, sem nem ao menos se despedir de Cybele, o que logo lhe causou uma sensação de remorso, mas nem teve tempo de ensaiar em pedido de desculpas pois assim que chegou ao andar, percebeu que a administradora estava desocupada, sentada no sofá da recepção e conversando com a sua secretária como se aguardasse por Gilberto.
_ Oi, Helena! Eu posso ter uma palavrinha contigo?
_ Claro, pode falar. – disse a mulher sem se mover do sofá.
A presença de uma terceira pessoa, a secretária da administração, a princípio causou um pouco de constrangimento mas havia a urgência de uma resolução e Gilberto decidiu ignorar os obstáculos menores para conservar energia para os maiores que estavam por vir, com certeza. É que já estava claro para ele que a única forma de impedir que sua imagem fosse veiculada era ir até a sede da sucursal da TV, o que, considerando que seria a primeira vez que faria isto, levaria algum tempo até se adaptar ao meio e controlar a situação da melhor forma possível. Ele não sabia como funcionavam os bastidores dos programas jornalísticos da emissora, não sabia quais eram os procedimentos que teria que enfrentar para se fazer atendido, não sabia nem mesmo para qual dos programas Lúcia Tornado fizera a reportagem, não sabia qual o fundamento da entrevista e nem quanto tempo tinha antes que a sua frase mal pensada fosse ao ar.
_ É o seguinte, Helena. Eu preciso saber para quê a Lúcia Tornado nos entrevistou hoje de manhã. Sobre o que era a matéria? Era sobre saúde?
_ Não, querido. Era sobre vaidade masculina. Por quê?
_ Vaidade ma... masculina?! Tem certeza?
_ Foi isto que a Lúcia disse. Por quê?
Se havia alguma dúvida sobre o anúncio do desastre, Gilberto a eliminou nesse momento. Sua última esperança residia na hipótese da reportagem tratar sobre a saúde porque assim sua participação estaria fora do contexto e consequentemente a fase de edição a descartaria. Mas se o assunto era vaidade masculina, o pesadelo só estava começando.
_Em qual programa a matéria será veiculada, Helena?
_ Calma, meu bem. O que está acontecendo? Por que você está pálido assim? – disse a mulher até um pouco assustada.
_ Em qual programa?
_ Naquele de variedades. – respondeu ela com a voz mais grave, depois de um solavanco por causa da exaltação de Gilberto. – Como é mesmo o nome, Tânia? – virou-se para a secretária. – É... É... “Tarde animada”. É isto? Bom, é aquele que passa ao meio-dia.
_ Minha nossa! – disse ele já se virando para ganhar a escada e praticamente deslizar por ela rumo ao térreo.
Não se importou com as perguntas e caras de espanto que deixou para trás. Tudo que importava agora era cumprir a maratona de percurso quase desconhecido até a sucursal. Não havia tempo para procurar uma lista telefônica para saber o endereço da TV, então na rua, de dentro do carro parava de vez em quando e perguntava aos transeuntes que lhe pareciam bem informados, se sabiam onde ficava a sucursal da TV fulana de tal.
As pessoas que colaboravam com informação sem nem mesmo entender a dimensão do seu drama, eram deixadas para trás como tudo aquilo que um dia teve importância para este cidadão simples que nunca quis mais do sair com mulheres bonitas e vistosas e no entanto era para se salvar do ridículo de querer ser feliz que ele agora corria contra o tempo. O trajeto que lhe orientavam os desconhecidos na rua, parecia um túnel silencioso e escuro; não havia o que ensaiar para quando chegasse à TV, não havia exatamente um discurso, um argumento. O pedido seria feito mediante um impulso desesperado. Gilberto não conseguia nem mesmo imaginar a reação das pessoas com quem teria que se confrontar. Haveria algum procedimento burocrático que tumultuaria sua tarefa? Quantas pessoas teriam que ser consultadas? Quem seria o chefe da redação ou o responsável pela edição? Seriam pessoas flexíveis ou colocariam mil obstáculos para impedi-lo de intervir na edição? A quem teria que recorrer em caso de dificuldades? Talvez à própria Lúcia Tornado... ou não... Enfim, era melhor não pensar em nada. Era melhor fazer como fez de manhã na hora da entrevista surpresa: deixar fluir...
Mas a coisa tinha que ser feita; o trecho da reportagem em que Gilberto aparecia dando o braço a torcer ao sexo frágil, tinha que ficar de fora. E se o simples pedido não adiantasse, não convencesse os jornalistas da necessidade de excluí-lo da matéria, então teria que usar um pouco de força, alteração da voz como fizera na academia com Cybele e Helena, atitude incomum como foi a sua fuga repentina do escritório de trabalho em meio a um relatório que tinha urgência de ser enviado, radicalismo como fora a sua própria resposta cuspida sem meditação das consequências. “O arrependimento é uma sensação estranha; é amarga mas tem uma doçura disfarçada que parece anunciar o impossível, ou seja, que é possível mudar o passado”, pensava Gilberto associando as palavras, das quais se arrependera na entrevista, a alguns acontecimentos do passado, fatos que ajudaram a cultivar entre suas ideias, a ideia estúpida (mas que só agora lhe parecia estúpida) de que estamos sempre propensos à algum tipo de escravidão, sobretudo à escravidão ao próprio corpo. Sobre a possibilidade de mudar o passado... não estava pensando exatamente no instante da entrevista mas sim num passado mais distante, nos momentos em que se submeteu à educação estética e à tirania do desejo e seus caprichos. E concluía: “Quanto mais a gente tenta se convencer de que é impossível mudar o passado, esta doçura estranha do arrependimento nos mostra que se ele, o passado, não pode ser mudado, mesmo porque fugir à submissão de algumas coisas pode significar cair na submissão à outras, ainda assim, uma vez arrependido, nós podemos mudar os efeitos que esses acontecimentos provocaram na nossa cabeça. Sim, os efeitos... Nem sempre podemos controlar as palavras alheias e o tamborilar delas no nosso íntimo, mas podemos de alguma forma controlar os efeitos”.
Com esse pensamento Gilberto entendeu que era hora de mudar a visão; estava disposto e feliz com a decisão de abandonar a obsessão com o físico. “Que me queiram como eu sou!” declarou em pensamento, “Que aceitem o meu envelhecimento, eu não sou deus, não sou imortal. Que venham as pressões, os risinhos, as brincadeiras de mau gosto! Que venham!”
Apesar do sentimento aliviado de fazer as pazes consigo próprio, apesar de saber que acabava de receber uma carta de alforria, a ameaça do tornado se avizinhava cada vez mais. Gilberto olha o relógio; o tempo passa, o trânsito está ruim, as ruas são estreitas em algumas cidades do interior, os jornalistas estão trabalhando duro na TV, não têm ideia de que há alguém a caminho com o coração na mão a lhes pedir para parar tudo. E se não houver tempo para impedir a exposição, não haverá mais como se redimir. Como se espera que alguém o faça depois que um flagrante é publicado? Nenhuma experiência de vida no futuro, por mais forte que venha a ser, por mais bela que possa ser, traria a remissão de forma completa, justa como tem que ser, se a confissão for feita em praça pública. Seria necessário que tal experiência, a que trouxe a remissão, também seguisse o mesmo caminho, também triunfasse na televisão nos mesmos poucos segundos que certamente estavam destinados à gafe na academia de ginástica.
Gilberto, guiando-se pelos desconhecidos, chegava à porta da sucursal. Ele queria observar o prédio antes de entrar nele mas a meditação que acompanhava pedia que não se impressionasse com a tecnologia, a limpeza, as luzes, as pessoas de ar inteligente, a ordem, os computadores e tudo que haveria ali dentro; a meditação aconselhava a ser dono de si e confiante em si. Não importava se as pessoas ririam ou estranhasse o fato de alguém querer abrir mão dos seus quinze minutos de fama. Eles não tinham sido bem administrados mas Gilberto não usaria este argumento; diria apenas que tinha motivos para não querer ser visto na tela da TV naquela circunstância. A curiosidade dos outros talvez fosse inevitável e eles colocariam, como condição para dar acesso à chefia, a explicação de tais motivos. Gilberto, aí sim, alteraria a voz, faria um rápido discurso sobre o direito à privacidade. Os funcionários então perguntariam “por que o senhor não se preocupou com isto quando a Lúcia se aproximou do senhor para entrevista-lo”? E Gilberto se irritaria e diria que ficou intimidado, confuso... Enfim, insistiria mais uma vez para falar com o responsável pela edição. Talvez os funcionários dissessem que era impossível falar com ele pois faltavam poucos minutos para o programa ir ao ar e ele estava ocupado demais. Gilberto então tentaria furar a segurança, faria um escândalo, mandaria todo mundo pro inferno e certamente um funcionário engraçadinho ainda diria rindo “mas nós somos a sucursal do inferno”. Chorando de desespero, Gilberto entregaria os pontos e contaria tudo, em voz alta para que as recepcionistas, seguranças, faxineiros, todos ali na recepção pudessem entendê-lo e deixá-lo entrar na redação: “Senhores, em cometi uma gafe e não tive tempo de corrigir, foi tudo muito rápido; a Lúcia Tornado entrou, perguntou, eu respondi com sinceridade e ela saiu sem me dar chance de mudar a resposta. Senhores, o que eu disse pode me comprometer... eu tenho namorada, não é coisa muito séria mas eu gosto de estar com ela, talvez a coisa fique séria, talvez a gente até se case, mas por enquanto é só diversão. Senhores, eu falei demais na entrevista, disse o que não queria, minha namorada vai rir de mim quando me ver , e todas as minhas ex também. Senhores, eu não queria que me vissem assim, falando de fraquezas minhas na televisão, eu não quero que pensem que não sou feliz comigo e com meu corpo, eu não quero que percebam minha insegurança com as mulheres; na verdade as coisas não são assim como parecem. Eu não sou tão fraco como podem pensar mas o que eu disse e o modo como eu disse pode transmitir esta ideia. Eu tenho meus motivos para preferir isto e não aquilo, eu tive interferências poderosas na formação das minhas vontades, falaram coisas nos meus ouvidos que me deixaram preocupado com a minha boa forma, plantaram bobagens na minha cabeça que me deixaram complexado; mas ninguém nunca percebeu isto até agora. Por que querem me mostrar? Por que não me deixam em paz? Vocês não sabem qual a real situação, podem exagerar na dose e distorcer o que já não está nada bonito. Senhores, me tirem da matéria, por tudo que é sagrado!”
Ao entrar na recepção do prédio, Gilberto constatou que felizmente não precisaria fazer teatro na Televisão. Bastou apresentar um documento de identidade e a recepcionista sorridente lhe ensinou o caminho da Redação e lhe disse a quem deveria procurar lá. Cheio de esperança Gilberto seguiu o caminho labiríntico rezando para que o diretor do “Tarde animada” fosse bem amistoso e aceitasse subtrair da matéria justamente o depoimento mais interessante, aquele que - o próprio Gilberto reconhecia – era o que mais tinha a ver com o contexto da reportagem. “Mas ele há de aceitar”, torcia, “Se precisar, eu imploro de joelhos!”
Segundo o que a recepcionista informara, o último estágio era aquele em que estava agora. Mais alguns passos e Gilberto conseguiu ver uns quatro degraus que levavam a um piso inferior e lá no fundo, uma portinha com a placa “Redação”. O acesso era um corredor largo e estava tão branco e cheiroso que não havia dúvida de que havia acabado de receber a visita do pessoal da limpeza. De fato o pessoal tinha quase cruzado com Gilberto e uma faxineira, que fora a última a deixar o corredor, havia colocado na porta de onde caíam os quatro degraus, um pequeno e novo tapete que ainda não havia usado em nenhum lugar do prédio e nem experimentado naquele tipo de piso e por isso mesmo ninguém havia notado que o material do qual era feito, era impróprio para determinados pisos, aquele onde estava, por exemplo. Gilberto portanto era a primeira pessoa a estrear e comprovar o delicado atrito e a total falta de aderência entre o tapete e o piso. Talvez se a vítima fosse outra pessoa, um pouco mais atenta, só pelo olhar perceberia a incompatibilidade material. Mas como é que se pode prestar atenção em tapetes quando só se tem olhos para uma bendita porta que representa toda a esperança de se desfazer um erro terrível?
O acesso de degraus que tinha o tapete bem na beirada ficava a uns dois metros da porta da Redação, mas do ângulo de Gilberto parecia ser menos. Não teve tempo, entretanto, de conferir distância nenhuma porque, ao pisar sobre o tapete, foi surpreendido por um escorregão tão breve que era como se de repente o chão tivesse desaparecido. O momento da queda teve um quê de delícia. Era como se o corpo de repente lhe fosse tirado das costas. Aquele corpo que tanto lhe exigia sacrifícios por conta de uma mente sempre insatisfeita... Aquele corpo que tantos transtornos lhe causava com seu peso, sua forma, suas necessidades... Aquele corpo febril e desajustado com os desejos da alma, finalmente despencava de cima de si e deixava-o livre de todo peso, desconforto e fraqueza.
A delícia não estava só na libertação do peso mas também na sensação de desapropriação e por consequência, na libertação da consciência sobre a perfeição do corpo. À medida que o atrito entre os pés e o chão se perdia num absoluto descontrole de movimentos, o corpo parecia a Gilberto se desprender de si e ser arremessado para o espaço, solto de qualquer compromisso com a coordenação motora.
Às vezes as sensações que algumas circunstâncias nos causam tornam qualquer segundo de tempo, um período longo de gozo. Os segundos que duraram a queda de Gilberto foram de um prazer que ele jamais experimentara. Sua cabeça acompanhava de cima o movimento de tronco, pernas e braços caindo sem qualquer meio nem vontade imediata de ação para impedir-se tombar, como se o tapete, de súbito, se mostrasse um mensageiro do destino e, em grande estilo, lhe surpreendesse com aquele bloqueio, um imobilizador eficaz que atravessava seu caminho e encerrava sua corrida sem nem ao menos se anunciar; e como numa magia, separava seu corpo maldito de si e ainda lhe fornecia a satisfação de assisti-lo em plena queda.
Mas ao fim da operação da lei da gravidade, o êxtase do instante deu lugar a uma dor estúpida provocada por um impacto. É que ao tentar poupar as costelas de um choque com os degraus da escada, Gilberto, ao assumir o controle dos movimentos no auge da queda, conseguiu girar um pouco o dorso e com ele, a cabeça. A ideia relâmpago era conseguir administrar os prejuízos da melhor forma. Esse foi o seu erro: não havia ainda como medir a distância entre a cabeça e o degrau e nem a velocidade do giro que certamente foi maior do que a velocidade da própria queda. Além disso, os braços, nesse instante de retomada de controle, estavam meio que erguidos pelo susto do escorregão e não tiveram tempo suficiente para chegar ao chão quando houve o giro e apoiar o corpo de modo a amortecer o impacto. Resultado: a boca de Gilberto caiu sobre a beirada de um dos degraus com uma força louca, mas como estava aberta pelo susto e para absorver o ar que de repente lhe insuflara, os mais prejudicados foram os dentes, se bem que toda a região do rosto sofreu a força do impacto e ficou por uns minutos paralisada de dor. A boca, no entanto, se fechou logo em seguida à pancada numa tentativa tardia de proteger os dentes; estes portanto, estiveram expostos a todo o desfecho da queda e para traduzir a Gilberto a real dimensão do acidente, transformaram-se em estilhaços no interior da boca, estilhaços misturados com sangue e saliva. Gilberto, com a língua e as paredes da boca, podia contar os cacos que dançavam na mistura indigesta e houve mesmo, num primeiro impulso, o desejo de cuspir tudo e correr a uma torneira para se livrar dos restos daquilo tudo. Mas num segundo momento Gilberto pensou que, cuspindo os estilhaços junto com o sangue, poderia perder alguma coisa recuperável, pois alguns pedaços eram tão grandes que pareciam ser dentes inteiros que poderiam ter se quebrado da raiz e, quem sabe, poderiam ser reimplantados. Seu dentista era um profissional excelente, com certeza consertaria aquela situação, sem dificuldades.
Então Gilberto decidiu manter a boca fechada como um cofre de valores e com pequenas dores nos ombros e numa das coxas, abandonou o objetivo, a causa de tudo, e correu para o carro. Dirigiu-se para consultório do seu dentista onde pretendia se anunciar sem dizer uma palavra para não correr o risco de perder nada da boca. Deixaria que a própria mancha de sangue na sua roupa e os hematomas no lábio superior, o anunciassem por si só.
Enquanto estivesse sendo atendido pelo dentista, a matéria de Lúcia Tornado estaria sendo mostrada na televisão, mas Gilberto estava feliz em saber que no caso de alguém procurá-lo naquele momento para comentar a aparição e o depoimento, ele estaria ausente de qualquer lugar e impedido de falar por estar com a boca em tratamento.

Gilberto olhou para o relógio enquanto dirigia o carro. Faltavam alguns minutos para o programa ir ao ar. Acelerou rumo ao consultório odontológico que naquela tarde seria a sua proteção contra qualquer fuxico. Mais tarde, com o sorriso garantido pela eficiência do dentista, riria com sinceridade junto com os amigos, aceitaria as brincadeiras, sem falsidade, sem medo. E mesmo que a boca não ficasse totalmente restaurada, riria assim mesmo.

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