QUINTA DE LUA NOVA
(Virginia Finzetto*)
–Aberlado..., eu sei que você ainda está aí. Que coisa feia! Batucar na
porta do meu armário me vendo transar com o Celso?
Silêncio.
– ...tô perdendo minha paciência. Não vai dar sinal? Não de vida, né
Abelardo, que já faz dois anos que cê desencarnou. Vai, xispa daí. Vá buscar o aminho da luz, o caminho da roça, o caminho da putaquetepariu! Fora daquiii!
E aos berros, ela corria insana pela casa de imensas janelas de vidro. A
cena se repetiu tantas vezes que o showroom virou distração da vizinhança desocupada, praticante da bisbilhotice. Em pouco tempo, fofocas sobre a ‘viúva histérica do 125’ circulavam por toda a redondeza.
Ninguém mais, apenas Júnia podia vê-lo, mas só quando ‘ele’queria. Quando não, ela apenas pressentia o ambiente de ar carregado, o hálito frio em sua nuca e o riso safado na cara do falecido.
Aquilo não podia ser só uma alma penada. Era um implante maligno em seu cérebro, uma obsessão, um desastre do cosmos, um encosto. Carma e punição.
Sobre a mesinha de cabeceira de seu quarto havia um altar bonitinho. Apesar do entulho de pedras,
sal grosso, 54 tipos de incenso, patuás, velas e santinhos, havia um capricho que mostrava uma intenção.
Ela tinha tentado de tudo. Em casa, trouxe de pai de santo pós-graduado na Nigéria aos caça-fantasmas, confundidos pela empregada com a equipe de desratização do telhado. Ninguém, nada mesmo, conseguia dar um jeito de mostrar o reto caminho àquele habitante do limbo.
A casa, em si, não atrapalhava tanto a paz de Júnia, pois quando ausente de figuras masculinas o falecido praticamente sumia. O problema era quando encontrava alguém especial, um amor. Ah, isso não podia.
Foram várias as tentativas de namorar ali em seu quarto, todas sem sucesso. Abelardo aparecia de repente e ela o via, ora sentado no sofá do canto, ora assistindo tudo do alto, pendurado no lustre ou sobre a cabeceira da cama, até que chegou esse dia, quando ele resolveu batucar em ritmo de axé.
Quem trepa numa cadência dessas? Para ela, foi a gota d´água. Seu poder de abstração chegou ao limite.
Toca o telefone.
– E aí, foi lá?
– Sim, comprei tudo, mas tô numa dúvida. O cara é muito estranho.
Perguntei se não havia outra saída.
– E ele?
– Disse: “são 300 reais”, já abrindo a porta.
– DEMORÔ! O cara é bom. Faz que é batata! – respondeu a amiga, desligando.
Pior que o ‘trabalho’ tinha de ser naquela mesma noite, de lua nova. Não bastava o escuro da praça da encruzilhada, sequer havia o brilho das estrelas ou do luar. Melhor, pensou Júnia, isso vai ajudar a me esconder.
Mas se o mago era bom mesmo, ela nunca soube, pois, como era de costume, o que se ouviu naquela madrugada foi a já conhecida gritaria.
– Tirem-me daquiii! – ela berrava com toda a força de seus pulmões.
No alto da seringueira, traída por uma pisada em falso, ela estava ali, presa apenas pela capa de pomba-gira que ameaçava rasgar. Embaixo, toda a vizinhança. ‘Não é a histérica do 125?’, perguntava uma delas com um sapato vermelho de bico na mão, enquanto Júnia era iluminada pela lanterna da equipe de Resgate do 132.
Num galho, Júnia girava, vestida de corpete vermelho de cinta-liga rendado, um pé descalço, segurando um maço de cigarros Gonzaga e uma garrafa de Moët &Chandon. No outro, estava Aberlardo, o fantasma que só ela enxergava.
Blog de Literatura do escritor Menalton Braff, autor de 26 livros e vencedor do Prêmio Jabuti 2000.
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